O segundo dia de entrevistas do Jornal Nacional na terça-feira (28/08), com a participação do candidato Jair Bolsonaro, do PSL, foi de alta voltagem, como era de se esperar. Não escapando do receituário quando se trata do candidato em questão (provocações temperadas por um ambiente ácido), a entrevista, em seu conjunto, consagrou a fala inicial do entrevistado: “Isso aqui está parecendo uma plataforma de tiro. Estou absolutamente à vontade”. Pelo que se viu, Bolsonaro sabia do que estava falando, não prognosticou à toa.
Conhecedora, por ofício, do ainda enorme potencial da televisão aberta nas campanhas eleitorais (em junho deste ano, Ibope/CNI revelou que 62% dos 2 mil entrevistados apontaram que devem se informar sobre os candidatos pela TV, e 26% por redes sociais e blogs), a produção do jornal de maior audiência da TV brasileira vem investindo já há algum tempo na chamada “entrevista-paredão”. Neste formato, pouco importa a plataforma de governo dos candidatos. O que parece interessar ao roteiro das perguntas é examinar a perícia dos entrevistados face às declarações capciosas feitas por eles recentemente ou em passado que a memória alcança.
Esta modalidade propicia aos entrevistadores se metamorfosearem em entrevistado: no primeiro dia da série de “sabatina” do JN, as críticas desferidas contra a dupla Bonner-Renata recariam sobre a verborragia dos dois, em especial a de Bonner. Ciro Gomes teve menos tempo do que Jair Bolsonaro, este com 1 minuto e meio a mais para expor suas posições. Os entrevistadores tiveram responsabilidade decisiva nisso (com Ciro, falaram em torno de 11min30s, contra 10 min com Bolsonaro).
Dessa anomalia derivam tantas outras, entre as quais estão as que beneficiaram o candidato da extrema-direita no duelo com os apresentadores globais. E o benefício não se deve pelo pouco tempo a mais que Bolsonaro usufruiu, mas pela forma do debate, que se avizinha do beligerante, sem dúvida um prato cheio para extremistas.
Deve-se lembrar, no entanto, que os debates televisivos no Brasil surgiram na ambiência da primeira eleição direta de governadores na ditadura e se impuseram como uma plataforma de esclarecimento dos propósitos reais dos candidatos, um gesto ímpar de civismo. Brizola, Montoro e Tancredo são invariavelmente lembrados como os candidatos que conseguiram galvanizar seus desempenhos na TV. O modelo começou a degringolar com o inolvidável debate entre presidenciáveis em 1989, quando Collor, sob o beneplácito da Globo (ela de novo), decidiu que tinha como missão exterminar os adversários, em especial o então temido (como é hoje) Luiz Inácio Lula da Silva.
Quem saiu vitorioso(a) do Telecatch?
Ao contrário do que ocorreu em debates anteriores com seus pares, Bolsonaro não saiu chamuscado da entrevista; firmou-se, sim, todo pimpão como o boçal que confronta a Globo em sua própria casa; dá nome aos bois (ou a Roberto Marinho); manda historiadores às favas; reafirma que quem transgride leis não deve ser visto/tratado como gente; vocifera contra o que chama de kit gay com argumentos que são a mais pura fake news; proclama que atos de violência devem ser resolvidos com mais violência ainda – medidas que transbordam de orgulho seus seguidores-admiradores-eleitores. Muitos dos seus adeptos exibiram trechos da entrevista como troféus de uma vitória acachapante sobre os apresentadores no telecatch do JN.
Mas há, no extremo oposto, nas fileiras dos que repudiam o candidato racista-homofóbico-misógino-neanderthal, quem enxergou uma vitória dos dois apresentadores, com especial ênfase em Renata Vasconcelos. Vivas e foguetório foram dedicados à apresentadora porque falou de seu direito, como cidadã, de saber do salário do candidato no exercício de atividade pública, arrematando, sem seguida, que, como mulher, jamais aceitaria receber menos que um homem exercendo a mesma função.
Pronto. Uma resposta certeira, embora simples, foi o bastante para que a apresentadora se tornasse, na linguagem das redes sociais, a lacradora real oficial, o “mulherão da porra”. Até uma jovem candidata a deputada estadual de um partido de esquerda, que recentemente presidia o movimento estudantil, declarou entusiasmada: “Renata Vasconcelos representou… que classe!”. O viés da confirmação foi adotado conforme os prismas das lupas de análise.
No lamentável ringue televisivo perdemos todos. O sentimento de perda parece ser aplacado pela capacidade que temos em perceber nesses programas o que eles realmente são: animadores de plateia. É como um telecatch a que assistimos, na condição de torcedores.
A título de lembrança, Telecatch foi um programa da extinta TV Excelsior (RJ) que exibia combates de luta-livre misturados com encenação teatral e circo. Mix que as emissoras utilizam para se beneficiarem da antipolítica, da qual Bolsonaro é o símbolo máximo.
Dever cívico versus interesses outros
Efetivamente, não temos nada a celebrar com as intervenções/respostas de Renata Vasconcelos para além do reconhecimento de que Bolsonaro não suporta ser interpelado por mulheres (na plataforma de tiros do JN, disparava olhares destituidores e mortíferos a ela, o que não foi sentido com William Bonner, com quem manteve certa tolerância). Para quem acompanha as disparidades salariais na comunicação e no jornalismo, a afirmação de Vasconcelos deve ser matizada.
Os dados mostram como as diferenças salariais são alarmantes na profissão e que as funções de prestígio (leia-se as de visibilidade televisiva) passam por crivos de gênero e raça que prejudicam mulheres e negros. Ocupando um lugar de prestigio, Renata Vasconcelos faz uma afirmação que mesmo nesse lugar não se verifica em muitos casos pelas estratégias sexistas de abordagem e contratação de muitas profissionais que habitam um universo dominado por 71% de homens.
Outros acréscimos também cabem para esmaecer os ânimos celebrativos em relação à supremacia de Renata Vasconcelos sobre Jair Bolsonaro: assistimos a dois jornalistas, em tom solene, fazerem perguntas sobre o confisco de direitos que a plataforma de Bolsonaro anuncia. Nas evasivas do candidato em relação ao tema, insistiam com o argumento de que era dever cívico esclarecer para o eleitor em quais aspectos essas propostas o afetariam negativamente.
Mas, pera. Não foi essa mesma emissora que subscreveu a reforma trabalhista, vocalizando por meio de William Bonner e Renata Vasconcelos (que disse jamais aceitar receber menos que um homem) que a CLT era algo anacrônico, dando visibilidade aos argumentos favoráveis e asfixiando os que se mostravam contrário à medida regressiva? Não foi essa emissora que insinuou não haver outra saída se não a reforma da previdência da forma que foi apresentada pelo governo de plantão, dando de ombros a vozes que apresentavam outras propostas para a questão previdenciária e a reforma fiscal?
Dever cívico com o eleitor-cidadão não se vê por aqui, cara Rede Globo. Ao que tudo indica, a vênus platinada evita aplicar em sua linha editorial, o que prescreve para os candidatos na bancada do JN. Mais do que formar uma opinião pública qualificada, o ringue, que procura dar ares republicanos de transparência para as trocas de farpas, serviu para vitaminar a agenda restrita de um candidato cuja plataforma de governo se reduz ao armamento da população, à castração química de homens tarados, à disciplina nos quarteis e à perseguição da “teoria de gênero”.
E o fascismo com isso?
Mesmo acreditando que Bolsonaro não chegará ao segundo turno porque, entre outras coisas, lhe faltará estrada para atingir a porcentagem de que precisa para poder avançar (o candidato terá magérrimos 8 segundos de tempo de TV e não conta com a plataforma da grande imprensa, duas esferas importantes para a consolidação das candidaturas), deve-se ter estratégias para combater a reafirmação fascista que se impõe no mundo.
O cientista político João Filho, colaborador do site “Intercept Brasil”, adverte que é preciso saber usar argumentos para confrontar as propostas de candidatos da extrema-direita que têm tirado o sono de boa parte do planeta. Segundo ele, nos EUA, Europa e agora no Brasil, jornalistas tentam descobrir a melhor maneira de entrevistar essa turma sem favorecer a difusão de propostas antidemocráticas. “A experiência americana com Trump indica que confrontar os absurdos racistas e homofóbicos, por exemplo, não funciona e só ajuda a alimentar a fúria dos seus seguidores”. Intelectualmente limitados, continua o cientista político, “esses políticos se perdem ao serem convocados a falarem sobre temas que estão fora da sua caixinha moralista”.
Já que o reinado do telecatch não apresenta sinais de desgaste, as orientações de João Filho reclamam por mais atenção. Priorizar outros assuntos que estão fora da órbita do arsenal de Bolsonaro e de seus seguidores é terapeuticamente salutar para a democracia.
Não se trata de flagrar a ignorância do candidato em relação a temas fundamentais (disso todos sabemos: os seus adeptos e os seus adversários), mas de imobilizá-lo pela falta de condições de retrucar o que está sendo exposto. Imobilizá-lo a tal ponto de lhe causar angústia, de fazê-lo patético e desnorteado como o meme do Jonh Travolta (imagem evocada por João Filho), brecando a possibilidade da promessa máscula de renovação do vigor nacional ganhar terreno discursivo por meio de clamores emocionais e antirracionais.
Tudo que um fascista não quer é sentir-se nu, ser pego a contrapelo, é não ouvir o eco de sua voz em outras vozes também silenciadas frente a uma não correspondência com suas crenças e práticas. A energia psíquica que lhe confere superioridade moral advém de uma coesão de grupos que se sentem ameaçados por uma esquerda “degenerada” que abriga os clamores de um tipo de gente “pervertida” que perturba a “boa rotina dos cidadãos de bem”.
Sob esse ponto de vista, o franco-atirador Jair Bolsonaro se posicionou na plataforma de tiros e atirou para todos os lados, liberando um fascismo que se insinua, até o momento, sem peias. Infelizmente, a bancada do JN deu-lhe munição.
*Rosane Borges é jornalista, professora universitária e autora de diversos livros, entre eles “Esboços de um tempo presente” (2016), “Mídia e racismo” (2012) e “Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro” (2004).