Circula um vídeo em que um completo imbecil racista é expulso por passageiros do metrô de Nova York com uma pratada de sopa na cara. Além do imbecil que, antes de ser enxotado do metrô, brada insolências por mais de dois minutos na linguagem universal da imbecilidade – portanto não é necessário fluência no idioma inglês para atestá-lo – outra coisa que salta aos olhos é a quantidade de pessoas caladas, omissas. De fato, num vagão lotado, os passageiros que se insurgem contra o parvo racista não ultrapassam meia dúzia. Na expressão de muitos dos que se mantiveram neutros é até possível perceber algo distinto da indiferença, como que uma vontade freada de intervir. Diante disso, convém perguntar: o que os freou? Porque não se juntaram àquela meia dúzia de corajosos encrenqueiros?
O que pensariam aquelas pessoas que se escondiam atrás dos escudos de seus celulares, visivelmente constrangidas? Estariam constrangidas com a fala do pateta ou com a passividade delas mesmas?
Antes de prosseguir, preciso advertir que este texto não se configura em uma lição de moral. Ou se é, então fica sendo também para este que escreve, pois recentemente, quando passei por situação parecida no metrô paulistano, me acovardei. O vagão todo se acovardou. O rapaz, em que tudo no aspecto indicava um desiquilíbrio emocional grave (portanto não deixa de remeter ao nova-iorquino) apenas parou de importunar aos berros uma moça desconhecida dele – e cujos olhos constrangidos quase gritavam por socorro – com a chegada do segurança que o expulsou do vagão. Na ocasião, senti a mesma perplexidade de agora vendo o vídeo. O que os freou? O que nos freou? Perguntava-me.
Talvez o que nos freie a ação proveniente da justa indignação seja a assimilação do egoísmo do qual o metrô é por excelência um dos grandes espaços de ocorrência. Talvez junto da fumaça tóxica da metrópole que se entranha por nossos poros, tenha também entrado em nós a mais rotunda indiferença. Talvez o metrô seja na esfera pública a localidade onde mais se acentua nossa vergonha de sermos solidários. Onde o egoísmo é lei, solidariedade é subversão. Sim, temos vergonha de sermos solidários, importarmo-nos é motivo de acanhamento. De minha parte, foi isso que se deu. E esta constatação me envergonhou depois. E que bom que me envergonhou.
Da parte dos demais passageiros, tanto de Nova York quanto de São Paulo, confesso que desconheço seus motivos. Porém, partindo do pressuposto que a maioria dos passageiros nos dois ambientes reconhecia a gravidade da situação e a desaprovavam, não seria um absurdo relacionar sua indiferença, sua apatia, também com essa noção indigente que ganha força e que consiste em acreditar que uma suposta neutralidade oferece aos seus detentores uma espécie de esteio moral para seu conformismo.
Ou, posto de outra forma: será que a noção de neutralidade não seria um salvo-conduto para o egoísmo? Será que os passageiros do metrô de Nova York abrandaram seus mal-estares dizendo a si mesmos que foram neutros, que convém não se meteram? Com efeito, muito além das situações atípicas que se tornam assustadoramente típicas, mas também diante das injustiças cotidianas, a neutralidade pode nos livrar dos aborrecimentos de uma discussão; pode nos livrar das brigas, dos imbróglios, das pendengas, das tretas, dos litígios e das encrencas; pode manter intactas nossas preciosas networks às quais nos agarramos como Shylock se agarra a seus ducados; a neutralidade pode, enfim, acabar por nos conformar. Eis aí a palavra a que remetem os passageiros indiferentes do metrô nova-iorquino.
A neutralidade, todavia, não irá nos livrar desse lobo que espreita atrás da porta. Martin Luther King Jr. afirmava que os lugares mais quentes no inferno são reservados para os que, num período de crise moral, mantêm sua neutralidade.
Quem se mantém neutro diante de quaisquer embates, do mais insignificante ao mais dramático, seja ele micro ou macropolítico, tem, obviamente, toda a liberdade de fazê-lo, mas deve ter a consciência de que sua neutralidade é também uma tomada de posição política, e das piores. Talvez conviesse afixar nos metrôs de Nova York e também nos nossos, a título de lembrete a quem se esconde atrás do biombo da neutralidade e como homenagem àqueles que tomam partido, tal qual a meia dúzia de valentes encrenqueiros nova-iorquinos, um célebre poema porrete, lamentavelmente atualíssimo:
“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.” (Intertexto, Bertolt Brecht)
Link para o vídeo, via Vice: https://www.vice.com/pt_br/article/mb7ywn/princess-nokia-video-racista
por T. S. Paulo: estudante de jornalismo.