Independente do que aconteça em dezembro, as eleições municipais deste ano já estão marcadas pela tentativa dos partidos de esquerda em produzir seus próprios quadros militares. Têm destaque aqui as candidaturas de Denice Santiago, ex-major da PM e candidata à prefeitura de Salvador pelo PT, e Ibis Pereira, ex-coronel da PM e candidato à vice-prefeito na chapa do PSOL, no Rio de Janeiro.
Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
As candidaturas de Denice e Ibis são alvo de críticas dentro da própria esquerda. Alguns acusam o PT baiano e o PSOL fluminense de estarem colaborando para a “militarização da política”.
Bom, um rápido passeio pela história no Brasil mostra que o engajamento dos militares na política não é nenhuma novidade entre nós. A própria República nasceu com uma quartelada e se consolidou com uma ditadura militar. Outras duas ditaduras ainda sangrariam a sociedade brasileira, uma civil, com Getúlio Vargas, e outra genuinamente militar, entre 1964 e 1985. Nas duas ocasiões, homens fardados estiveram em posição de poder, interferindo diretamente nos destinos da nação.
Existiram também os militares de esquerda, movidos por ideias progressistas. Luís Carlos Prestes, o “cavaleiro da Esperança” eternizado nas páginas de Jorge Amado, e Henrique Lott, o Marechal da Legalidade, estão entre eles.
Nos últimos anos, o perfil do engajamento político dos militares mudou bastante. Não é mais o Exército a única fonte institucional do ativismo político dos militares, mas também as PMs.
O resultado das eleições de 2018 são taxativos: o número de agentes da segurança pública eleitos para o Congresso Nacional saltou de 14 para 73, um crescimento de mais de 500%. A força desses parlamentares é tão grande que eles conseguiram formar uma “frente ampla da segurança pública”, que defende o endurecimento do poder punitivo do Estado e o afrouxamento do controle legal sobre a atuação dos policiais.
Pesquisas de opinião mostram que a violência urbana é vista como o principal problema do país pela sociedade civil. As esquerdas, limitando-se às agendas da desmilitarização das PMs e da descriminalização das drogas, nunca participaram efetivamente desta discussão. A avaliação é de que as polícias militares são o principal problema da segurança pública brasileira, como se o fato de homens armados sitiarem territórios não fosse problema social dos mais graves.
Os dados eleitorais mostram que a população não concorda com essa avaliação.
São muitos os relatos de famílias pobres que foram expulsas de suas casas por traficantes varejistas, que tiveram filhas assediadas. Trabalhadores e trabalhadoras convivem com assaltos diários, com constantes ofensivas contra o pouco patrimônio que possuem.
Tudo isso acaba fomentando no imaginário coletivo a ideia de que a violência policial é um problema menor, ao mesmo tempo em que os políticos de esquerda estariam “defendendo bandido”.
Quando o PT e o PSOL trazem para o primeiro plano de seus projetos eleitorais em duas importantes capitais quadros egressos das PMs, o objetivo é exatamente mostrar que a esquerda tem, sim, um plano para a segurança pública, que não passa pela rejeição à polícia e tampouco pela leniência com criminosos.
Não há projeto de segurança pública viável e digno de confiança que se sustente na rejeição à polícia, que não reconheça a importância do uso legítimo da força pelo Estado.
Tanto Denice como Ibis têm em sua ficha funcional histórico de bons serviços prestados à população, na forma de uma polícia educativa, cidadã e respeitadora dos direitos humanos. Denice se destacou comandando a “Guarda Maria da Penha”, que protegia mulheres vitimas de agressão doméstica. Ibis é conhecido no Rio de Janeiro por sua atuação em projetos sociais de educação popular.
Denice e Ibis foram policiais. Mas não eram policiais que executavam e torturavam, simplesmente porque não precisa ser assim. É possível ser diferente, porque dentro das corporações há bons servidores, lideranças que podem ser disputadas e servir como gatilho para um debate institucional que mostre aos próprios policiais que, do jeito que vai, não está bom pra ninguém. A polícia mata e também morre.
Do outro lado, a esquerda tem a chance de amadurecer projetos para a segurança pública que consigam conquistar a confiança da população, que em geral só quer viver uma vida tranquila, usufruindo da pouca propriedade que tem. Quando é pouca, propriedade é ainda mais valiosa.
Não, definitivamente, a polícia não tem que acabar. As polícias são fundamentais para o contrato social civilizado, são a garantia de que eu, pessoa privada, não preciso usar a força pra proteger minha vida e a minha família. A polícia precisa mesmo é mudar e o fato de termos Denice e Ibis mostra que isso é possível.
Provavelmente, nenhum dos dois será eleito. Ao que tudo indica, as esquerdas brasileiras sofrerão mais uma dolorosa derrota. Mas se as candidaturas de Denice e Ibis forem capazes de despertar novas lideranças progressistas, sem o vícios da militância caricata e capazes de se reconectar com os sentimentos do nosso povo, já teremos lampejo de esperança.