Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Aroeira
Não é de hoje que os militares representam uma força relevante no plano político nacional. Na história do Brasil , as Forças Armadas foram protagonistas nos momentos de crise institucional, sempre promovendo uma pacificação conservadora, violenta e autoritária.
Isso não quer dizer que nessas experiências históricas os militares tenham tido completo controle da situação, que não tenham negociado ou dividido poder com os políticos civis. Erram os que acreditam que os militares têm poder absoluto. Erram também aqueles que acham que quando atuam na política as Forças Armadas são simples marionetes manipuladas pelas elites políticas civis. Aqui, como acontece quase sempre, o ideal está no meio termo.
Hoje, essa discussão é mais que necessária.
Dos 22 ministérios do governo de Jair Bolsonaro, oito estão ocupados por miliares, sem contar os cargos de segundo e terceiro escalões e, é claro, o presidente e o vice-presidente, ambos oficiais reformados do Exército.
O que os militares estão querendo?
As Forças Armadas possuem um projeto de Brasil, uma doutrina de desenvolvimento nacional? Ou se trata, apenas, de ocupar posições de poder e defender interesses corporativos? Será que eles querem uma revanche, uma vingança contra os governantes civis que durante a IV República produziram uma memória nacional hostil às Forças Armadas? Ou tudo isso junto?
É difícil saber, pois dessa vez as Forças Armadas não escreveram sequer um manifesto, um documento programático, dizendo com clareza o que pretendem fazer.
Em 1889, foram os militares que deram cabo à Monarquia. A crise do regime já se arrastava desde o final da década de 1870. Existia desde 1873 um Partido Republicano influente e ativo na propaganda política. Porém, na hora H, foi o Exército quem jogou a pá de cal no velho regime e expulsou a família real do Brasil. O projeto de nação era dado pela filosofia positivista e pregava a modernização autoritária através da urbanização e da industrialização. O projeto estava claro, havia sido escrito, principalmente pelos cadetes, aspirantes a oficiais que estudavam na Escola Militar da Praia Vermelha.
Depois de muitos conflitos, os militares perderam o controle da República, em meados da década de 1890. As oligarquias civis, os fazendeiros exportadores de café, tomaram o poder. Os militares voltaram à arena política na década de 1920, com uma agenda parecida com a de seus antecessores positivistas: moralização das instituições, modernização autoritária, urbanização e industrialização. Tudo claramente formulado em manifestos e textos doutrinários escritos pelos oficiais de baixa patente, chamados genericamente de “Tenentes”.
Nos anos 1960 um elemento novo veio se somar ao projeto de nação defendido pelos militares: o anticomunismo, sistematizado na doutrina de Segurança Nacional, desenvolvida na Escola Superior de Guerra, a ESG.
As Forças Armadas estão novamente no poder, mas falta uma formulação clara do que querem, do que desejam para o país. Por isso, só nos resta seguir pelas veredas dos pronunciamentos isolados, das entrevistas. Três são os militares que representam as Forças Armadas dentro do atual governo: o vice-presidente Hamilton Mourão, o general Alberto Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo e o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional.
E Jair Bolsonaro?
A passagem de Jair Bolsonaro pelo Exército foi controversa e atravessada por polêmicas. Reformado prematuramente por motivos até hoje mal explicados, Bolsonaro não chegou às altas patentes e acabou se tornando um político profissional, ficando quase 30 anos no Congresso Nacional. Bolsonaro passou mais tempo na política do que no Exército.
Diferente são os casos de Hamilton Mourão, Alberto Santos Cruz e Augusto Heleno. Os três atingiram o generalato, tendo carreira longa e condecorada, possuindo no currículo o comando de forças brasileiras em países como Angola e Haiti.
Entre os militares que compõem o governo, Mourão, Santos Cruz e Heleno são os que mais aparecem, os que mais falam à imprensa. Sempre usando tom médio, com roupas sóbrias, os três generais se apresentam como moderados e nacionalistas, com o claro objetivo de destoar da agressividade e do radicalismo que marcam a imagem pública de Jair Bolsonaro. Há cálculo político aqui e a clara demonstração de que Bolsonaro não tem a plena confiança da cúpula das Forças Armadas.
Em entrevista concedida em 6 de janeiro de 2019 ao jornalista Valdo Cruz (Rede Globo), Santos Cruz afirmou que “não cabe ao governo interferir na atuação das ONGS, mas apenas zelar pelo bom uso do dinheiro público”. Ao se referir a movimentos sociais históricos como o MST e o MTST, o ministro-general foi muito cuidadoso nos adjetivos e chegou a destacar a “importância social dessas organizações, que devem ter sua livre atuação garantida por um governo democrático”.
Desde dezembro de 2018, Augusto Heleno critica a fusão Embraer-Boeing, afirmando que os termos acordados não são os ideais para o Brasil. Nas críticas, Heleno fala em “soberania nacional”, em “estratégia de desenvolvimento”, o que sugere que ele não concorda com o entreguismo que vem sendo praticado pelo governo.
São inúmeras as entrevistas em que Mourão desautoriza Jair Bolsonaro, sempre tentando se mostrar mais tolerante e moderado, como quem pretende ser uma alternativa de poder palatável a gregos e troianos.
Durante o período em que exerceu interinamente a Presidência da República, em janeiro de 2019, Mourão se mostrou publicamente contrário a medidas que foram amplamente defendidas pelo núcleo familiar do governo de Jair Bolsonaro. O ponto central da discórdia foi relativo à mudança da embaixada brasileira em Israel. Em entrevista concedida à “Folha de São Paulo” em 30 de janeiro de 2019, Mourão, confrontando o presidente da República, garantiu que a embaixada não será transferida de Tel Aviv para Jerusalém.
E isso sem contar as declarações em favor dos direitos das mulheres e ao aborto seguro e legal.
Em 7 de fevereiro de 2019, Mourão, mais uma vez contrariando Jair Bolsonaro, recebeu em sua agenda oficial a CUT para discutir o projeto de Reforma da Previdência. Não é exagero dizer que nunca antes na história do Brasil um vice-presidente foi tão pouco discreto como é o general Mourão, para o desespero de Olavo de Carvalho e da família presidencial.
O distanciamento entre Hamilton Mourão e o núcleo duro do governo de Jair Bolsonaro ficou ainda mais claro em 25 de fevereiro de 2019, quando o vice-presidente representou o governo brasileiro no “Encontro do Grupo de Lima”, onde foi discutida a questão da intervenção na Venezuela.
Desautorizando explicitamente o chanceler Ernesto Araújo (escolhido a dedo por Bolsonaro), Mourão afastou a possibilidade de intervenção brasileira no país vizinho, com um categórico “nada de aventura na Venezuela”.
Termino este texto sem responder a pergunta inicial. Não dá pra saber com clareza o que as Forças Armadas querem. Não há nenhum programa escrito, nenhum manifesto à nação. Dá pra saber que estão querendo algo e que têm em Alberto Santos Cruz, Augusto Heleno e Hamilton Mourão suas principais lideranças.
Quando descobrirmos o que eles querem, talvez já será tarde demais.