De sorriso largo, Guti atende um repórter seguido do outro. ‘Está sem comer desde manhã,’ afirma a assessora. Já eram três e pouco da tarde.
Antes de começarmos a entrevista, pergunto se quer uma pausa de 15 minutos para poder, enfim, almoçar. Ele não quer, me convida a entrar na sala aonde ainda pouco gravara com uma emissora regional.
“Precisamos ser rápidos, preciso pegar o trem ainda hoje”, ele diz. Sem entender muito bem, olho para o papel de parede que reveste a sala e vejo a ilustração de um trem, dou risada e, de cara, simpatizo com a figura humilde e simpática, responsável por trabalhos icônicos da tv e do cinema brasileiro.
Gotschalk da Silva Fraga, nascido em Alto da Garças (Mato Grosso), em 15 de março de 1952, conhecido como Guti Fraga, é um ator e diretor de teatro. Formado em jornalismo, conheceu o teatro Mambembe em Goiânia e de lá partiu para Argentina, aonde cursou agronomia, medicina e teatro ao mesmo tempo, na década de 70. Com o golpe militar no país hermano, acabou retornando ao Brasil.
Começou a trabalhar com teatro em 1977, quando se mudou para o Rio de Janeiro. Em 1986 fundou a ONG Nós do Morro, da qual foi presidente, diretor artístico, professor e administrador.
Há 32 anos o Nós do Morro é responsável por democratizar a arte, levando o conhecimento cênico e da área técnica do teatro, para o Morro do Vidigal. O projeto formou atores para o filme Cidade de Deus, entre eles Jonathan Haagensen, Micael Borges, Thiago Martins, Roberta Rodrigues, Marcelo Melo Jr., Sabrina Rosa, Cintia Rosa, Mary Sheila e Roberta Santiago.
Entre os dias 11 e 14 de setembro, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) realizou em Campinas (SP) onze oficinas de capacitação nos segmentos de artes cênicas, música e artes visuais. Guti Fraga ministrou uma das oficinas e aproveitou a oportunidade para bater um papo com os Jornalistas Livres sobre arte e democracia.
Confira as principais partes da entrevista abaixo.
JL: Qual a importância de levar a arte pro morro, democratizar a arte?
Eu acho que nós vivemos numa sociedade em que uma classe social não tem nem a oportunidade de sonhar, então o “Nós no Morro” propõe a oportunidade de criar uma porta para os sonhos, com todas as dificuldades para sustentar e manter o projeto. Mas é satisfatório saber que muita gente conseguiu encontrar esse caminho e a possibilidade através da arte, inclusive o da própria sustentabilidade. Afinal, o Homem sem sonhos é como o pássaro de asas quebradas, não dá para viver sem sonho.
JL: Vivemos num momento crítico para a arte, no país. Além da falta de investimento, temos um governo e uma parcela social que questiona a existência do papel da arte e até a necessidade de um ministério da cultura. Como é ser artista num momento com tantos conflitos neste meio?
Ser artista, ou trilhar para este caminho neste momento, é um ato de resistência. Veja o Nós do Morro, 32 anos de vida e estamos sem patrocínio há um ano. A gente ainda não fechou porque temos um certo voluntarismo. Eu acabei de deixar de fazer uma novela para dar aula para três turmas para tocar o projeto, é uma escolha de vida. Apesar de tudo eu me sinto muito privilegiado. Eu não escolhi isso, fui escolhido pelos Deuses da arte. Nunca fiz favor para ninguém, eu é que ganho com a troca. A relação humana é muito forte na vida, pequenos atos fazem a diferença.
JL: Muito se fala sobre o que vocês proporcionam às pessoas, mas e o contrário? o que essas pessoas proporcionam para vocês, os voluntários? Em que pontos eles mais te tocam?
As pessoas me tocam o tempo inteiro. Construir o artista é como construir uma casa. Primeiro o pedreiro constrói o alicerce. Ultimamente eu tenho estado muito otimista com o alicerce da classe pobre. Depois que eu comecei a estudar, escutar mais da batalha de slam dentro do Brasil, eu comecei a ver que a classe pobre tem um alicerce que é o intelecto. Ver tantas pessoas nas batalhas de slam, que jogam tudo o que pensam sobre o país, a vida, sobre tudo, de uma maneira tão inteligente, é incrível. Não tem dinheiro, mas tem inteligência e isso não tem dinheiro que pague.
.JL: Você está otimista com as eleições, acha que dependendo dos resultados, vamos conseguir ter um investimento maior em cultura, mudar os rumos da arte?
É um momento trash para falar sobre isso. Eu concordo quando o Alcione Araújo, que escreveu “As irmãs Siamesas”, diz que a arte é educação. Temos muito o que mudar no país em relação a isso, precisamos de alguém que entre e tenha essa consciência, como na época do Gil. Principalmente nesta época, a cultura foi se transformando, se ampliando para toda a classe social, isso é o que a gente espera.
Não vejo essa esperança, mas dentro de mim, dentro de nós, se a gente vai somando, as diferenças ficam de fora e podemos ficar de mãos dadas em prol de objetivos em comum, prefiro acreditar nisso.