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A resistência indígena contra os novos Bandeirantes

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mais de quinhentos anos os povos nativos do Brasil lutam pela sua sobrevivência, pela preservação de sua cultura, suas terras e a natureza. Durante toda a história deste país, os indígenas sofreram perseguições, escravidão, genocídio e os que restaram foram expulsos de suas terras pelo avanço do homem branco.

Quando essas terras foram conquistadas pelos portugueses, havia aqui uma população indígena superior a 5 milhões de habitantes, reduzidos ao longo dos anos para menos de 900 mil. Os portugueses que se consideravam donos destas terras, obrigaram grande parcela desses indígenas a realizar trabalhos forçados. Sua escravidão foi auxiliada pela ação dos Bandeirantes, caçadores de nativos e responsáveis pela morte de diversos deles. Além disso, muitas doenças trazidas pelos europeus e africanos, potencializaram o desaparecimento de um grande número de indígenas.

Segundo dados da FUNAI e do Censo do IBGE (2010), a atual população indígena brasileira, é de 817.963, confinados em áreas correspondentes a 13,8% do território original que estes nativos possuíam. Desde 1500 até a década de 70 a população de nativos decresceu, chegando a extinção de diversas etnias. O cenário teve mudanças a partir dos anos 90 quando o IBGE incluiu os indígenas no censo demográfico nacional. O crescimento de pessoas que se consideravam indígena foi de 150%.

 

Depoimento de Cláudio Barros de 93 anos, cacique da aldeia Tekoha Porã, em Guaíra — PR, e de sua esposa, Vitória. Enfrentou e resistiu a sucessivas tentativas da sociedade e do Estado brasileiro de expulsá-los de sua terras.

Atualmente a FUNAI estima que existam no Brasil 274 línguas faladas, o Censo mostrou que cerca de 20% da população nativa não fala o português. A entidade aponta que esses indivíduos têm enfrentando uma transformação social muito grande, tendo que buscar maneiras de garantir a sobrevivência física e cultural. Entre os principais problemas estão invasões territoriais, degradação do meio ambiente, exploração sexual, aliciamento e uso de drogas e exploração de trabalho. O que não falta são questionamentos sobre a falta de atuação do Estado em relação a esses problemas.

O antropólogo e coordenador da Pastoral Indigenista da Arquidiocese de São Paulo e do Programa Pindorama da PUC-SP, Benedito Prezia, acredita que a lentidão no processo de demarcação dessas terras é devido ao grande interesse nas terras indígenas, geralmente situadas em áreas onde há minério ou rios, destinados a hidrelétricas. Em outros casos, são terras férteis, objeto de exploração do agronegócio. “São também áreas que o governo, em épocas passadas, resolveu destiná-las para projetos de colonização, como a terra dos Gurani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Em 1973, com o Estatuto do Índio, o governo militar deu um prazo de 5 anos para demarcar todas as terras e não cumpriu. Em 1988, quando foi promulgada a nova constituição, foi dado um novo prazo de 5 anos e também não foi cumprido. Assim, há também uma conivência do executivo com os grupos econômicos para não avançar as demarcações”, afirma.

Para o coordenador do CIMI Sul (Conselho Indigenista Missionário), Roberto Liebgott, apesar das conquistas constitucionais, os direitos indígenas estão sob ameaça, na atual conjuntura brasileira, em decorrência da influência dos poderosos grupos econômicos-agronegócio que pressionam o governo, o Congresso Nacional e o Poder Judiciário no sentido de impedir que as regras postas pela Constituição sejam cumpridas.

Documentário realizado para o Acampamento Terra Livre, com depoimentos de lideranças e imagens da luta dos indígenas por todo o Brasil.

A constituição Brasileira de 1988 assegura aos povos nativos a posse permanente das terras, cabendo-lhes o uso exclusivo das riquezas em seu interior. No ano 2000 foi proposta, por um executivo da bancada ruralista, a PEC 215, sugerindo que as demarcações de terras indígenas sejam feitas, não mais pela FUNAI e sancionadas pelo ministro da Justiça, mas sim pelo Congresso Nacional. A proposta parte do interesse da chamada bancada ruralista, grupo de deputados e senadores que defendem os interesses do agronegócio, principal inimigo dos indígenas.

Prezia julga que a aprovação da PEC seria um desastre, pois não haveria mais demarcação de terra indígena. Apesar de não conseguir aprovar a PEC, o governo esvaziou a FUNAI, cortou recursos, e colocou como presidente da entidade um militar que segue a cartilha dos ruralistas, aumentando os conflitos. Para o antropólogo, precisa haver mais autonomia da FUNAI por parte do poder executivo e uma vontade política do governo em apoiar os povos indígenas.

A essa proposta soma-se uma série de projetos para alterar os artigos 231 e 232 da Constituição Federal. De acordo com Liebgott, uma dessas artimanhas são as decisões judiciais que tomam por base o que tem sido chamado de “Marco Temporal”. “Isso pressupõe de que as terras indígenas e quilombolas a serem demarcadas seriam somente aquelas efetivamente ocupadas no ano de 1988, quando se promulgou a Constituição Federal. São intensas as pressões de setores agrários e ruralistas sobre o Congresso Nacional, pois as terras indígenas e quilombolas representam novas fronteiras de expansão do agronegócio”, declara ele.

(Foto: Ana Mendes)

Dados do Conselho Indigenista Missionário revelam que atualmente existem 1296 terras, sendo destas 640 regularizadas, as demais se encontram paralisadas ou os processos de demarcação não foram iniciados pelo órgão indigenista.

O coordenador do CIMI região Sul, assegura que no fundo dessa disputa há três argumentos que tentam convencer a população para se contrapor as demarcações. Liebgott alega que esses mesmos argumentos servem ao convencimento de políticos de autoridades do executivo e do judiciário. A primeira das três alegações é que há interesse de grupos estrangeiros nas terras indígenas e isso explicaria o empenho de ONGs e entidades na defesa das demarcações. Outro discurso utilizado é de que há muita terra para os “índios”, presumindo que eles não produzem nas terras onde vivem. A terceira justificativa é a de que não se pode cometer a injustiça de demarcar as terras para os índios e deixar os agricultores e produtores, que alimentam a população, sem terras para produzir.

Um levantamento realizado pelo De Olho nos Ruralistas, com base em informações do Instituto Socioambiental (ISA), aponta que pelo menos 25 projetos de lei que configuram ameaças aos direitos dos povos indígenas tramitam no Congresso, 90% destes projetos foram apresentados pela bancada ruralista. O estudo feito ainda apontou que a maioria desses parlamentares responde algum processo judicial.

Guaranis Mbya

(Foto: Teresa Paris / Comissão Guarani Yvyrupa/Divulgação)

Em meio aos diversos conflitos por direitos indígenas nos últimos anos, o caso mais recente que chamou atenção foi a anulação por parte do Ministério da Justiça da portaria nº 581, de 2015, que garantia mais de 500 hectares de terras guaranis no Parque do Jaraguá. Segundo o Ministério a anulação se deu por erro administrativo no procedimento inicial.

O texto emitido argumenta que a área “foi demarcada sem a participação do Estado de São Paulo na definição conjunta das formas de uso da área”. De acordo com o governo a terra indígena do Jaraguá tem extensão aproximada de três hectares.

Liebgott afirma que essa revisão ocorreu em função de dois fatores essenciais. “O governo tem a intenção de conceder partes da área para s especulação imobiliária e com o intuito de atender aos interesses econômicos que visam à exploração dos parques e áreas ambientais, dentro da lógica neoliberal de privatização. A revisão da demarcação daquela terra ocorreu para atender, portanto, pedido do governo de São Paulo, que pretende entregar aquela região toda para a iniciativa privada”.

No ano passado o governo estadual, enviou um decreto a Assembleia Legislativa privatizando todos os parques estaduais, incluindo o do Jaraguá. De acordo com a lei, os parques serão concedidos por 30 anos para a exploração dos serviços como o ecoturismo, além da exploração comercial madeireira ou de subprodutos florestais.

Por outro lado, existe outro empecilho que dificulta a conclusão do processo de demarcação dessas terras. Desde 2005 a família de Tito Costa, ex-deputado federal e prefeito de São Bernardo do Campo, alega ser dono de uma parte de onde ocorreu a ampliação da área do Jaraguá onde está a aldeia Itakupé.

Atualmente a reserva abriga cerca de 700 nativos de cinco aldeias. A reportagem feita pelo G1 em março deste ano, constatou que moram mais de 140 famílias no local com muitas crianças. Faltam recursos naturais para esses indígenas, a reportagem apontou que esses índios vivem em condições precárias, morando em casas feita de chapas de madeira e chão de barro. Algumas famílias fazem e vendem artesanato, muitas recebem o Bolsa Família.

Depoimento de indígenas explicando o motivo da ocupação do prédio da Presidência da República.

A revogação da demarcação causou uma série de protestos por parte da aldeia e de movimentos que apoiam os indígenas. No final de agosto um grupo de índios e diversos outros movimentos, ocuparam o vão livre do MASP, em seguida saíram em caminhada pela Av. Paulista até a sede da Presidência da República. Os indígenas chegaram a ocupar o hall de entrada do prédio.

(Foto: Luiza Calagian/Comissão Guarani Yvyrupa)

No mesmo dia, indígenas acamparam em frente ao Ministério da Justiça em protesto contra a decisão do governo de reduzir a área da reserva. No dia 13 de Setembro os indígenas ocuparam o pico do Jaraguá como forma de protesto, chegando a desligar antenas de rede, deixando mais de 600 mil pessoas sem televisão.

(Foto: Comissão Guarani Yvyrupa/Divulgação)

A luta pela revogação da portaria nº 683, do Ministério da Justiça, ganhou adeptos nas redes sociais, que subiram a tag “Jaraguá é Guarani” no Twitter com milhares de mensagens, além de eventos e publicações no Facebook. Questionado sobre o papel da Pastoral Indigenista da Arquidiocese de São Paulo, o coordenador Benedito Prezia alegou que desde 1999 a pastoral tem contato direto com a aldeia do Jaraguá, procurando orientar e apoiar essa comunidade no sentido de reivindicação de um espaço maior. Prezia ainda afirmou que após a ampliação da área em 2015, o grupo tem enviado algum recurso material para as famílias que estão na nova aldeia Itakupé.

Na ocasião, a pastoral participou dos atos na Av. Paulista, além de emitir uma nota de repúdio por meio da Comissão Caridade, Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, encampada por outras entidades e movimentos.

Em nota a Comissão declarou que a “portaria é mais um ato violento contra os povos originários do Brasil, e ironicamente sobre um povo que vive às margens da rodovia dos Bandeirantes, referência e perversa homenagem a seus antigos algozes. E mais uma vez tornam-se vítimas de uma política discriminatória, emanada de um governo que deveria, sim, pagar uma dívida histórica, em reparação à prática genocida dos bandeirantes paulistas”.

O texto prossegue reafirmando o repúdio ao decreto do governo e declarando o total apoio das pastorais sociais da Igreja Católica e organismos cristãos comprometidos com a causa indígena.

Na noite do dia 15 de setembro os índios Guarani encerraram a ocupação no Pico do Jaraguá após um acordo com o Governo do Estado. As lideranças indígenas se reuniram com representantes das Secretárias do Meio Ambiente, Segurança Pública e da Justiça e da Defesa da Cidadania. O acordo feito define que o parque não será privatizado, reivindicação dos indígenas, além de não criminalizar as lideranças que participaram dos atos. A reunião também estabeleceu uma comissão intersecretarial para tratar das reivindicações das aldeias indígenas. Apesar do acordo as tribos ainda lutam para que a portaria nº 581 seja revogada.

Reivindicações Indígenas

As questões que envolvem os indígenas não se resumem às demarcações de terra. Diversos outros assuntos foram apresentados e discutidos, mas pouco se fala das propostas apresentadas pelos povos indígenas e comunidades quilombolas.

As exigências são direcionadas à Presidência da República, ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário.

Abaixo algumas das exigências:

Presidência da República

Retomada de todos os procedimentos de demarcação de terras paralisados pela presidência da república no ano de 2013.

Garantia de orçamento para retomada dos grupos de trabalho da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para demarcação dos territórios indígenas.

Garantia de orçamento para titulação dos territórios quilombolas.

Suspensão do Parecer 1 da AGU que impõe condicionantes ao uso dos territórios.

Congresso Nacional

Arquivamento imediato da PEC 215/2000 que visa impedir a demarcação das terras indígenas, pois repassa a responsabilidade ao Congresso Nacional, espaço onde não tem representação dos povos, a decisão sobre reconhecer territórios indígenas e quilombolas.

Poder Judiciário

Que haja, por parte de juízes e magistrados, justa e adequadas decisões no que tange as ações possessórias e de reintegração de posse movidas contra famílias pobres e que lutam por moradia nos espaços urbanos.

Que no âmbito da Justiça Federal, nos Tribunais Regionais, no STJ e STF, sejam revogadas as interpretações restritivas de direitos dos povos indígenas e quilombolas, especialmente no tocante ao marco temporal da Constituição Federal de 1988, tese jurídica desproporcional, pois afronta direitos originários e tradicionais de indígenas e quilombolas.

  • Texto originalmente publicado em https://medium.com/@mathstark25/a-resist%C3%AAncia-ind%C3%ADgena-contra-os-novos-bandeirantes-7040214ea961

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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