Por Flávia Martinelli, dos Jornalistas Livres
Após tratar a dependência química como caso de polícia e violar direitos humanos internacionais básicos no desmantelamento do programa De Braços Abertos – política pública construída no diálogo entre Estado, entidades e profissionais especializados em atenção integral à saúde e promoção de cidadania – o prefeito João Dória Júnior segue em seu arbitrário projeto imobiliário-higienista na Cracolândia, no valioso centro de São Paulo.
Dessa vez, a estratégia foi descontextualizar a realidade dos usuários de crack em campanha publicitária; uma das especialidades do político que é dono de uma agência e editora de revistas voltadas para empresários e público de classe A. O prefeito Júnior destinou R$ 3 milhões e 900 mil dos cofres públicos para anúncios em pontos de ônibus, TV, cinemas e redes sociais nos quais coloca toda a culpa do problema do crack nas costas dos usuário. O programa Braços Abertos custava, em sua totalidade, R$ 9 milhões POR ANO.
Astuto, o lançamento oficial da campanha, será nesta segunda-feira (26/06), Dia Mundial de Combate às Drogas. Mas o marketing já começou neste domingo (25) com o lançamento de um vídeo que Dória postou em seu facebook. “Quero compartilhar em primeira mão com vocês esse lindo comercial da prefeitura de SP para a campanha de sensibilização da sociedade para o problema do crack”, disse Júnior. De acordo com o prefeito, basta dizer “não” à droga para ser vacinado à “dependência química terrível, uma verdadeira doença crônica, difícil de tratar”. Posto dessa maneira, culpabilizando o usuário e isentando-se da responsabilidade do Estado em buscar saídas para a miséria e programas de recuperação, ficou fácil pra Prefeitura, né? Mas há muitas camadas de significado na propaganda do prefeito.
No vídeo, logo somos informados que a dramatização é baseada em histórias reais. Então, abre-se uma porta. Musiquinha indie-rock dramática, em inglês, ao fundo. Sobe o som. Um jovem homem branco, então, percorre uma galeria onde estão expostas diversas fotos. Um bebê sorri numa das imagens, uma criança loirinha faz pose em outra, tem cena de formatura e até viagem para o exterior. Logo percebe-se que o rapaz que visita a exposição é o mesmo que está nas fotos. Casamento, nascimento de filho, ar de vencedor…
Até que um espelho mostra que a imagem refletida não é mais a do rapaz sorridente das fotografias. O personagem agora está visivelmente envelhecido. Dentes amarelos, barba e roupas desgrenhadas como se estigmatiza descrever um morador da Cracolândia. O letreiro sobe em maiúsculas: “O CRACK DESTRÓI UMA VIDA INTEIRA. QUANDO VOCÊ VÊ, JÁ NÃO SE VÊ”. O homem chora. O logotipo da Prefeitura de São Paulo acompanha o texto “CRACK. A MELHOR SAÍDA É NUNCA ENTRAR”. Fim.
De imediato, a propaganda faz a separação entre o antes e o depois do crack na vida do personagem. Quando era um feliz “cidadão de bem”, ele não usava a droga. Depois de usar, virou um morador da Cracolândia. Pressuposto errado. A campanha de terror de Dória, que mostra um caminho sem volta, é mais uma estratégia que só distrai o verdadeiro problema: a miséria.
Crack é uma droga que tem o mesmíssimo princípio ativo da cocaína. E, como no uso dela, há inúmeros usuários que compram as pedras na sexta-feira para usar no fim de semana. Quem são esses consumidores? São cidadãos que vivem suas vidas sem parar nas ruas da Cracolândia em situação deplorável, sem família, sem emprego e sem dinheiro. A lógica de quem vai parar lá, por sinal, é inversa. É a miséria que faz alguém chegar à Cracolândia e não necessariamente o crack. E a exclusão social é o principal problema de quem só encontra nas ruas alguma inclusão.
Na Cracolândia está gente sofrida no último grau da dor. São em sua maioria negros destruídos pela sociedade racista, são ex-presidiários abandonados pelas famílias e sem chance de emprego, são prostitutas aniquiladas física e mentalmente, são travestis dizimados pela violência simbólica e material do machismo, são gênios e loucos incompreendidos e raramente aceitos. “Para acabar com a Cracolândia”, sempre repete o médico Drauzio Varella,”é preciso acabar com a miséria”. E isso a propaganda de Dória não promete nem menciona.
Outro ponto escondido é o papel do Estado. O filme não menciona nenhuma palavra, música, imagem ou mesmo um pincelar simbólico sobre o papel da Secretaria da Saúde diante da dependência química. Nada nem de longe faz referência às políticas públicas para lidar com o problema. Tampouco se aborda a multiplicidade de fatores que pode levar alguém à Cracolândia, como a falta de moradia, emprego e estrutura familiar ou a disponibilidade de uma droga barata que foi disseminada nas comunidades mais vulneráveis da cidade e até mesmo o fato de a maioria da população nas ruas ser alcoólatra.
No comercial “lindo” do prefeito Dória tudo se resume a dizer “não” à oferta de crack. Bastaria isso para aquele jovem homem branco, pai de família, viajado e de infância feliz ter sua vida de classe média preservada. Pressuposto totalmente errado. O problema de quem chega à Cracolândia não é a droga. É a miséria.
Espelhamento é estratégia antiga da publicidade. Quem se vê projetado nos anúncios logo se identifica. Os profissionais da propaganda feita pela agência Cazamba sabem disso, tanto que a empresa, que se define especialista em tecnologia de marketing, promete a marcas o engajamento de seus consumidores de uma forma “mais dinâmica e personalizada para alcançar e interagir com a audiência desejada, da maneira desejada.” Não foi necessário nem fazer metáfora para explicitar o público-alvo de Dória no vídeo batizado de “Espelhos”. Incutir o terror na população de classe média diante do crack é estratégia perfeita para fugir de problema muito maiores que são gerados pela exclusão social.
A empresa que fez o vídeo afirma que “é o anunciante quem determina como veicular a peça e quais interações ela terá com o usuário.” Esse, no caso, não é o morador da Cracolândia que Dória trata com batalhão de polícia, demolição de moradia, internação compulsória e fim de acesso a emprego e perspectiva de vida que tinha no acolhimento do antigo programa Braços Abertos. A estratégia de marketing do prefeito é dizer que o usuário é cego, culpado por ter destruído sua vida inteira.
Fica o subtexto de que o Estado, ao virar as costas para o problema de moradia na cidade, por exemplo, não tem nada a ver com a Cracolândia. O sistema carcerário brasileiro que devolve à sociedade presos sem acesso a emprego também não tem nada a ver isso. Os marginalizados todos são só um detalhe que os publicitários e o governo não lembraram. E, assim, só resta mesmo expulsar, até da rua, o dependente químico culpado por suas mazelas e interná-lo na marra numa clínica que recebe subsídio da prefeitura. E que fica bem longe do centro da cidade.
2 respostas
Mais uma esquerdopata querendo destruir qualquer iniciativa para combater as drogas desqualificando a forma
Será que o seu prefeito haddad não teve tempo pra resolver da forma que vcs acham correto ou conveniente?
Quando é que vão respeitar a democracia e aceitar o resultado das urnas?
Quem quer respeito, respeita
O princípio ativo até pode ser o mesmo.
Mas a dependência do crack é infinitamente maior.
O crack faz a pessoa esquecer de tudo e todos mesmo fora do efeito da droga.
Belíssima propaganda.
A culpa está no usuário sim.
Uma vez que vc decide entrar, dificilmente irá sair.
Amelhor saída é não entrar.
Isso resume tudo.
A propósito não tem só a cravo-da-índia do centro.
Tem centenas de cracolandias pela cidade.
Aqui em heliopolis tem muito mais usuários que aí no centro por exemplo.
Onde tem a droga, lá estarão os dependentes.
A cracolandia jamais acabará.
Pode até mudar de lugar, mas nunca acabará.
É como espantar pombos.
Eles saem por um instante mas voltarão enquanto houver as migalhas.
Parabéns pela propaganda da prefeitura.
Nunca vi uma propaganda tão linda, incisiva e profunda.
Pena que demorou para existir, e que existem pessoas que enxerguem a realidade de cima de uma cobertura de um prédio e por isso fazem comentários infelizes.
Nem todo miserável fuma crack.
Mas todo rico que fuma crack se torna um miserável.