QUEM SOMOS [POR NÓS]: exposição traz mulheres da periferia para o centro do debate

Foto: Vinicius Boppre

“A mulher da periferia aparece na televisão, no jornal, quando acontece alguma fatalidade referente a ela. Só nas páginas policiais”.

A frase acima não vem de uma pesquisa de opinião, tampouco de um estudo acadêmico. Ela faz parte do olhar sensível de Rosana Alves de Castro , mulher negra e moradora do Jardim Romano, zona leste de São Paulo, e uma das mais de 100 mulheres envolvidas no projeto “Desconstruindo Estereótipos: eu, mulher da periferia na mídia”, desenvolvido pelo coletivo Nós, mulheres da periferia, de junho a outubro de 2015.

Como resultado desses meses de trabalho, no próximo sábado (21/11) acontece a abertura da exposição QUEM SOMOS [POR NÓS], no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoeirinha.

A exposição será um convite para adentrar ao mundo das mulheres dos bairros periféricos a partir de suas próprias perspectivas. Com fotografias, autorretratos e registro audiovisual daquelas que fizeram parte do processo. O objetivo é fortalecer a representatividade e o protagonismo feminino, contemplando a intersecção entre classe, raça e gênero, já que as mulheres negras foram maioria nas oficinas.

De Perus (zona norte) ao Campo Limpo (zona sul); do Capão Redondo (zona sul) ao Jardim Romano (zona leste); de Guaianazes (zona leste) à Jova Rural (zona norte), foram muitas as narrativas, mostrando como a diversidade da mulher que mora nas bordas da cidade extrapola as paredes cristalizadas pela chamada “grande mídia”.

Manoela Gonçalves, idealizadora da Casa das Crioulas (Perus), uma das entrevistadas e produtoras da Exposição “quem somos [por nós]” — Foto: Vinicius Boppre.

A mulher da periferia na mídia

Quando falamos de periferia na mídia, é importante compreender que este termo traz, em si, relações de conflito entre os grupos sociais. Historicamente, São Paulo se constituiu destinando aos mais pobres os espaços mais distantes do centro da cidade. Essa distância, no entanto, não é apenas geográfica, ela é também simbólica, o que reforça a relação entre dominantes e dominados no espaço social e, assim, no midiático.

Se a mulher, geralmente, é tratada pela mídia de forma limitada, seja nas novelas, comerciais ou imprensa, este problema se multiplica quando se trata da mulher que vive nas bordas da cidade. Uma pesquisa realizada pela É nois | Inteligência Jovem, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, com mais de 2.300 mulheres de 14 a 24 anos, das classes C, D e E, divulgada em junho deste ano, mostra que 86% das mulheres entrevistadas afirmaram não se sentirem representadas na mídia.

“Quando acontece alguma coisa com algumas mulheres importantes fica aquela mídia toda. Se é uma pobre coitada, ali mesmo acabou, ficou por ali mesmo. Devia ser vista com igualdade. A rica, a pobre, a preta, a branca, é tudo mulher”, aponta Rosana Alves Castro, participante das oficinas na zona leste.

A mídia, sendo criada, estruturada e administrada pelos grupos dominantes, colabora, intencionalmente ou não, para a construção de imagens e estereótipos relacionados à periferia. Na tentativa de comunicar para as “massas” uma mensagem padronizada, a mídia cria representações, tipos, perfis do que é considerado como comum e recorrente no que se refere aos bairros periféricos.

Exemplo disso é o que narra uma das participantes das oficinas, Adriana Cristina de Araujo Fernandes Costa, da zona sul, quando uma TV procurou a ONG que faz parte para uma entrevista. “Uma emissora esteve aqui, mas queriam sensacionalismo. Eles não queriam mostrar o trabalho que a gente faz paro o bem. Eles não mostraram nossa oficina, não mostraram fazendo nossas coisinhas, nossas aulas, não mostrou nosso trabalho. Só mostrou a violência doméstica. Acho que teria que mostrar os dois lados”.

Além da mídia estar nas mãos dos grupos dominantes, ela também é produzida majoritariamente por homens e poucas são as fontes femininas que são ouvidas. Os comerciais de TV (principal e mais disponível veículo entre o público feminino residente na periferia) trazem um padrão de beleza que não condiz com a realidade brasileira, formada a partir da multiplicidade de origens e uma forte descendência africana e indígena.

Em relação à mulher negra, especificamente, a mídia, com base nas condições que são ainda resquícios do período escravocrata no Brasil, reproduz situações, tipos, personagens que a colocam em uma das últimas posições do estrato social, como descreve Manoela Gonçalves, fundadora da Casa das Crioulas, em Perus, um dos espaços onde as oficinas aconteceram.

Ser mulher da periferia, uma mulher negra, é sempre estar armada, com uma voz extremamente firme, se impondo para ser respeitada. Eu quero ter uma voz mais doce calma, mas o homem não escuta. A sociedade não nos escuta com uma voz calma. A sociedade escuta nosso grito e depois nos chama de louca, barraqueira. Então, ser mulher negra pra mim é isso, a gente tem que estar sempre lá no afrontamento”.

Renata Ribeiro, moradora do bairro de Perus (região noroeste de São Paulo), uma das entrevistadas e produtoras da Exposição “quem somos [por nós]”. Foto: Vinicius Boppre.

Novelas: a vida que não é nossa

A maioria das novelas trazem como núcleo central a vida da classe média e classe média alta, divulgando um modelo de vida que em nada tem a ver com aquele vivenciado nas periferias do país, e, de forma específica, nas da cidade de São Paulo.

Para Manoela, essas narrativas romantizam as relações das mulheres da periferia. “O choro, o drama, as relações. Na novela não se ensina como ser natural. É muito romance para pouca vida real”, aponta.

E mesmo quando a dramaturgia televisiva traz a favela ou as bordas da cidade para o centro do debate, isso aparece sempre de forma caricatural. A figura do traficante, do sequestrador e da prostituta vendem um retrato infiel e exclusivo da periferia e, principalmente, da gama de mulheres que a compõe.

Para Renata Ribeiro, também de Perus, muito do que ela assiste nas novelas “são mentiras”. “Se eu fosse construir uma mulher da periferia para a novela, seria minha mãe, ela veio para cá, comprou a própria casa. Virou professora, passou na faculdade. Vai comprar suas coisas, seu carro, viaja quando quer. Uma mulher batalhadora. Isso, para mim, seria uma mulher da periferia”, exemplifica.

No noticiário, a periferia aparece, na maioria das vezes, como o espaço da violência e medo. Os casos de abuso sexual e violência doméstica, porém, aparecem com maior frequência, mas apenas nos programas sensacionalistas.

Nos de entretenimento, principalmente aqueles veiculados no período da tarde, o espaço destinado à mulher é sempre supérfluo ou, mais uma vez, sensacionalista. A mãe que procura o filho perdido; a moça que quer emagrecer, a culinária ou as fofocas sobre a novela.

Na mídia impressa, o corpo magro e o cabelo liso tomam as capas das revistas. A moda serve apenas a um padrão de mulher. As receitas de emagrecimento ou de vida saudável dão o tom às narrativas desses periódicos. As mais populares, trazem informações sobre o signo e simpatias ao amor.

Nós queremos aumentar as nossas vozes

Os direitos de nossas mulheres são todos os dias violados, suas dores não são respeitadas, seja quando são parte do ciclo da violência doméstica, seja quando morrem seus filhos, os maridos. Esses programas abusam da fragilidade social e econômica de nossas mulheres para escancarar sua dor como se escancara uma mercadoria.

Assim, a exposição QUEM SOMOS [POR NÓS] vem em um caminho contrário. Nas fotos e quadros, criados por elas próprias por meio dos debates realizados durante as oficinas, é possível notar uma variedade de elementos, que vão desde a rua onde vivem até as plantas de seu quintal. Nas fotos, uma fotografou a outra, evidenciando aquilo que gostariam que houvesse nas revistas, desconstruindo a sexualização sempre presente de seus corpos. São detalhes, são as mãos que simbolizam o trabalho diário, os cabelos que as deixam vaidosas, o batom que não esquecem de passar, os olhos como signo de coragem, o sorriso que, mesmo em meio a tantas dificuldades, ainda floreia em seus rostos.

É dizer que não queremos mais as lentes sempre embaçadas do outro, que, lá de cima, imagina tudo que vê, mas tem medo de molhar os pés no chão da periferia. A grande mídia não sabe um terço sobre nós. E a exposição vai a fundo nas vivências dessas mulheres, humanizando o discurso e mostrando como somos diversas.

Esperamos por todas e todos no próximo dia 21 de novembro, às 15h, no Centro Cultural da Juventude (zona norte de São Paulo).

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

Na frequência do ódio

Na frequência do ódio

O Café com Muriçoca, que passa a ser toda quinta-feira, reflete sobre a perseguição política e o cerceamento ideológico a quem rejeita a riqueza como estilo de vida aceitável.

Juíza federal é referida como “preta desgraçada” por arquiteta branca

Frente à adversidade, Mylene Ramos não apenas buscará a reparação pelos prejuízos sofridos, mas também almejará fazer valer seus direitos como vítima de discriminação. Uma mulher que dedicou sua vida à luta por justiça social agora se posiciona do outro lado da mesa , não mais como juíza ou advogada, mas como alguém que exige dignidade e respeito.