Empresária cria bonecas negras para vender e enfrenta o racismo no mercado de brinquedos infantis

Era uma vez uma mãe de uma criança que não conseguia encontrar, para o filho recém-nascido, brinquedos em que o bebê pudesse se identificar. Nas lojas, só encontrava bonecos e personagens brancos. Não havia brinquedos em que as crianças negras pudessem se ver. “Eu senti falta de produtos no mercado que me atendessem desde quando eu estava esperando meu filho”, conta. A partir daí, com o auxílio do marido, ela começou a produzir os próprios brinquedos e itens decorativos para o pequeno Matias. De casa, passou a usar no trabalho até que decidiu criar sua própria empresa para vender os produtos e, assim, nasceria a “Era uma vez o mundo”.

O caso que pode se aplicar à história de diversas mães negras do país foi a forma que a empresária carioca Jaciana Melquiades, 35 anos, encontrou de modificar o mundo para o próprio filho. “Eu comecei a fazer algumas coisas, já tinha algumas habilidades manuais e comecei a fazer coisas decorativas para o quarto dele. Fiz bonequinhos e várias outras coisas ao longo da vida dele, desde quando era bebê. Eu e o pai dele fizemos isto para compor o universo infantil dele”.

Do quarto do menino, a ideia se expandiu. “Daí veio um start para a gente começar a usar esses produtinhos nas nossas oficinas que a gente fazia em escola. Meu ex-marido, que hoje é meu sócio, era professor. Ele trabalhava em escola de educação infantil e eu fazia atividades com o coletivo do qual faço parte que é o ‘Meninas Black Power’. E aí eu comecei a usar esses produtos que a gente fazia para o meu filho nas oficinas com as crianças”, lembra.

Das oficinas, professores e amigos passaram a fazer encomendas. “Comecei a achar que talvez desse para ganhar uma grana, sem muitas pretensões. Em 2013, eu abri uma e-commerce para vender as coisas que eu fazia e compartilhava com outros professores e acabou dando certo”.

Antes de ter o filho, quando ainda estava na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) cursando História, Jaciana havia decidido contar sua experiência enquanto jovem negra no Ensino Superior em um blog, intitulado “Era uma vez o mundo”. Na nova empreitada comercial, decidiu carregar o nome do blog.

“Era uma vez o mundo foi criada em 2013. Só que os nossos objetivos começaram a ser perseguidos a partir de 2017. Foi quando eu comecei a me dedicar exclusivamente a este trabalho e desenvolver a marca como uma empresa mesmo. Comecei a estudar negócios. Fiz um MBA em gestão de negócios. Começamos a nos inscrever em processos de aceleração também”, acrescenta a empresária.

“Brinquedos afirmativos” – Em entrevista para o Portal Mídia 4P, ela afirma que o objetivo foi se firmar no mercado como uma empresa referência em brinquedos afirmativos. “É a nossa proposta. Ser reconhecidos em território nacional como uma empresa que cria representatividade a partir dos brinquedos para crianças”.

Na trajetória, no entanto, houve percalços. Jaciana conta que, ao botar as bonecas negras nas ruas, o racismo reagiu. Muitas pessoas não conseguiam e ainda não conseguem enxergar os produtos da empresa como mais um a disputar o mercado. “O principal obstáculo hoje para colocar a empresa para funcionar tem a ver com o racismo. À medida que a gente consegue aumentar nossa cartela de clientes, a gente também recebe, em contrapartida, certa resistência de outro grupo que não consegue entender a necessidade, por exemplo, de uma loja que venda bonecas negras”.

Ela cita uma pesquisa da ONG Avante em que ficou evidenciado que atualmente no mercado apenas 7% das bonecas são negras. “É obvio que a gente está falando de uma sociedade racista, que não consegue ver o porquê da pessoa negra querer existir e querer ser representada. Então, a gente acaba sofrendo algumas represálias, alguns ataques por conta desse nosso posicionamento de tentar balancear o mercado”, acrescenta. A falta de dinheiro para investir no projeto também dificultou, no início. “O dinheiro acaba não sendo o problema maior quando a gente tem que administrar o racismo no qual a gente está inserido”.

Diversificado – Há alguns anos, a empresária passou a realizar atividades educativas em oficinas para crianças e professores, além de palestras em universidades e ambientes corporativos, falando de infância, educação e racismo. Na loja física, no centro do Rio de Janeiro, ela vende bonecas, bonecos e livros de panos. Até o final de 2020, outros produtos serão lançados como jogos, cabanas para crianças e o EBAA – Espaço de Brincadeiras Artesanais Afroreferenciadas.

“O EBAA é uma série de atividades referenciadas em brincadeiras africanas. A gente leva para a escola e, dentro dessa brincadeira, a gente desenvolve conceitos filosóficos africanos de uma forma lúdica e cooperativa. São conceitos importantes para a gente trabalhar uma sociedade menos desigual”, adianta a empresária para o Mídia 4P.

Na empresa, ela conseguiu desenvolver uma linha de produção. Há quatro pessoas trabalhando na produção dos itens: A boneca Dandara, o boneco Zambi e o Pequeno Príncipe Preto. Até o final deste ano, outras três bonecas serão lançadas: as amigas da Dandara. Os produtos são vendidos também no site e em seis lojas colaborativas – cinco no Rio e uma em São Paulo. No total, são produzidas 400 bonecas por mês.

Educação – Para ela, os produtos, assim como peças teatrais com negros, livros com personagens negros, contribuem para a educação de crianças negras e brancas. “Tudo isso cria um universo possível para uma criança, seja negra ou branca. Uma criança branca tem acesso a personagens negros nos diversos formatos começa a entender que pessoas negras estão em diversos lugares da sociedade. Ela começa a entender que a pessoa negra não necessariamente vai ser a empregada dela. Vai ser outras coisas também”, pontua.

Já para as negras faz com que as crianças se vejam com referências positivas. “Eu cresci me vendo de um jeito muito negativo. Tudo que aparecia sobre uma pessoa negra era ruim. Ou eu era a escrava na novela ou era a empregada maltratada. As crianças, quando brincávamos de casinha, não queriam entender que eu também tinha uma casa. Queriam que eu fosse a empregada. Ninguém queria ser o pai comigo”. Ela diz que o brinquedo, o livro, o personagem negros servem para romper com esse imaginário e permite ampliar o lugar do negro. “Nosso lugar é em qualquer lugar”.

Jaciana conta, ainda, que, na infância, não tinha noção da falta de representatividade da população negra. “Quando criança, eu queria ganhar a Barbie porque era o que tinha. Eu não vim de família de pessoas militantes. Eu sabia que era uma menina negra e sabia que eu era bonita. Isso era repetido dentro da minha casa, mas o meu entorno não dizia isso. Meus brinquedos não me diziam isso. A TV não me dizia isso”.

Diante da falta de referências negras, ela cresceu se achando feia. Mas a maternidade mudou sua trajetória. “Tive vários encontros incríveis. Entrei para o coletivo Black Power e comecei a entender que as minhas referências é que estavam equivocadas. E criar um mundo onde meu filho coubesse me abriu os olhos de um jeito muito positivo”. Hoje, ela quer que mais crianças, além do próprio filho, acessem “essa liberdade de poder ser e se ver nos espaços e se achar bonito e potente”.

COMENTÁRIOS

5 respostas

  1. Gostei de mais deste relato.
    Identifiquei-me nele ! acho que a iniciativa de Jaciana deve crescer e frutificar e atingir outros estados e o país.

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