MÉXICO: Quatro anos depois, famílias ainda buscam corpos dos 43 estudantes desaparecidos
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7 anos atrásem
por
Raquel Wandelli

Jovem buscador de fossas clandestinas luta para devolver à família os restos mortais do irmão
A perda dos líderes e entes queridos é trágica para qualquer povo, mas para uma cultura marcada pela ritualização da morte, não há nada mais devastador do que ser roubado do direito à vida e ao velório do corpo de um filho. Não há nada mais desesperador para o povo famoso em todo mundo pela celebração do seu Dia dos Mortos do que a espera eterna de familiares vítimas de desaparecimento político.
No Natal de 2015, ainda estudante do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a repórter Luara Wandelli Loth percorria as montanhas do Estado de Guerrero, no México, farejando com os buscadores das famílias dos desaparecidos, fossas clandestinas onde pudessem ter sido escondidos os cadáveres dos 43 jovens campesinos e de tantos outros milhares de trabalhadores e estudantes.
Quatro anos se passaram e nem Estado, nem narcotráfico, nem milícias policiais, nem o casal de políticos envolvidos no desaparecimento forçado mais cruel da história da América Latina recente deram conta do paradeiro dos seus corpos ou restos mortais. Um ano depois de retornar do México, a repórter, já formada, decidiu construir um túmulo simbólico para dar sentido a essa morte sem corpo na forma de narrativa. O lançamento oficial do livro Sepultura de Palavras para os desaparecidos, no dia 27 de setembro, a partir das 19 horas, na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis, marca os quatro anos do sequestro e desaparecimento forçado dos 43 estudantes da Escola Normal Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa, em Iguala, que ela qualifica como crime de Estado e de lesa-humanidade.
Mesmo sem resposta, a tragédia continua mobilizando famílias e movimentos sociais que, a partir desse crime criaram uma espécie de exército pelo resgate da vida e da morte dos mais de 30 mil desaparecidos no país. Hoje, se os normalistas estivessem vivos, já teriam recebido seus diplomas de maestros. As famílias fazem buscas movidas pela expectativa de encontrar os restos mortais, ao mesmo tempo em que o fracasso dessa esperança nutre a ilusão de que os desaparecidos estejam vivos, trabalhando como escravos do tráfico e que um dia voltarão para casa. Só fragmentos de dois dos 43 corpos foram localizados no caso de Iguala, mas sem levar ao paradeiro dos demais. Em outros dos mais de 30 mil de casos ocorridos no México, o achado de um osso, de um pedaço de crânio ou de um braço não paralisa a busca, como anota a jornalista. É só a sanha para que os abnegados cães humanos das montanhas se embrenhem ainda mais nos espinheiros para buscar as outras partes do seus mortos, sem paz e descanso, até recompor o corpo inteiro.

Dom Lupe, farejando nas montanhas a morte dos filhos sequestrados
Publicado pela Editora Insular, o livro-reportagem conta as histórias dos que sobrevivem à dor da perda lutando por verdade e justiça. Num enfoque diferenciado de outras abordagens, narra o drama cotidiano das famílias dos desaparecidos na procura de fossas clandestinas. Os personagens são os obstinados integrantes dos grupos de buscadores de valas e fossas clandestinas em Guerrero, uma das regiões mais assoladas pela violência e pela pobreza na América. São homens e mulheres que deram um sentido heroico comovente a suas vidas, como Guadalupe Contreras, exímio buscador, que desenvolveu uma técnica para farejar o cheiro de morte nas montanhas, na esperança de encontrar o cadáver do filho desaparecido. Malhado pela miséria e pela violência, o sábio Dom Lupe tornou-se professor de buscas em outras paragens. A pedido de outros familiares, estendeu seus ensinamentos para estados como Veracruz, no Golfo do México, onde recentemente foram localizados mais de 160 corpos ocultados num terreno. Além do seu, passou a buscar os filhos dos outros.
O título é inspirado na obra da africana Mukasonta Scholastique, autora de A mulher de pés descalços, que também escreveu uma “sepultura de palavras” para homenagear a mãe e metaforicamente cobrir o seu corpo desnudo quando foi assassinada como uma “barata” no holocausto ruandense. Além das narrativas, Luara oferece um ensaio fotográfico para transmitir a dimensão da luta que as palavras não alcançam. “É preciso não deixar que esse crime seja esquecido para que essas mortes não tenham sido em vão”, acredita a autora, que recebeu menção honrosa em concurso nacional de fotografias dos grandes rituais funéreos do Dia dos Mortos no México no ano do sequestro dos estudantes. Imagens e narrativas devem ser, para a repórter, “uma arma contra a banalização dos desaparecimentos”. Até porque, mesmo depois da onda gigantesca de protestos contra o massacre de Iguala, a violência causada pela associação criminosa entre autoridades públicas, políticos, narcotraficantes e policiais manteve sua curva crescente.
Conforme revela o livro, os grupos de buscadores, ligados a diferentes correntes políticas, desafiam um Estado dominado pelo narcotráfico, onde polícia, políticos e organizações criminosas muitas vezes andam de mãos dadas ou atadas. A autora, na época estudante de Jornalismo da UFSC e intercambista da Universidade Autônoma do Estado do México (UAEMex), acompanhou de forma engajada as notícias sobre o desaparecimento dos estudantes e a onda de protestos que ficaram marcados pelo grito “Vivos os levaram, vivos os queremos”. Sob a égide do presidente neoliberal Enrique Peña Nieto, o Estado tentou impor o silêncio, mas a indignação tomou conta do México, causando uma repercussão internacional expressiva, embora menor do que o horror ensejava. Na época, por exemplo, a chacina dos 12 cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo recebeu uma atenção infinitamente maior da grande mídia na América Latina e na Europa do que o extermínio dos 43 normalistas, muitos deles apenas adolescentes.

Neta de buscador em Iguala. Imagens dos atingidos pelos desaparecimentos integram o livro
De volta ao Brasil, Luara começou a desenvolver seu trabalho de conclusão de curso sobre os desaparecimentos no Estado de Guerrero e para ir mais longe na pesquisa e reportagem, retornou ao México em 2015, onde permaneceu até março de 2016 . Recebida e hospedada por familiares dos desaparecidos, exerceu perigosamente o jornalismo investigativo e arriscou-se, acompanhando pessoalmente o trabalho do grupo de buscadores. As imagens, narrativas e depoimentos desses inconformados herdeiros de uma morte imaterial são marcas lancinantes de um período de atrocidades vivido pelos mexicanos sob o comando do neoliberalismo que esmagou e derrotou a revolução mexicana e com ela a riqueza maior do país que são os povos indígenas.
CONFIANÇA NO VALOR DA VIDA RENASCE COM OBRADOR
Neste aniversário, reapresentantes do comitê dos pais dos meninos sequestrados, torturados e assassinados renovam as esperanças com a eleição do novo presidente Andres Manuel Lopez Obrador, que assumirá em dezembro deste ano, na contramão dos governos conservadores e entreguistas que tomaram o poder no continente americano. Acreditam que, seguindo as recomendações dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, o líder de esquerda possa reabrir o caso e sepultar de vez a história oficial implantada pelo governo anterior. Numa conclusão julgada suspeita, improvável e manipuladora, a promotoria de Pieña Neto defendeu que os jovens morreram assassinados e que seus corpos foram queimados em um lixão e por isso desapareceram. Essa versão cômoda para o governo, encerraria a busca dos cadáveres, mas foi amplamente desmoralizada pela ausência de sinais de comprovação e por uma chuva torrencial no dia do massacre que desmente por si só a falaciosa incineração. Só agora a população atingida ou sensibilizada pelos desaparecimentos forçados recupera um pouco a confiança na dignidade e no valor da vida, com a expectativa da instalação de uma Comissão da Verdade e Justiça específica para o massacre anunciada pelo próximo governo.

Capa do livro com foto de Luara Wandelli Loth
Sepultura de palavras para os desaparecidos denuncia e reabre uma ferida que nunca vai cicatrizar e que exige da humanidade inteira uma tomada de posição. Até porque, como avisa a autora, o mundo não conseguirá dormir um “sono tranquilo” enquanto não devolver os corpos dos normalistas e dos outros milhares de desaparecidos. A grande reportagem que resultou em livro foi orientada pelo professor Carlos Locatelli, do curso de Jornalismo da UFSC e enriquecida pelas apresentações do historiador Waldir Rampinelli e da professora de Jornalismo Daisi Vogel. Integrante da direção dos Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC) e especialista na história política do México, Rampinelli sublinha que “o livro é uma leitura obrigatória para entender esta região marcada por grandes conflitos, desde que por aqui meteram os pés os conquistadores europeus”. A obra é resultado de um “trabalho duro, penoso, doloroso, talvez mais difícil do que cobrir as guerras do Iraque e da Síria”, acrescenta o historiador.
No contextualização desse crime em massa, Luara reconstitui a história e a importância das Escolas Normais Rurais, que são sinônimo de resistência política. Doutora em Literatura, Daisi Vogel aponta que “as imagens, palavras e estudos desta extraordinária reportagem se movem caudalosas e nos arrastam como águas de uma enchente.” Acompanhando a saga dos buscadores, o livro-reportagem, na opinião da jornalista, encontra o seu próprio sentido: “mostrar o rastro de destruição desses desaparecimentos para a população inteira do país, especialmente para os habitantes de Iguala, cuja população sobrevive ao efeito devastador do sequestro dos 43 estudantes de Ayotzinapa”.
O grande mérito dessa obra de jornalismo, literatura e história é mostrar que o horror dos desaparecimentos devastou as populações de origem indígena mais empobrecidas do México, mas não as calou, nem as paralisou. Na mesma medida em que sofre a opressão, o povo guerrerense reforça, há séculos, a escolha pelo caminho da rebeldia. Os que procuram pelas montanhas os restos mortais do filho, irmão, pai, mãe, esposa, companheiro, vizinho, amigo ou parente escolhem transformar corpos em sementes de transformação.
Depoimento da autora:
“O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Quero que esse livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. “

Cantracapa com nota biográfica da autora e depoimento de buscador
Sepultura de palavras é uma expressão que tomei emprestada da escritora de memórias ficcionadas, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente de sua família do genocídio em Ruanda. Uma das consequências da perversidade da política neocolonial é instituir o ódio ao outro como laço societário primário e aí instalar sua máquinas de morte.
Em A mulher dos pés descalços, Mukasonga propõe-se a resgatar simbolicamente sua mãe da vala-comum, com as únicas ferramentas que lhe restavam: palavras e papel. “Sepultura de palavras” se inscreve nessa perspectiva de jornalismo que resgata partes aterradas da memória e da carne dos povos da América.
Apesar das abundantes semelhanças com Brasil, que de alguma forma estão presentes em cada linha, o livro resulta de um olhar estrangeiro que, quando possível, distancia-se. Não é o meu povo, ao qual pertenço organicamente que quero tirar da vala e cobrir com suaves lençóis de memória, mas o nosso povo.
O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Não caberia impor impressões pessoais de jornalista, nem buscar explicações definitivas para um fenômeno tão complexo como a persistência do desaparecimento forçado no século XXI, em uma das regiões mais pobres e violentas do México. O trabalho identifica as contradições sociais sem a pretensão de explicar tudo ou oferecer uma conclusão última. Em vez disso, a pesquisa abre muitas outras hipóteses e questionamentos que continuam a me perturbar como autora. Durante os meses de investigação, busquei preservar o vínculo inevitável que leva as histórias singulares das pessoas atingidas pelo desaparecimento forçado às dimensões particulares e universais que conectam essas vidas ao contexto nacional e internacional dos crimes medievais do neoliberalismo. O todo é esburacado, mas segue sendo ligado por milhões de fatos que não cessam de intersectar a história dos povos violados pelo poder no Brasil, no México, na América e em todo o mundo.
Tento celebrar, como me foi possível, o ato de testemunhar uma realidade, de acompanhar as pessoas se transformando e transformando o mundo ao seu redor, aos pouquinhos. Nossos buscadores de Guerrero são pessoas que nunca traem a sua via desejante. Enquanto não temerem o cheiro de corpos em decomposição, nunca abandonarão a fome de vida. Recusam-se a oferecer aos mandantes dos desaparecimentos o controle sobre esse desejo. É porque talvez, sejam os únicos a dormirem sem culpa, no afã de continuar cumprindo sua louca missão de buscar. Dá medo que um dia esse trabalho ao mesmo tempo de negação e reconstrução do mundo seja esfacelado e desapareça do tempo e do motor da história.
É um livro sobre como se forjam lutadores sociais na difícil tarefa de perceber que sua dor não é um fator de isolamento, mas é algo, em certa medida, compartilhável, universalizável e, portanto, politizável. Quero que esse pequeno livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. Lutas sem povos são para o jornalismo inócuo e conformista de cada dia. Faz parte do encantamento da reportagem ver como a resistência em alguns momentos se equivale ao tamanho da opressão. Pude testemunhar como as pessoas redescobrem a vida em comunidade, os limites do individualismo, e como começam a lutar por si e pelos outros. Como elas se recusam a desaparecer, a se exilar em suas periferias, em seus quartinhos sem assoalho.
Devo confessar que senti nessas famílias a dor do processo de saída do estado de alienação para uma tomada de consciência. As pessoas precisam, por vezes, ceder à força do narcoestado periférico, categoria à qual se insere o estado mexicano na atualidade. O ganho de consciência transforma os olhares de forma definitiva, mas esse não é um movimento linear. É repleto de contradições, avanços e recuos que são, de certa forma justificáveis: as pessoas precisam sobreviver, dar leite às crianças, regar as flores e subir em vans apertadas.
As covas clandestinas reveladas após o caso Ayotzinapa, quando desapareceram 43 estudantes sonhadores e indômitos, são constrangedoras e emudecem os defensores da ideologia do “desenvolvimentismo” emblema maior do neoliberalismo. Parece que os vencidos da história se recusam a ser enterrados, provando mais uma vez que o osso é um herói de guerra. Ele emerge quando menos se espera no Atacama, no Acari, em Iguala. É como um cheiro de podridão que irrompe num salão luxuoso. Os representantes do poder e todos os seus cúmplices precisam de justificativas fáceis para explicar: “Eram todos narcos. É apenas mais uma matança entre ELES”. Duvidar da humanidade do outro é sempre um grande trunfo para espalhar o medo.
As ruínas são testemunhas desse estranho progresso, que traz barbárie, mas que traz sem querer sua semente de destruição. Não há como uma sociedade enterrar no esquecimento suas vítimas e não sofrer as consequências disso. Não adianta recalcar traumas. A luta, os esforços, por menores que sejam, serão redimidos por cada novo movimento social, levante, revolta. Surgirão novos significados. A cada levante, os vencidos são citados na ordem do dia. Eles vivem.
Serviço:
Lançamento de Sepultura de Palavras para os desaparecidos, de Luara Wandelli Loth,
Editora Insular.
Lançamento: 27 de setembro de 2018, das 19 às 22 horas.
Local: Fundação Cultural Badesc, rua Visconde de Ouro Preto, número 216 Centro de
Florianópolis.
Contatos com a Fundação: fone(48) 3224-8846, email:
fundacaoculturalbadesc@gmail.com
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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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5 anos atrásem
07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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