“Só ouço barulho”. O código Trump: conspiração e a desinformação em chave atualista
“Eu não entendo, você é o presidente! Você não é como o tio louco de alguém que pode simplesmente retuitar qualquer coisa”
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Aloisio Morais
Na noite da quinta-feira dia 15 de outubro ocorreram simultânea e separadamente debates com os dois candidatos à presidência dos EUA, Donald Trump e Joe Biden, com eleitores em emissoras de televisão concorrentes. Esse duplo espetáculo político-midiático foi a solução encontrada frente ao cancelamento do debate direto entre os dois candidatos, devido à recusa de Trump em participar em formato remoto após ter contraído o coronavírus.
Mateus Pereira, Walderez Ramalho, Valdei Araujo, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG*
Cada candidato respondeu a perguntas feitas pelo público e pelos jornalistas responsáveis por conduzir a entrevista. Biden falou em estúdio da rede ABC na Filadélfia, intermediado pelo jornalista George Stephanopoulos, enquanto Trump foi sabatinado no estúdio da NBC em Miami, com a mediação da jornalista Savannah Guthrie.
Essa separação entre os candidatos em dois debates distintos e simultâneos acentuou o contraste nas estratégias e abordagens que cada um deles adota na disputa pela preferência do eleitorado. Além de ser um símbolo da divisão atual que tem corroído por dentro diversas democracias ao redor do mundo.
Essa diferença foi amplamente destacada pela imprensa estadunidense e global. No evento estrelado por Biden, o debate foi marcado pela parcimônia e discussão mais moderada. Tanto o candidato democrata quanto o moderador realizaram poucas interrupções. Mesmo quando confrontado com questões mais difíceis, Biden manteve o tom de voz mais baixo e, geralmente, esperava o seu interlocutor concluir a pergunta. Quando criticado por suas falas e posições, Biden contra-argumentou sem adotar uma postura agressiva. Chegou inclusive a reconhecer e lamentar algumas posturas adotadas no passado – por exemplo, a sua participação na aprovação da “Lei de Crimes” de 1994, que muitos apontam como um dos fatores para a ampliação do encarceramento em massa da população negra daquele país.

Nada mais diferente do que se viu na sabatina com Donald Trump. Um detalhe curioso foi que a transmissão teve início com a mediadora Savannah Guthrie relatando à equipe da NBC que ela estava com alguma falha técnica em seu ponto de ouvido: “Só ouço barulho”: essa foi a primeira frase que o público ouviu quando o espetáculo começou. Parecia um prenúncio do que ocorreria ao longo dos 60 minutos restantes da atração.
De fato, em comparação com o evento com Joe Biden, o debate com Donald Trump foi muito mais cacofônico e caótico, o volume da fala muito mais alto e o tom mais agressivo e disposto ao confronto e à polêmica. Ao longo do evento houve constantes interrupções, tanto da parte de Trump quanto de Guthrie – que não se escusou em pressionar o candidato republicano todas as vezes que tentava fugir de uma questão ou desviar o assunto, um estratagema que ele empregou à exaustão.
Um dos momentos mais comentados foi quando Guthrie pressionou Trump sobre as teorias conspiratórias que o elegeram como herói na luta contra a pedofilia (QAnon), e de que Joe Biden teria arquitetado o “falso” assassinato de Osama Bin Laden – mentira que o próprio presidente dos EUA difundiu por meio de sua conta no Twitter.
Nesta coluna, faremos uma análise mais detida do embate entre Trump e Guthrie a respeito desses temas. As falas demonstram como Trump intensifica a agitação e a confusão por meio de estratégias retóricas muito bem calculadas. Cada frase empregada desempenha uma função, e visa ativar/atualizar em partes do eleitorado determinados afetos e visões de mundo.
Para Trump, a confusão e a agitação são métodos de mobilização poderosos. Interrupções, tom de voz alto e agitado, frases desconexas e que se contradizem entre si podem parecer apenas sinais de uma mente fraca e perdida. Mas convém não subestimar a capacidade de se conectar com seu público de um “showman” que logrou se tornar o presidente da nação mais poderosa do planeta. Convém também avaliar os recursos retóricos empregados pelo candidato-agitador com referência à condição atualista que caracteriza o nosso presente.

***
Savannah Guthrie – Tudo bem, enquanto estamos denunciando, deixe-me perguntar sobre o QAnon. É essa teoria de que os democratas são uma rede satânica de pedofilia e que você é o salvador. Você pode agora, de uma vez por todas, afirmar que isso definitivamente não é verdade, e…
Donald Trump – Então, eu sei [um fala em cima do outro]
SG- Rejeitar o QAnon…
DT- Sim.
SG- Em sua inteireza?
DT- Eu não sei nada sobre QAnon
(Ao interromper continuamente a fala de seu interlocutor é produzida uma quebra do fluxo comunicativo. O diálogo se transforma em uma cacofonia de alto volume e velocidade – falas quebradas e sobrepostas, onde um tenta falar por cima do outro, o que intensifica a sensação de conflito, em vez de um debate entre ideias e posições. Esse tipo de situação dificulta a compreensão do conteúdo das falas em si; no entanto, ao criar esse ambiente conflitivo, Trump reforça a mensagem de que ele está sob ataque constante da “grande mídia”, ao mesmo tempo que tenta transmitir uma ideia de força e virilidade, alguém que não se intimida perante o inimigo mas, ao contrário, está sempre pronto para o contra-ataque.)
SG- Eu acabei de te dizer [o que é QAnon]
DT- Eu sei muito pouco. Você me disse, mas o que você me diz não significa necessariamente que seja verdade. Eu odeio ter que dizer isso.
(Trump continuamente reforça a desconfiança do público com a grande mídia, utilizando-se de uma estratégia negacionista que alimenta um ceticismo irresponsável; mais como gesto emocional do que como resultado de análise crítica fundamentada. Embora Guthrie tenha apenas descrito um fato conhecido por muitos – a existência da teoria conspiratória QAnon –, Trump se recusa a aceitar como fato, dizendo que se trataria apenas da palavra e opinião da jornalista. No “código Trump” de desinformação, a grande imprensa é um bloco monolítico totalmente corrompido e a serviço dos democratas (e da esquerda radical), isso inclusive justificaria a existência de um suposto outro lado, como a Fox News, que seria tão parcial quanto às demais, mas sua parcialidade estaria justificada como reação à mídia hegemônica. É no interior desse quadro que o negacionismo como estratégia de desinformação adquire sentido e eficácia.)

DT- Eu não sei nada sobre isso. Eu sei que eles [QAnon] são totalmente contra a pedofilia. Eles lutam muito. Mas não sei nada sobre isso [Não fica claro se está referindo ao QAnon ou aos democratas pedófilos]. Se você gostaria que eu…
(Na mesma frase diz não saber nada sobre o QAnon e que “eles são totalmente contra a pedofilia”, que “lutam muito”. A coerência interna da sua posição (se ele sabe ou não sabe sobre a teoria) importa pouco do ponto de vista do seu objetivo, que é de ativar sua base de apoio. Afinal, enquanto presidente dos EUA, é factualmente impossível que ele não saiba nada sobre o QAnon. Mas, ao ligar a teoria com uma suposta luta anti-pedofilia, Trump é capaz de, ao mesmo tempo, acenar à sua base de eleitores que acredita na teoria conspiratória, e também para o público em geral que abomina a prática da pedofilia. A função da teoria QAnon consiste exatamente em atribuir essa prática aos democratas, ao passo que Trump figura nessa narrativa como um grande salvador e defensor das crianças e um herói vingador contra os abusadores. Na verdade a comunicação – se é que podemos usar esse conceito – só se efetiva quando a mensagem de Trump atinge as bolhas de desinformação que reproduzem continuamente memes e narrativas conspiratórias. É nesse ambiente que a mensagem de Trump realmente é ativada. Para nós que estamos fora dessas bolhas, tudo soa apenas como barulho, loucura ou má-fé. Trump alimenta a teoria conspiratória sem arcar com os custos de uma afirmação direta e clara.)
SG- Eles acreditam que é um culto satânico dirigido pelo estado profundo.
DT- Estude o assunto. Eu vou te dizer o que eu sei. Eu sei sobre o Antifa, e sei sobre a esquerda radical, e sei como eles são violentos e cruéis. E eu sei como eles estão incendiando cidades administradas por democratas, não dirigidas por republicanos.
(Aqui Trump promove um desvio de foco trazendo à tona os grupos antifascistas e da “esquerda radical”, tema com o qual se sente mais à vontade e que é diariamente coberto pela imprensa que o apoia. Assim, sugere que a jornalista evita abordar o tópico por não fazer uma cobertura imparcial. Novamente a lógica do “doisladismo”, como se a realidade dependesse apenas de sua preferência política, sem qualquer possibilidade de confiança no outro lado acerca inclusive dos mais elementares aspectos da realidade, como as vantagens do uso de máscaras, por exemplo. Desse modo, Trump está atualizando uma narrativa que já circula amplamente no país. Sob esse ponto de vista, importa pouco se os grupos referidos pelo candidato-agitador realmente realizam as ações que ele lhes atribui.)

SG- O senador republicano Ben Sasse disse que “QAnon é louco e os verdadeiros líderes chamam de teorias da conspiração, teorias da conspiração.”
DT- Ele pode estar certo.
SG- Por que não dizer apenas que é loucura e que não é verdade?
DT- Posso ser honesto? Ele pode estar certo. Eu simplesmente não sei sobre QAnon.
SG- Você sabe!
DT- Eu não sei! Não, não sei! Eu não sei! Você me contou tudo sobre isso.
(Quando confrontado novamente pela jornalista, Trump volta a negar que conheça algo sobre o QAnon. Repete a mesma frase três vezes: “Eu não sei”. Falas repetitivas são um dos recursos retóricos mais utilizados por Trump.[1] Obviamente, trata-se de uma negação falsa, e a jornalista sabe disso. Sendo o presidente dos EUA, como ele pode não saber sobre a teoria que o celebra como salvador? Para sua base mais fiel, esse tipo de movimento pode ser entendido apenas como resiliência e resistência a ceder às armadilhas da mídia adversária.)
SG- Ok, eu tenho mais uma desse tipo.
DT- … deixe-me dizer a você. O que eu ouvi sobre isso é que eles são fortemente contra a pedofilia. E eu concordo com isso. Quer dizer, eu concordo com isso…
SG- OK.
DT- … e eu concordo fortemente com isso.
SG- Mas não há uma seita pedófila satânica sendo dirigida por…
DT- Eu não faço ideia. Eu não sei nada sobre eles.
(Ele diz não saber nada sobre QAnon. Mas diz saber que eles são contra a pedofilia. E que ele “concorda fortemente com isso”, isto é, ele diz defender a luta contra a pedofilia. Mas se recusa a se comprometer com a conspiração em seu conjunto, pois “não sei nada sobre eles”. Ao dizer que ele não sabe sobre o QAnon, Trump não está recusando a validade da teoria conspiratória, de algum modo o clima conspiratório é até reforçado. O tema do culto satânico propagado pela teoria QAnon não pode ser afirmado, mas ele deixa uma dúvida no ar sobre a sua existência (“Eu não faço ideia”). Essa centelha, mesmo que mínima, já é o suficiente para quem defende e acredita na conspiração, e também acende a desconfiança entre o público mais amplo, que abomina a existência da pedofilia.)

SG- Você não sabe disso? OK.
DT- Não, eu não sei disso.
SG- Você, apenas esta semana…
DT- E nem você sabe disso.
(Novamente Trump denuncia a falta de credibilidade e imparcialidade da jornalista. Ele não sabe nada sobre o QAnon, mas ela também não sabe. Aqui, Trump está jogando com a armadilha criada por teorias conspiratórias, pois a jornalista não poderia apresentar uma prova de que a tal seita satânica dos democratas efetivamente não existe. O ônus da prova é transferido de quem afirma a existência para aqueles que estão empenhados em negá-la. Assim, por mais surreal que pareça, uma questão factual se transforma em questão de falsa opinião, de achismo. Eu acho que existe! Mas não tendo provas, só convicções… Você que não acredita em mim, mesmo não tendo provas, tem apenas outra opinião. Após essa operação, o absurdo é naturalizado e pode, então, ser vivido como realidade, como parece ser um dos traços principais das atuais guerras culturais de atualização em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. O princípio básico de que cabe a quem acusa apresentar as provas é cancelado e com ele qualquer possibilidade de justiça.)

(Essa tentativa de corroer a credibilidade da jornalista é crucial para o código Trump. Reforça a mensagem de que ele está em uma situação de confronto com um inimigo com quem o diálogo não é possível. No limite, ninguém sabe sobre o QAnon; portanto, qualquer tentativa da jornalista de confrontá-lo terá pouca efetividade na base trumpista e é visto apenas como um uso político para beneficiar seu adversário.)
SG- OK. Ainda esta semana, você retuitou…
DT- Por que você não está me perguntando sobre o Antifa? Por que você não está me perguntando sobre a esquerda radical?
SG- Porque você só, porque você já falou voluntariamente…
DT- Por que não está fazendo perguntas a Joe Biden sobre, por que ele não condena a Antifa? Por que ele diz que não existe?
SG- Porque é você que está aqui na minha frente.
DT- Antifa, não, com licença. Isso é tão fofo… Antifa existe. Eles são cruéis, eles são violentos. Eles matam pessoas e estão incendiando nossas cidades. E eles são da esquerda radical.
(Essa passagem complementa a anterior. Além de não saber nada sobre o QAnon, a jornalista se recusaria a falar de coisas que “ele sabe”: sobre os grupos Antifa e a “esquerda radical”. Deixa no ar a sugestão que a jornalista é comprada, está de má-fé por não querer condenar aquilo que ele considera condenável. Assim, a grande imprensa se associa à “esquerda radical” e ao “Estado profundo”. Importa reconhecer que por mais que essa narrativa do QAnon não tenha nenhum embasamento em fatos, ela tem grande efetividade entre o público mais amplo, que tem boas razões para duvidar da imparcialidade da grande mídia.)

SG- Ainda esta semana, você retuitou, para seus 87 milhões de seguidores, uma teoria da conspiração que afirma que Joe Biden tramou para assassinar seis integrantes dos comandos especiais da marinha para encobrir a falsa morte de Bin Laden. Por que você mandaria uma mentira dessas para seus seguidores?
DT- Eu não sei nada sobre isso, posso [falam em cima do outro]
SG- Você retuitou…
DT- Isso foi um retuíte. Essa foi uma opinião de alguém…
SG- Mas…
DT- …. e isso foi um retuíte. Vou colocar isso aí. As pessoas podem decidir por si mesmas. Eu não me posiciono.
(Inicialmente, Trump tenta repetir o estratagema da negação – “Eu não sei nada sobre isso”. Mas na sequência, ele adota um outro recurso, o de rejeitar a responsabilidade de sua própria ação – ter espalhado a mentira envolvendo Joe Biden e o assassinato de Osama Bin Laden. O termo técnico para essa figura retórica é “paralipse” ou “preterição”: quando o orador afirma que não diz algo, mas diz. No caso, ele tenta transferir a terceiros a responsabilidade pela autoria da mentira, dizendo que ele apenas “retuitou” a mensagem. Ao mesmo tempo, ele transfere ao público a responsabilidade de checar a veracidade da mensagem, pois caberia a cada um decidir sobre o tema – apesar de ele ser o presidente dos EUA e ter à disposição a polícia e os serviços de inteligência… De sua parte, afirma, “eu não me posiciono”, ou seja, não quer assumir a responsabilidade pela mentira propagada por ele mesmo.)
SG- Eu não entendo, você é o presidente. Você não é como o tio louco de alguém que pode simplesmente…
DT- Não não. Não não.
SG- … retuitar qualquer coisa.
DT- Isso foi um retuíte. E eu faço muitos retuítes. E, francamente, porque a mídia é tão falsa, e tão corrupta, se eu não tivesse mídia social… Eu não chamo de Twitter, chamo de mídia social. Eu não seria capaz de espalhar minha mensagem. E a mensagem é…
(Ao ser chamado pela jornalista a assumir a responsabilidade de seus próprios atos, Trump contra-ataca dizendo que não se pode confiar nas instituições, especialmente a imprensa profissional. Ele retuíta a informação (falsa) porque, segundo sua narrativa, seria necessário combater a mídia corrupta e esquerdista. O resultado é a intensificação do barulho, da agitação e da confusão. A premissa aqui é condizente com a ordem ultra-individualista: é preciso contar e confiar na liberdade de cada um para julgar e avaliar as narrativas em disputa. Assim, Trump alimenta e é alimentado pelo atualismo e desinformação político-midiática, em especial, por ser um dos arquitetos de uma realidade que se atualiza em função da própria atualidade sem a necessidade de prestar conta com o dia anterior. Uma realidade atravessada pela ilusão da reprodução automática, onde o valor de novidade e o achismo se confundem com o valor de verdade e o conhecimento fundamentado.)
SG- Bem, a mensagem é falsa.
DT- … e você sabe qual é a mensagem? A mensagem é muito simples. Estamos construindo nosso país, mais forte e melhor do que nunca.
SG- Vamos parar.
DT- E é isso que está acontecendo. E todo mundo sabe disso.
(Enfim, Trump foi realmente massacrado pela jornalista? Em nossa opinião, nesse episódio, o código Trump foi efetivamente transmitido para a sua base. Aqueles que não compartilham do código têm a sensação de que Trump foi derrotado no debate. Mas a armadilha está no fato de que quanto mais Trump é pressionado pela mediadora e chamado a assumir a responsabilidade de suas próprias falas, mais se acentua a sensação entre sua base (e potenciais eleitores) de que ele é vítima de perseguição. A agitação e confusão é uma estratégia coerente para reforçar a mensagem. Em vez de prestar contas com o público pela propagação de teorias falsas e conspiratórias, Trump reforça essas teorias constantemente mobilizando seus códigos. Ainda assim, tudo indica que a maioria dos eleitores propensos a votar no confuso e complexo sistema eleitoral americano estão exaustos e dispostos a não renovar mais uma temporada do show de Trump. Ainda assim, não há como esconder a ansiedade e o medo e uma nova virada como a de 2016. Quando fechamos essa coluna novas rodadas de pesquisa mostram uma leve recuperação de Trump e volta-se a falar de interferência russa na promoção de propaganda falsa. Como as últimas eleições aqui e lá demonstraram, hoje pode-se perder ou ganhar um pleito em 24 horas.)
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] MONTGOMERY, Martin. Post-truth politics? Authenticity, populism and the electoral discourses of Donald Trump. Journal of Language and Politics, v. 16, n. 4, p. 619-639, 2017.

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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5 anos atrásem
07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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