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OS MAUS MILITARES E OS PÉSSIMOS CIVIS

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ARTIGO

Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

 

Sob olhares complacentes de muitos civis, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) vai assumindo, cada dia mais, a sua face militarizada. Como se não bastassem o presidente e seu vice serem militares, são militares também os integrantes da “cozinha” do Palácio do Planalto – Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. Além disso, 2.500 outros ocupantes de cargos no atual governo são militares ou seus parentes.

Com o pedido de demissão do ministro da Saúde, Nelson Teich, até esse cargo, em plena pandemia de coronavírus, passa a ser exercido, interinamente, por um general, Eduardo Pazuello. Sua missão, ao que parece, será autorizar o uso da controvertida substância cloroquina no tratamento de pacientes com o covid-19, na contramão do que recomendam as autoridades da área de saúde de quase todos os países e a própria Organização Mundial da Saúde (OMS).

Oficialmente, o Brasil é uma democracia, com as “instituições funcionando”, como fazem questão de dizer civis e militares que apoiam o governo. Em que pese isso não ser a expressão da verdade, pois as instituições não funcionam para todos (o ex-presidente Lula que o diga) a pergunta que deve ser feita é: mantida a situação atual, por quanto tempo mais as instituições ainda funcionarão?

Apesar de todos os problemas que tem criado para o Brasil e para os brasileiros, Bolsonaro continua contando com o apoio do que se pode definir como “maus militares” e “péssimos civis”, pessoas que não levam em conta os interesses da maioria da população e nem mesmo os chamados interesses nacionais. Vale dizer: os interesses efetivamente brasileiros num mundo em rápida e profunda transformação.
“Mau militar” era como Ernesto Geisel, penúltimo general a ocupar a presidência da República
após o golpe de 1964, definia o capitão reformado Bolsonaro. Já “péssimos civis” ou
“vivandeiras de quartel” foram termos cunhados pela imprensa na década de 1950, para se
referir aos políticos que viviam pedindo a intervenção militar contra governos legitimamente
eleitos como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Em meados de 1960, a mesma
denominação foi utilizada para os civis que “clamavam” para que os militares impedissem “a
comunização do Brasil”, diante das Reformas de Base propostas pelo presidente João Goulart.

Devidamente repaginadas “as vivandeiras” reapareceram em 2016 e se mantém em plena
atividade nos dias atuais.

TINTURA ESCURA

O governo Geisel (1974-1978) deu início à descompressão política ou, como preferia dizer o seu ministro da Justiça, Petrônio Portela, à “abertura lenta, gradual e segura”. Geisel percebeu que não havia como manter a “panela de pressão” tampada, devido à recessão, à crise econômica internacional, provocada pelo segundo choque do petróleo, e ao desgaste dos próprios militares no poder, incluindo aí fartas acusações de corrupção.

O início da abertura valeu a Geisel (1907-1996) o adjetivo de “comunista” por parte de seu ministro do Exército, general Sílvio Frota. Frota, aliás, fez uma lista à la marcathismo, onde denunciava a “presença de 100 comunistas no governo”. Geisel, por sua vez, agiu rápido e em uma verdadeira ação de guerra, demitiu Frota, antes que ele pudesse esboçar qualquer reação. Detalhe: o chefe de gabinete do general Frota era um jovem militar de nome Augusto Heleno.
Geisel pode ser entendido como um dos últimos militares a se preocupar com o
desenvolvimento autônomo do Brasil, ao elaborar e colocar em prática o II Plano Nacional de Desenvolvimento. Ele instituiu o Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), de modo a diversificar a nossa matriz energética. Deu início à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em parceria com o Paraguai. Assinou acordo com a Bolívia para que ela ofertasse gás ao Brasil e ainda firmou um acordo nuclear com a então Alemanha Ocidental. Era o Brasil assumindo o seu tamanho e a sua importância no mundo e deixando de lado a subserviência aos Estados Unidos.
Em entrevista concedida aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso de Castro, em 1993,
publicada em livro pela Fundação Getúlio Vargas, Geisel afirmou que os “militares devem ficar
fora da política partidária, mas não da política em geral.” Segundo ele, todo político que
começa a se “exacerbar em suas ambições logo imagina uma revolução a cargo das Forças
Armadas”. Não por acaso, Geisel é um nome nada querido entre os militares que estão hoje
no poder.
Não é por acaso também que os documentos liberados pelo governo dos Estados Unidos
sobre o período da ditadura no Brasil (1964-1985) apontam apenas ele como tendo sido
conivente com torturas e repressão política. Convenientemente, esses documentos ignoram o
mais repressor desse ciclo de generais-presidentes, Emílio Garrastazu Médici.

Em recente artigo publicado no “Estado de S. Paulo”, diário conservador paulistano, o vice-
presidente Hamilton Mourão tentou colocar-se como um estadista e sutilmente distanciar-se
de Bolsonaro. Para alguns, seu artigo, de cunho nitidamente autoritário, pode ser entendido
como um esboço de programa de governo, para a eventualidade de impeachment de
Bolsonaro. Mas Mourão não conseguiu nem uma coisa e nem outra. Ele apenas confirmou a
avaliação de que não há diferença entre os dois, exceto o tom mais escuro da tintura que usa
nos cabelos.

RONDON E GÓIS MONTEIRO

Como oficial de patente inferior, o capitão reformado Bolsonaro não fez o curso de Estado
Maior das Forças Armadas, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, chegando no máximo a ser
um professor de educação física. Talvez isso o tenha levado a votações menos alinhadas com
os interesses privativistas e estadunidenses nos 27 anos em que esteve na Câmara dos
Deputados, como integrante do “baixo clero”. Situação que se alterou completamente ao
chegar ao poder e rodear-se de grupos, seja na política, na economia (que ele diz não entender
nada) e também em se tratando das relações exteriores, que passaram a se pautar pela
cartilha do Tio Sam.
Os militares sempre estiveram presentes na história do Brasil, desde os primórdios da própria
República (proclamada por eles), passando por movimentos como o Tenentismo, a Coluna
Prestes, a Revolução de 1930, o golpe de 1964 e a luta armada contra a ditadura militar entre
1968 e 1974. Diferentemente de agora, amplos setores militares tiveram, ao longo da história,
grande preocupação com o desenvolvimento econômico e social brasileiro e estiveram à
frente de importantes projetos e lutas nesse sentido.
Desses militares, talvez o nome mais conhecido seja o do marechal Cândido Mariano Rondon
(1865-1958), que se notabilizou como o primeiro presidente do Conselho Nacional de Proteção
aos Índios e um dos criadores do Parque Nacional do Xingu, ao lado dos irmãos Villas-Boas e
de Darcy Ribeiro. Em 1956, em sua homenagem, o território de Guaporé passou a denominar-
se Rondônia. Se estivesse vivo, Rondon estaria indignado com o tratamento que o governo
Bolsonaro vem dispensando aos índios e com o desmatamento e destruição da floresta
Amazônica.
Ainda na primeira metade do século passado, nomes como os do coronel Mário Travassos
(1891-1973) e o do general Pedro de Góis Monteiro (1880-1956) se destacaram como
formuladores de importantes medidas para os interesses brasileiros. É de Travassos o livro

“Projeção Continental do Brasil”, um dos primeiros estudos sobre geopolítica feitos no país.
Sua maior contribuição, no entanto, foi ter introduzido o conhecimento científico na formação
de oficiais do Exército brasileiro, capacitando-os a entender os problemas e desafios do país e
do mundo. Esse tipo de ensino foi suprimido das academias militares depois do golpe de 1964.
Já o general Góis Monteiro merece ser lembrado pela enorme contribuição que deu para a
condução da diplomacia e da política externa brasileira, especialmente no que diz respeito às
críticas ao imperialismo das grandes potências e à necessidade de o Brasil se organizar para
não ficar a mercê desses interesses. Góis Monteiro antecipou, em décadas, problemas
atualíssimos, como os graves riscos do governo brasileiro ser subalterno aos Estados Unidos,
como é o caso de Bolsonaro.
Durante o período compreendido entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o golpe de 1964,
não havia um pensamento monolítico tanto em termos de formação quanto na visão de
mundo dos oficiais das Forças Armadas brasileiras, o que possibilitava o debate, muito distante
da ordem unida que passou a vigorar nas décadas seguintes.

O PETRÓLEO E O SUBMARINO

Antes de 1964, ainda estavam presentes as lições desses e de outros grandes militares. Lições
nas quais certamente se inspirou o marechal Júlio Horta Barbosa (1881-1965), presidente do
Conselho Nacional do Petróleo, ao assinalar, por exemplo, que “pesquisa, lavra e refinação do
petróleo constituem as partes de um todo, cuja posse assegura poder econômico e poder
político”. Horta Barbosa notabilizou-se como um dos principais defensores do monopólio
estatal do petróleo e um dos expoentes da campanha “O Petróleo é nosso”, uma das maiores
já realizadas no país. Na época, o Brasil discutia a necessidade de se instituir esse monopólio e
a criação de uma empresa para o setor, que viria ser a Petrobras.
Outros generais, como José Pessoa (1885-1959), que comandou a Escola Militar do Realengo,
tinha posição semelhante no que diz respeito ao desastre que seria para o Brasil entregar aos
trustes estrangeiros a exploração e o aproveitamento das nossas riquezas minerais. Em
meados do século passado já era sabido que o Brasil possuía enormes reservas de urânio e
nióbio, o que gerava a cobiça internacional.
Por isso, o almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976) buscou implementar um
programa nuclear para o Brasil, no que encontrou fortíssima oposição dos Estados Unidos. A
título de exemplo, os Estados Unidos propuseram à Organização das Nações Unidas (ONU) o
Plano Baruch, que previa a internacionalização de minérios radioativos que ficariam sob a

guarda de um organismo da própria ONU sobre o qual os EUA tinham total ascendência. Como
representante do Brasil na ONU, Álvaro Alberto conseguiu derrotar a proposta.
Os esforços de Álvaro Alberto foram retomados recentemente por outro almirante, Othon
Luiz Pinheiro, que presidiu a estatal Eletronuclear até 2015. Criada como subsidiária da
Eletrobras, ela tinha, entre suas funções, construir o primeiro submarino nacional movido a
propulsão nuclear, fundamental para patrulhar a extensa costa brasileira, a “Amazônia azul”,
como a Marinha define o território marítimo brasileiro, cuja área corresponde à superfície da
floresta Amazônica. Othon Luiz pagou caro pela “audácia”, ao ser preso e condenado, por
suposta corrupção, em uma operação desdobramento da Lava Jato.
O “crime” de Othon Pinheiro, em última instância, teria sido não fazer concorrência e nem ter
dado a devida publicidade a compras de material para o projeto do submarino nuclear
brasileiro, que se tornava mais necessário ainda depois da descoberta do pré-sal. No caso,
cabe a pergunta que a mídia corporativa brasileira não fez: qual país no mundo divulga edital
de concorrência para a realização de projetos estratégicos ligados à segurança nacional?

OS CIVIS SEMPRE CONSPIRARAM

A tradição de políticos, empresários e intelectuais conservadores e liberais baterem às portas dos quartéis é longa no Brasil. Ela se faz presente em governos de cunho popular, sempre tachados de “esquerdistas”. Foi assim que Getúlio Vargas, logo após instituir o monopólio estatal do petróleo e criar a Petrobras, enfrentou uma campanha difamatória de tal porte (o “Mar de lama”) que acabou pondo fim à vida com um tiro no peito. Foi assim também que, em duas oportunidades, antes de tomar posse e próximo ao fim de seu mandato, Juscelino Kubitschek teve que enfrentar o golpismo de militares insuflados por civis da UDN.
A primeira dessas tentativas aconteceu com a Revolta de Jacareacanga, que estava diretamente ligada às eleições de 1955 ganhas por ele e João Goulart. A dupla, que fazia parte da chapa PSD-PTB, havia vencido os políticos da UDN, à qual se ligava parte dos oficiais da Aeronáutica. Esses oficiais não aceitavam o resultado das eleições e foram contidos pelo então ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott (1894-1984). A Revolta de Jacareacanga durou 19 dias e teve lugar no sul do Pará.
Já a Revolta de Aragarças, que eclodiu no início de dezembro de 1959, começou a ser articulada dois anos antes. O objetivo era bombardear os Palácios de Laranjeiras e do Catete, no Rio de Janeiro. Alguns de seus integrantes tinham participado de Jacareacanga e o objetivo, como sempre, era afastar do poder “políticos corruptos e comprometidos com o comunismo internacional”.

Ela contou com a participação de militares da Aeronáutica e do Exército, mas durou apenas 36 horas. Seus líderes, depois de rumarem de avião para a cidade de Aragarças, em Goiás, fugiram para países vizinhos, só retornando ao Brasil no governo de Jânio Quadros.
Mais uma vez, coube ao general Lott derrotar os golpistas.
As principais características de Lott eram o legalismo e a profunda convicção democrática.
Características que incomodavam os militares que participaram do golpe de 1964. Seu enterro,
em 1984, um ano antes da saída do general João Figueiredo do poder, não teve condecorações
marciais ou honras de mérito militar, mas contou com a presença de Leonel Brizola, então
governador do Rio de Janeiro, que decretou luto oficial pela perda de tão importante
personagem da história brasileira.
Como comprova René Dreifuss no monumental livro “1964, a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe”, as “vivandeiras” de quartel nunca deixaram de conspirar com os militares para derrubar governos dos quais discordavam e não conseguiam vencer pelo voto. A UDN, no período compreendido entre 1946 e 1964, não ganhou uma única eleição presidencial. Recentemente, o caso que mais se assemelha é o do PSDB que, igualmente cansado de perder eleições, deu início, através de seu candidato derrotado em 2014, Aécio Neves, ao golpismo que acabou por derrubar Dilma Rousseff.
Dreifuss relata, com riqueza de detalhes, como se deu a articulação entre civis no pré-1964. Além de baterem às portas dos quartéis, civis como os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, esse último também um poderoso banqueiro, mobilizaram dezenas de grandes empresários, ruralistas, donos da mídia e intelectuais com o objetivo de derrubarem Goulart. A articulação contava com o apoio dos Estados Unidos.
O então maior magnata da mídia brasileira, Assis Chateaubriand, dono dos Diários e Emissoras Associados, abriu todas as baterias de seus jornais, emissoras de rádio, de televisão e da maior revista da época, o Cruzeiro, contra Goulart. Roberto Marinho ainda não possuía televisão, mas garantiu todo o espaço de seu jornal e da rádio Globo para que Carlos Lacerda e quem mais quisesse atacar Goulart.
Recursos desses empresários e também de Washington financiaram entidades como o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos
(IPES). A atuação do IBAD influenciou as eleições para o Congresso Nacional, onde inúmeros
parlamentares conservadores tiveram suas campanhas bancadas por ele.

Já o IPES produziu parte do material de propaganda contra Goulart veiculado como notícia em
jornais, rádios e até no cinema, em um popular informativo semanal que antecedia a exibição
dos filmes. Nos dias atuais, quem mais se assemelha ao IPES é o Instituto Millenium, um think
tank sediado no Rio de Janeiro, que se propõe a promover “valores e princípios de uma
sociedade livre, baseados no direito de propriedade e no livre mercado”.

DE BRAÇOS DADOS

Nos 21 anos em que durou o regime militar no Brasil, maus soldados e péssimos civis
estiveram de braços dados. O economista Roberto Campos, por exemplo, foi o primeiro
ministro do Planejamento no governo Castelo Branco. Seu alinhamento aos interesses dos
Estados Unidos era tamanho que seu apelido se tornou “Bob Fields”. No governo Bolsonaro,
seu neto, que tem o mesmo nome, preside o Banco Central.
Já o híbrido de militar e político, Juracy Magalhães, foi nomeado também no governo de
Castelo Branco como embaixador brasileiro nos Estados Unidos. É dele a tristemente célebre
frase “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Frase que antes do chanceler
terra-planista de Bolsonaro, Ernesto Araújo, fazia corar de vergonha os nossos diplomatas.

A relação dos péssimos políticos – fisiológicos e integrantes das bancadas do Boi, da Bíblia e da
Bala – é enorme. Há quatro anos, eles estiveram na linha de frente na ferrenha oposição e na
derrubada da presidente Dilma Rousseff, num golpe travestido de impeachment.

Desses, os nomes de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer,
vice-presidente de Dilma, e do juiz e até poucas semanas atrás, ministro da Justiça de
Bolsonaro, Sérgio Moro, talvez sejam os mais emblemáticos. Cunha só deu início ao processo
de impeachment contra Dilma, porque ela não aceitou pedir que o PT “aliviasse a barra para
ele” em um processo na Comissão de Justiça do Legislativo. Acusado em vários processos de
corrupção, Cunha foi afastado da presidência da Câmara e perdeu o mandato. Condenado a
mais de 15 anos, recentemente teve a prisão preventiva substituída pela domiciliar, por estar no grupo de
risco da pandemia do covid-19.
Michel Temer integrou a articulação do golpe contra Dilma. Também ele tentou chantagear a presidente sob o argumento de que se ela aceitasse colocar em prática o plano “Estrada para o futuro”, o oposto de tudo o que defendia o PT para vencer a crise que então se esboçava, não haveria problema. Antes, Temer certificou-se de que teria o apoio dos militares, valendo-se do      descontentamento que sabia existir entre os de farda e a presidente que instituiu a Comissão Nacional da Verdade, para apurar graves violações de direitos humanos acontecidas no Brasil entre 1946 e 1988.
A Comissão da Verdade, como ficou conhecida, durou pouco mais de três anos, tempo suficiente para deixar parte dos militares de cabelo em pé. Ao contrário de outros países da América do Sul, que também enfrentaram ditaduras brutais, como Argentina e Chile, aqui o pacto que viabilizou a transição democrática anistiou a todos, torturados e torturadores, impossibilitando que muitos militares fossem julgados por crimes que cometeram nos “anos de chumbo”.

Foi a partir da Comissão da Verdade, no entanto, que o Brasil ficou sabendo que entre os próprios militares houve muita resistência às atrocidades cometidas. Em duas décadas de ditadura, o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares. Essa informação sem dúvida incomodou e, mais uma vez, maus soldados e péssimos civis
estavam juntos na deposição de uma presidente legitimamente eleita.

Não foi por acaso que o então deputado Jair Bolsonaro, ao votar pela abertura do processo de
impeachment contra Dilma, o fez prestando homenagem ao torturador coronel Brilhante
Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II Exército, um dos mais atuantes órgãos na repressão política
durante a ditadura. Mesmo já reformado, Ustra continuou politicamente ativo nos clubes
militares, na defesa da ditadura e nas críticas anticomunistas.

MORO, O PIOR

De todos os péssimos civis, o que recentemente mais danos políticos e econômicos trouxe ao país foi Moro. Como juiz de primeira instância responsável pela Operação Lava Jato, ele cometeu barbaridades jurídicas para incriminar, sem provas, o ex-presidente Lula (casos do Triplex e do sítio em Atibaia) e tirá-lo da eleição de 2018. Some-se a isso que, em nome do “combate à corrupção”, destruiu a indústria brasileira, jogou milhões de trabalhadores no desemprego e o país na dependência tecnológica de outras nações.

A Lava Jato também possibilitou o acesso de representantes estadunidenses à gestão de empresas como a Petrobras e a Odebrecht que, além de ilegal, desdobrou-se em multas milionárias e conhecimento, pelos concorrentes, de seus planos estratégicos. Para quem assistiu ao filme Snowden (2016) do premiado diretor estadunidense Oliver Stone, as escutas que órgãos de inteligência dos Estados Unidos fizeram em várias partes do mundo, inclusive aqui, espionando a própria Dilma e os contratos que estavam sendo elaborados para a exploração do pré-sal brasileiro, fazem parte dessa lógica.

O resultado do combate à corrupção apresentado pela Lava Jato é pífio. O que não impediu a mídia corporativa brasileira, TV Globo à frente, de tentar transformar Moro em “herói no combate à corrupção.” Moro saiu do governo Bolsonaro, depois de compactuar por 16 meses com todas as ilegalidades e absurdos que o presidente e filhos praticaram. Mas sair do governo não significa deixar a política, como alerta o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, para quem “Moro é o candidato dos Estados Unidos à presidência do Brasil”.

Maus soldados e péssimos políticos, antes unidos na eleição de Bolsonaro, começam a se
dividir. Em que pese a inércia do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) que continua se recusando a colocar em pauta a penca de pedidos de impeachment contra Bolsonaro, parte dos integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF) está se movendo.
Bolsonaro, cada vez mais enrascado, em queda acelerada junto à opinião pública e à frente
de um governo que o mundo considera um perigo, corre atrás dos políticos do Centrão e do apoio da caserna na tentativa de barrar um possível processo de impeachment. Cargos
começam a ser distribuído a rodo para esses senhores.
O Plano de Desenvolvimento que o general Braga Neto, para alguns o “presidente operacional do Brasil”, anunciou para a retomada do crescimento, quando a pandemia amainar, está fadado ao fracasso. O capital internacional sumiu e o pouco que sobrou do empresariado brasileiro não se arriscará num cenário de enorme incerteza. Se o Estado não assumir a retomada da economia, o Brasil não terá futuro. Só que isso, para desespero dos péssimos políticos e dos maus militares, é muito parecido com a agenda que o PT colocou em prática nos anos que governou e com o projeto de “Plano para o Brasil” que Lula acaba de lançar.
Os péssimos políticos só admitem mudanças para que tudo continue como está. Tanto que criticam Bolsonaro, mas cobrem de elogios a agenda ultraliberal colocada em prática pelo seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Os maus militares também estão com Bolsonaro, mas não falta até entre eles quem já admita que “o presidente está causando confusão em demasia”. Enquanto isso, os cidadãos indignados, em quarentena por causa do covid-19, não saem das janelas e gritam cada vez mais alto e forte, de todos os cantos do Brasil: “Fora Bolsonaro”.
Como sabia Geisel, tentar tampar a panela, numa situação dessas, não surtirá efeito.

 

Geral

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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