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PL 529: O projeto de Doria para o fim de SP

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O governo Doria enviou para a Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei (PL) 529/2020, que altera diversas estruturas do governo, autarquias e tributos. O projeto envolve mudanças radicais para o Estado e foi mandado com pedido de urgência. As justificativas para as mudanças foram a crise do coronavírus (Covid-19) e as contas do governo.

Em meio a pandemia o mundo viu milhares de vidas serem levadas pela doença e a maior parte das economias apresentarem resultados negativos. Mesmo se colocando em contraposição a forma de Bolsonaro conduzir a pandemia, João Doria apresenta um PL muito semelhante as propostas de enxugamento do Estado, na forma como o presidente tem feito.

O PL foi apresentado para a Assembleia no último dia 13 e recebeu 623 emendas.  Uma entre as tantas propostas do texto original é a extinção de 10 empresas e fundações públicas, entre elas CDHU, Furp e EMTU. O projeto atinge também as universidades paulistas, limitando a capacidade de investimento da USP, Unicamp, Unesp e da fundação para financiamento de pesquisas, a Fapesp. Para os servidores públicos do Estado, o governador oferece aumento da contribuição obrigatória ao Iamspe e um Programa de Demissão Incentivada (PDI).

Além de analisar pontos do projeto consultamos o deputado estadual Teonilio Barba (PT) e Otávio Barduzzi Rodrigues da Costa, advogado e professor, para entender o projeto e suas consequências. 

Deputado Teonilio Barba(Foto: Divulgação)

Para o deputado Barba, o PL é “um projeto de desmonte do Estado, como ele havia prometido na campanha”. Sobre os efeitos diretos, Barba estima que mais de 5 mil trabalhadores serão afetados pela extinção das empresas: “ele propõe um PDI, o governo indica quem vai em embora e é isso, com um bônus, mas não fala de valores. Se ele privatizasse no lugar de extinguir, e não estou defendendo a privatização, poderia propor que os trabalhadores fossem incorporados, mas não tem nada disso”.

Já entende Costa o projeto como inconsequente “não se administra o Estado como uma instituição privada. Primeiro, a finalidade de uma empresa privada é dar lucro e a finalidade do Estado é cuidar da população. Está ideologia furada de que o Estado tem que dar lucro é contra a própria instituição do Estado”.

O tamanho do PL 529

O projeto, que no texto original conta com mais de 60 páginas, envolve diversas áreas do Estado. Segundo Barba, se fosse separado pelos objetos que contém e as áreas que afeta, caberiam, no PL 529/2020 , 15 projetos de lei. A justificativa do projeto é assinada por Henrique Meirelles (ex-ministro da fazenda no governo Temer), secretário da Fazenda e Planejamento, e Mauro Ricardo Machado Costa, secretário de Projetos, Orçamento e Gestão.

A justificativa do governo é tentar contornar um rombo de cerca de 10 bilhões no caixa de São Paulo causado ela pandemia, mas o texto, mesmo sendo longo, apresenta poucas estimativas, estudos ou dados. Para Costa o tamanho do projeto é incomum “não há limites legais para um PL. Existem mais longos, do que este, mas não é usual. Vai dar trabalho mesmo e exigir um grande tempo, se for tratar de cada ponto individualmente”.

As principais propostas são

A)      “Extinção de entidades descentralizadas” que busca dar “descontinuidade e/ou transferência para outros órgãos e entidades da administração pública estadual ou, em casos específicos, à iniciativa privada” para 10 entidades (Fundação Parque Zoológico de São Paulo; Instituto Florestal; FURP; FOSP; CDHU; EMTU/SP; SUCEN; IMESC; DAESP e ITESP);

B)       A alteração das contribuições dos servidores para o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE);

C)       Venda de imóveis “da Fazenda Pública do Estado de São Paulo e de autarquias”;

D)      Alterações na Carteiras dos Advogados e das Serventias;

E)       Repasse para a conta do Tesouro estadual superávit financeiro de fundos de despesa, “autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações”;

F)       Reduzir os benefícios fiscais do ICMS e IPVA;

G)      Altera a “autorização para securitização de recebíveis tributários e não tributários”;

H)      Programa de Demissão Incentivada (PDI) para servidores;

I)         Alterações de responsabilidade da atual Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo (ARTESP);

J)        Concessão da “exploração de serviços ou de uso, total ou parcial” dos parques “Villa Lobos, Parque Candido Portinari, Parque Fernando Costa – Água Branca, Parque Estadual do Belém Manoel Pitta, Parque Chácara da Baronesa, Parque da Juventude – Dom Paulo Evaristo Arns, Parque Ecológico do Guarapiranga e o Complexo Olímpico da Água Branca, Conjunto Desportivo Baby Barioni”;

K)       Alterações nas formas de “transação de créditos de natureza tributária ou não tributária”;

L)       Possibilitar aos PMs ativos a “trabalharem nos períodos de descanso da escala de trabalho” e que policiais reformados retornem “ao trabalho em atividades-meio”;

M)     Atribuir à SPPREV competência “para o processamento da folha de pagamento do Sistema de Proteção Social dos Militares do Estado até a conclusão do processo de estruturação da Caixa Beneficente da Polícia Militar”;

N)      Alterar os valores de emissão da Carteira Nacional de Habilitação e do Licenciamento de Veículos e

O)      Diminuir a validade dos “créditos da Nota Fiscal Paulista, de 60 (sessenta) para 12 (doze) meses”.

O deputado Barba aponta a contradição do projeto com o orçamento do governo

“está aprovado na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2021 a renúncia fiscal de 23 bilhões. Ou seja, enquanto o governador dá para os empresários, ele quer neste projeto tirar a desoneração fiscal da compra de automóveis e produtos para pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência que compram o carro adaptado não vão ter mais renúncia sobre o IPVA. João Doria é amigo dos empresários, temos que ter claro isso. Ele vai fazer tudo que beneficie os empresários”

A votação

No começo deste ano, a maioria dos deputados na Assembleia Legislativa já votou com Doria no projeto da reforma da previdência no Estado. Com protestos e forte resistência dos servidores públicos, a votação só foi possível graças à violência da PM, que barrou o acompanhamento da votação nas dependências da chamada Casa do Povo. Mesmo que a pandemia dificulte atos e manifestações, por conta dos protocolos de saúde, ainda são organizados alguns atos, como os dos professor que protestaram contra a volta às aulas presencias o ato contra o racismo e assassinato de George Floyd ou o breque dos apps.

Para Costa o projeto

“é uma aberração jurídica e deveria-se colocar cada ponto em legislação própria. O que for para legislação complementar deve ser arguido em legislação complementar. O que for arguido em legislação ordinária deve ser legislação ordinária e o que for para constituição Estadual que seja proposto por emenda constitucional estadual”

Agora, as bancadas de oposição, junto com deputados que, mesmo sendo da base de Doria, são contrários ao PL 529/2020, tentam garantir que o debate das propostas e ganhar tempo para que haja mobilização da sociedade. É possível desmontá-lo, conta Barba, “nosso primeiro objetivo é obstruir o projeto. E vamos tentar fazer uma batalha igual à da reforma da previdência e à dos precatórios. Na dos precatórios perdemos por um voto. E a batalha da previdência perdemos por dois votos.  Estamos dialogando e buscando apoio”.

Diversos deputados se manifestaram contrários ao projeto, seja por seu tamanho e complexidade para serem tratados dentro de um só PL ou pelos ataques aos serviços públicos e seus servidores. Mesmo deputados que se distanciam das posições defendidas pelos partidos progressistas se colocaram contra o projeto. É o caso da Janaina Paschoal (PSL) que se manifestou contra o fechamento do Oncocentro e do Imesc e da deputada Valeria Bolsonaro (PSL) que se coloca contra os artigos 14, 16 e 17 por considerar que eles  retiram “um grande volume de recursos de diversos Fundos Especiais de despesa, financiamento e investimento” e que “as universidades estaduais paulista e a Fundação de amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP terão um impacto grave nos recursos”.

Mesmo assim a batalha não será fácil, “Doria tem uma condição de apoio que chega próximo de 50 deputados. Chegou em 57 votos na reforma da previdência, no primeiro turno, e 59, no segundo, em função do PSL ter dado no entorno de 11 ou 12 votos. A base aliada faz barulho, mas depois vota como ele manda, já que tem cargos no governo, e se não votar ele tira os cargos” conta o deputado petista.

Saúde?

A justificativa para o projeto é a pandemia, mas se destacam as propostas que buscam extinguir órgãos de saúde. Furp, Oncocentro e Sucen são entidades do governo diretamente ligadas ao atendimento e à pesquisa em saúde e serão extintas com o PL 529. Também é colocado no projeto o Iamsp.

Sobre o aumento da contribuição dos servidores ao Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual, o deputado Barba diz que “o Iamspe tem que ser sustentado em conjunto pelo governo do Estado e seus servidores. Mas o que Doria quer fazer? Quer aumentar essa alíquota para que o governo não tenha que colocar a sua parte. Mais uma vez é o Doria atacando os serviços públicos, mas nas costas dos servidores”. O instituto em questão

A Furp, ou Fundação para o Remédio Popular “Chopin Tavares de Lima”, é um laboratório farmacêutico estadual responsável pela produção de remédios de baixo custo, criado em 1968. Hoje conta com duas unidades, em Guarulhos e Américo Brasiliense, e produz cerca de 38 medicamentos, segundo a empresa. Em 2019, o governo já tinha proposto sua extinção.

Para Barba, o motivo de sua extinção é que

“com certeza deve ter algum amigo dele no setor de fármaco que absorverá a produção desses remédios. É um dos setores mais ricos do mundo e do Brasil. Os custos de produção da Furp são muito baixos. Não só da Furp, mas de fármacos em geral. O que é caro? Os investimentos em pesquisa. Com certeza os amigos do João Doria estão comemorando”

No texto do PL 529, a justificativa para o fim da Furp é que a “demanda por esses medicamentos pode ser suprida pelo mercado produtor privado”.

A Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), criada em 1970, é responsável por controlar e acompanhar as endemias no estado. Entre as principais doenças que acompanha estão: Arboviroses, Doença de Chagas, Malária, Febre Maculosa, Febre Amarela, Esquistossomose, Leishmaniose Tegumentar Americana, Leishmaniose Visceral e relacionadas aos Animais Incômodos e Peçonhentos. Em 2019, Doria também havia tentado fechar a empresa e agora, no PL 529, a justificativa foi que a Secretaria Estadual de Saúde vai assumir as responsabilidades. “A Sucen é extremamente importante para o combate aos borrachudos na Baixada Santista, por exemplo. Nesse combate [aos borrachudos] você tem que ir nas nascentes dos rios, nas serras, e colocar os remédios nas nascentes. Além de que, é um momento de pandemia quando ele coloca isso”.

A Fosp (Fundação Oncocentro de São Paulo) foi fundada em 1967 por professores da USP e adquiriu sua forma atual em 1986. Desde então, tem focado em pesquisar “ações médico-assistenciais em oncologia”, segundo o site da instituição. Para justificar seu fim o governo menciona que os hospitais universitários e o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo realizam as mesmas atividades.

Universidades

Nos artigos 14, 15, 16 e 17 do capítulo 5 estão colocados dispositivos que podem retirar o superávit (saldo positivo) das três universidades paulistas (USP, Unicamp e Unesp) e da Fapesp, que seleciona projetos de pesquisa nas universidades e oferece bolsas para sua elaboração. Juntas, as três instituições de ensino superior têm a maior produção em pesquisa do país.

O artigo 14 estabelece que “o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial das autarquias, inclusive as de regime especial, e das fundações, será transferido ao final de cada exercício à Conta Única do Tesouro Estadual”. Já o artigo  16 coloca que “todos os fundos especiais de despesa e fundos especiais de financiamento e investimento poderão destinar as receitas arrecadadas” e o artigo 17 finaliza  estabelecendo que o “superávit financeiro apurado em balanço ao final de cada exercício dos fundos do Poder Executivo será transferido à Conta Única do Tesouro Estadual”.

Ato de estudantes da Unesp em frente a Reitoria da Universidade , em 2019 (Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres)

USP, Unicamp e Unesp são autarquias especiais que detêm autonomia financeira.  A cada ano, elas recebem uma cota estabelecida do que foi arrecadado com ICMS no Estado. Assim, podem planejar o manejo de recursos e realizar investimentos ou reservas. Para Costa “o superávit tem que ser discutido em LDO. É possível de se fazer, mas na LDO. Essas instituições tinham uma verba, mas de uma hora para outra quer se retirar [o superávit]. Eu entendo que seja direito adquirido e as instituições podem entrar com [pedido de] inconstitucionalidade”.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBCP) manifestou-se sobre o PL dizendo que “os fundos das Universidades, de seus Institutos de Pesquisa e da Fapesp não constituem superávit, mas sim reservas financeiras para manutenção e para financiamento de projetos”.

Barba endossa esse entendimento: “Quando você elabora e formula uma pesquisa, ela não é feita em cinco dias. Não é pesquisa eleitoral. É investimento em novas descobertas e tratamentos. Se você separa um milhão de reais para fazer uma pesquisa, por exemplo, para descobrir formas de tratar o coronavírus, isso demora sete, oito meses… até um ano ou mais. Você não separa quinhentos mil e investe de uma vez. Vai sendo feito por etapas, conforme a pesquisa vai avançando. Ele [Doria] está dizendo que, no caso das universidades, o dinheiro que sobrar vai ser devolvido para o tesouro. Ele diz que não pode ter dinheiro nas universidades”.

Efeitos do PL

Milhares de pessoas sentirão os feitos do PL 529 no Estado de São Paulo. Todos que são atendidos pelos serviços oferecidos, direta ou indiretamente, terão suas vidas afetadas. Com as demissões de servidores o projeto pode causar um efeito contrário ao que propõe “isso pode significar ineficiência. Por exemplo, alguém do instituto florestal que entende muito sobre legislação ambiental. Aí se acaba com todo a estrutura de preservação ambiental do estado, esse funcionário vai ser colocado em que órgão? Ele tem que ser reabsorvido”, explica Costa.

Com o fim do Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo), que trabalha com regularização fundiária e assistência técnica, poderá deixar nove mil famílias desassistidas, com impactos negativos sobre a garantia da segurança alimentar e a inclusão produtiva.

A extinção da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) também deixará marcas. Criada em 1949, ela é responsável por desenvolver projetos de habitação popular e ajudar no planejamento urbano.  A justificativa para seu fim é que “com as Parcerias Público-Privadas na área da habitação, a CDHU perdeu espaço na operação direta de construção e financiamento habitacional”.

Página de rede social do governador João Doria em que  anuncia entregas de casas da CDHU (Foto: Divulgação)
Página de rede social do governador João Doria em que anuncia entregas de casas da CDHU (Foto: Divulgação)

Outro efeito, segundo Costa, serão as possíveis ações que podem ser movidas contra o estado

“mesmo se passar o PL, vão se seguir um sem número de ações de inconstitucionalidade que podem durar anos. O Doria pode conseguir agradar seus financiadores privatistas, mas depois os custos desses processos vão para o Estado, não para a iniciativa privada. No Brasil as privatizações são assim, privatizasse o lucro e o prejuízo é do Estado. Vai sobrar para o contribuinte”

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7 Comments

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  1. Edson

    29/08/20 at 16:07

    Depois que passou que a SPPREV vai descontar 12% de quem ganha a partir de 1.034,00, dá para se ter uma idéia o que vai vai acontecer com este projeto. Lembra-me Shakespeare, (muito barulho por nada). Enquanto isso, em Brasília estão tentando aprovar 14ª salário. Um abraço,

  2. Simone Cristina Kawabata

    30/08/20 at 3:17

    A FOSP, também tem laboratório de grande fluxo para o diagnóstico de câncer (exames de Papanicolau e imunofluorescência) e tem um serviço de reabilitação de pacientes com sequelas de cirurgias oncológicas na região de cabeça e pescoço. Serviço essencial para q os pacientes sejam reinseridos na sociedade, após vencer o câncer. Devolve estética e funções básicas, mas essenciais, como alimentação, fonação…
    Para onde irão estes pacientes???

  3. Fabio

    01/09/20 at 19:55

    Cade a economia, cadê o gestor eficiente.

  4. Fernando Braga

    01/09/20 at 20:10

    O PL não é um projeto pra reduzir despesas. É um projeto político de poder!
    A EMTU é autossuficiente, não depende do Estado e não deve nada a ninguém.
    Basta ver seus balanços auditados!
    Querem destruí-la transferindo suas atribuições para uma empresa deficitária?
    A quem interessa ter poder sobre empresários de tantas empresas de transporte?

  5. Renato Fonseca

    05/09/20 at 21:15

    É triste demais verem querer a destruição de uma empresa saudável com base em tantas mentiras plantadas.
    A EMTU nem tem como dever um bilhão de reais.
    Empresa independente que não deve nada a ninguém.
    Como a política é sórdida.

  6. Adilson Araujo de Souza

    15/09/20 at 14:52

    A CDHU, graças à carteira de mutuário ativa com + de 300 mil mutuários é autossuficiente e ainda reinveste em novas moradias. Sua extinção implica na extinção de acervo técnico e, principalmente, dos técnicos que formulam as políticas habitacionais e urbanas há décadas.

  7. Pingback: Manifestação contra PL 529 na Alesp | Jornalistas Livres

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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