OS ALIENÍGENAS CHILENOS

Por Latuff

 

 

 

Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes

Profa. Dra. María Verónica Secreto

do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

 

         Os protestos no Chile seguem intensos e com resposta violenta do governo. De acordo com números oficiais, foram registradas 17 mortes. As manifestações começaram após o aumento das tarifas de metrô, fato que excitou a memória de muitos brasileiros em relação a junho de 2013. As semelhanças, contudo, não vão muito além. A efervescência chilena não é tributária apenas do aumento no preço dos transportes, mas da aventura liberal que há décadas sufoca o país e que ampliou significativamente o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres.

         Um áudio vazado oferece a perfeita metáfora para essa distância. Cecilia Morel, esposa do presidente Sebastián Piñera, de centro-direita, teve uma conversa captada a partir de um áudio enviado a uma amiga. Nele, mostra não apenas o desespero que tomou conta do governo, mas a sensação de absoluta impotência diante do levante popular que, a confiar em seu próprio prognóstico, tende a piorar nos próximos dias. Segundo as informações que dispõe – ou das suposições que julgou seguro fazer – a primeira-dama denuncia que o próximo passo dos manifestantes é interromper toda cadeia de abastecimento, incluindo água e alimentos. Diz estar surpreendida, como se diante de “uma invasão estrangeira, alienígena”; mais do que isso, ou precisamente por isso, não teriam “ferramentas para combatê-la”. 

          Os manifestantes não chegaram de outro planeta, mas há certa razão nessa fala se se adota a perspectiva de Cecilia Morel. É preciso admitir que ricos e pobres realmente não vivem no mesmo mundo, ainda que partilhem algumas vezes os mesmos espaços. Para os pobres, ensinados a nutrir expectativas inalcançáveis que se colocam nos apelos cada vez mais agressivos ao consumo, os ricos não vivem em um lugar insólito, afastado de toda civilização conhecida: eles estão onde a maioria gostaria de estar. O contrário, contudo, não é verdadeiro, não só porque a pobreza não é acalentada por ninguém, mas porque a perda de privilégios parece ser bem mais difícil do que a conquista. Os alienígenas, contudo, não são exatamente, ou tão somente, os pobres chilenos, mas a juventude que se insurge contra esse seleto grupelho de poderosos. Os jovens, com sua potência revitalizadora, não querem para seu futuro o presente tenebroso em que vivem seus pais e avós.

         Em 2013, o Chile era o país mais desigual do mundo, sobretudo por causa da privatização do sistema de seguridade social realizado durante o governo ditatorial de Pinochet. Na prática, quase metade dos chilenos não dispõe de benefícios quando param de trabalhar. O sistema de previdência é de capitalização individual, em mãos das AFP (Administradoras de Fundos de Pensão). Quando o sistema previsionário foi reformado na década de 1980, os Carabineros e as Forças Armadas não foram atingidos. Não sem razão, o Chile possui o maior índice de suicídio de idosos na América Latina. Aproximadamente 74% das famílias estão endividadas. Os serviços públicos são escassos e não há alternativa privada com preços acessíveis à maioria da população. Todas essas questões contribuem para a vulnerabilidade da maioria, tornando-os estrangeiros em sua própria terra.

A mídia dominante sempre coloca o Chile como modelo, como a ovelha branca entre ovelhas negras. É a terra fértil onde a escola de Chicago conseguiu se enraizar. O próprio Paulo Guedes desembarcou no Chile, onde viveu na década de 1980 e conheceu de perto a política econômica que ele tanto admira e luta ferozmente para implementar no Brasil. Em fevereiro deste ano, em uma entrevista ao Financial Times, o atual ministro da Economia disse que Pinochet fez do Chile uma Suíça. Hoje o país está em chamas, inflamado por esse fetichismo rentista que afaga banqueiros e ignora o povo.

O modelo econômico desenhado na década de 1970, durante a ditadura militar, teve continuidade no período democrático. Devemos lembrar que o processo de democratização no Chile começou com limitações: Pinochet continuou como comandante em chefe do Exército (1990-1994) e foi senador vitalício até 1998.  As “verdades liberais” passaram a ser inquestionadas. Chile é hoje o país da América Latina que tem a maior renda per capita e também o pior índice de distribuição da riqueza. As duas coisas num mesmo espaço. Ricos, demasiado ricos; pobres, demasiado pobres. 

Enquanto na América Latina eram presidentes Lula, Evo Morales, Kirchner, Correa e Chávez, as economias cresciam e eram implementadas políticas públicas de distribuição de renda e riqueza. Ao mesmo tempo, o Chile era enaltecido como modelo da modernidade econômica com seu Estado mínimo, minúsculo, que tinha funções exíguas para transferir ao mercado o poder de intermediar todas as relações e transações.

A mídia tradicional começou a última semana buscando as razões que motivaram esses “loucos” a sair do paraíso. Descobriram que os serviços consomem parte importante dos salários e que a educação é das mais caras da América Latina. O estopim nada desprezível foi o preço do transporte, que consome 30% do salário dos trabalhadores e trabalhadoras, mas por trás dele se escondia um sem-fim de privações que a imprensa muito se esforça para ignorar. O “modelo” neoliberal está povoado de privações.

Apenas 1% da população chilena concentra 26,5% da riqueza. Os números não são muito diferentes do Brasil e a tendência é que nossa situação se torne cada vez mais parelha, já que Paulo Guedes, manipulando seu fantoche Jair Bolsonaro, tenta implementar hoje o que foi feito no Chile, sobretudo na década de 1990. Sem luta, o Brasil produzirá ainda mais alienígenas em sua própria terra, tornando-a um território hostil em que só os ricos têm direito de viver.

Cecilia Morel, quase no fim do áudio, reconhece o cerne do problema e diz: “Temos que diminuir nossos privilégios”. Esse arroubo de sinceridade, possível só pelo aspecto privado da mensagem, é o núcleo do problema que há muito as esquerdas sinalizam e que os interesses financeiros fazem questão de ignorar.

Ontem, ao final do dia, Piñera, o mesmo que chamou o cidadão que protestava na rua de inimigo poderoso e implacável que tinha o único propósito de produzir o maior dano possível, avaliou o caos, refletiu e anunciou que se reformará o sistema de pensões, a saúde, a renda mínima e as tarifas elétricas. Uma agenda social que inclui maior carga impositiva para os mais ricos, redução dos salários dos parlamentares e de outras esferas da alta administração pública. Embora paliativas e não estruturais, vem pela frente um conjunto de medidas heterodoxas. Paulo Guedes deve estar decepcionado com o exemplo que tanto admirava, mas não há profilaxia possível: em algum momento a vida material grita, e quem está habituado ao silêncio corre realmente o risco de achar que se trata de um berro alienígena.

Felizmente, são terráqueos como nós que estão lutando para romper esse nó górdio atado pelas privatizações. Os chilenos já ergueram a espada de Alexandre e deram um belíssimo exemplo para a América Latina.

 

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Não sou historiador, mas até hoje todos os movimentos, modelos, ideias defendidas e algumas delas implementadas durante a saga da história humana, simplesmente sucumbiram. O capitalismo, hegemônico atualmente no mundo, é um modelo imperfeito com certeza. Eu não tenho as respostas que necessitamos, não vejo nenhum dos modelos atuais ou históricos como “a solução” para a humanidade; mas penso que no tocante ao ser humano, falta ainda compreensão de si mesmo e do seu papel no mundo, ai quem sabe apaziguar-se-ão os ânimos e começaremos a tratar melhor o planeta e uns aos outros.
    Eu gostaria de saber qual o modelo idealizado pelos autores do artigo?

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