Conecte-se conosco

MASSACRE ANUNCIADO: Luto e sangue na Terra Indígena Guarani Kaiowá

Publicadoo

em

“Nós seguimos demarcando as terras indígenas com luto e sangue”. A sentença é de Valdelice Veron, líder Guarani e Kaiowá, em depoimento para os Jornalistas Livres da Terra Indígena Takwara, no Mato Grosso do Sul. Escondida na mata junto com outras lideranças para se proteger da violência dos fazendeiros, ela, a mãe e outras mulheres realizam as cerimônias fúnebres alusivas ao aniversário de morte do pai, Marcos Veron. Oito mandados de despejo com prazo para execução até o dia 24 de janeiro pesam sobre os indígenas do Mato Grosso do Sul, como uma decorrência da decisão da Advocacia Geral da União, assinada por Michel Temer. Até os restos mortais do “cacique dos caciques”, torturado e assassinado há exatamente 15 anos, estão ameaçados de despejo pelos fazendeiros, denuncia Valdelice.

(Fotos: Pietra Dolamita para os Jornalistas Livres)

 

 

 

No firmamento da terra, jaz o corpo do grande líder da aliança Guarani Kaiowá

Em meio ao cerrado do Mato Grosso do Sul, na região de Dourados, as tempestades desfiguram repentinamente o céu límpido, de sol intenso. A chuva e os animais parecem prenunciar o perigo. Os canaviais, as matas ciliares e as plantações de soja escondem as lideranças indígenas juradas de morte. Na Terra Indígena Takwara, no município de Juti, onde sete etnias já vivem aterrorizadas pelos pistoleiros dos fazendeiros, o clima ficou mais tenso depois que o Governo Temer impôs medidas que

Uma das raras fotos do cacique Marco Veron, Taperety em Kaiowá

tornaram o já massacrado povo Guarani e Kaiowá ainda mais vulnerável aos ruralistas. Para expulsá-los de suas terras, os latifundiários atropelam e matam os indígenas em emboscadas, sequestram-nos e estupram suas mulheres e meninas. Por conta dos efeitos do chamado “Parecer Antidemarcação”, emitido em julho de 2017 pela Advocacia Geral da União e amplamente adotado pelo executivo, oito mandados de despejo pesam sobre o as terras retomadas no Mato Grosso do Sul. As liminares, com prazo de cumprimento até o dia 24 deste mês, repercutem na Terra Indígena de Takwara (no original, Taquara no laudo técnico): para efetuar a ação, a polícia precisará passar por duas áreas de retomada com pelo menos 12 mil indígenas, que não estão dispostos a entregar a terra de seus antepassados.

A líder sobrevivente do extermínio do povo Guarani e Kaiowá promete seguir a luta do pai assassinado

Entre o luto e a luta, a guerreira Valdelice Veron, 37 anos, percorreu muitos quilômetros sob o sol quente pela mata para chegar de manhã cedo ao local onde o pai está enterrado. O dia de ontem (13/1) foi inteiramente dedicado às cerimônias ritualísticas que marcam todos os anos a morte do grande cacique Marcos Veron, torturado e assassinado há 15 anos, quando um sanguinário ataque dizimou homens, mulheres e crianças do território. De 11 a 15 deste mês haverá cantos e cerimônias em homenagem ao líder em cada terra retomada de Takwara, onde Valdelice é líder do grande conselho de articulação Guarani Kaiowá. Até hoje a memória e a história do cacique são cultuadas pela filha que, desde os oito anos de idade, assumiu a liderança e a proteção do seu povo. Os massacres se intensificaram em 1953, quando os Kaiowá foram expulsos da Terra Indígena pelos fazendeiros do Mato Grosso e pelo Governo Federal para ocupar, contra sua vontade, as reservas, “lugar para o abate, confinamento e morte do índio”, como ela mesma define. O pai foi morto em 2003 e, em seguida, o primeiro irmão, ainda adolescente, e os outros dois irmãos, Zeca e Sérgio Verón, em 2015 e 2016, todos jovens lideranças da luta pelo direito à terra. Uma de suas irmãs perdeu dois filhos de fome quando no processo de despejo.

Aos 79 anos, a mãe de Valdelice, viúva do cacique assassinado, participa da cerimônia fúnebre

É no leito da terra sagrada de infância, nessa terra de doces lembranças de família e de traumas profundos, que ocorre a cerimônia fúnebre. O pequeno cortejo tem à frente a mãe sobrevivente do extermínio, Nhandecy, ou mama Júlia Cavalheiros, 79 anos, e Pietra Dolamita, 38 anos uma índia Kauwá Apurinã que veio do Rio Grande do Sul para apoiar a amiga-irmã neste momento de ameaça e triste celebração.

Pintada e vestida conforme a tradição, Valdelice entoa os cantos sagrados sob a percussão do chocalho Mbaraka e discursa sobre a luta de resistência pacífica do seu povo. Cumpre assim um ritual no qual política e espiritualidade se intersectam num único fundamento: a paz e a retomada da terra sagrada. Ao mesmo tempo que chora, canta e reza, Valdelice protesta contra a perseguição dos Guarani Kaiowá e do pai. “Até os restos mortais dele estão ameaçados de despejo”, protesta. Ao discursar no meio da desertidão do Cerrado, ela exige que os fazendeiros devolvam o corpo dos irmãos, sequestrado de seus túmulos.

Pietra Dolamita, que é Kauwá Apurinã, veio do Rio Grande do Sul para apoiar a “amiga-irmã” neste momento de luta e de luto

Poucas mulheres acompanham a cerimônia porque o perigo das ordens de desocupação nas terras vizinhas serem cumpridas a qualquer momento torna a expedição uma missão de altíssimo risco. Aos homens e mulheres líderes cabe apoiar os caciques Ládio Veron e Arauldo Veron na proteção de seu povo e ajudar o coletivo a tomar as decisões importantes. Por isso, os líderes são tão visados pelos fazendeiros e precisam “ficar invisíveis” nestes dias temerosos. Mas o dia 13 de janeiro é uma data sagrada que não pode passar sem os devidos rituais .

Como faz todos os anos, a líder tinge o firmamento de madeira erguido sobre o túmulo do pai com o vermelho do Urucum, planta que simboliza o sangue da vida, assinalando ao mesmo tempo a sua ausência e a sua memória, que ela vive para preservar, junto aos 18 filhos que ele deixou, e outros tantos netos e bisnetos, muitos dos quais nem chegou a conhecer. Como faz também em todos os rituais, pendura no poste funeral um adereço indígena cujo significado não pode revelar. Pergunto se Taperendy é o nome do pai em Kaiowá inscrito no epitáfio da cruz e Valdelice responde que sim, mas faz questão de me corrigir com firme delicadeza: “Não é cruz, são firmamentos ancestrais que seguram a terra”. Pietra adverte que seria uma ofensa para a cultura Guarani chamar uma “Yvy Rojoasa Ropyta” de cruz, como na cultura jesuíta.

Não é uma cruz, é um firmamento de sustentação da terra, onde se inscreve o nome indígena do líder assassinado, que significa “Caminho iluminado”

Guarani e Kaiowá são dois povos diferentes que se uniram matrimonialmente na luta para retomar a Terra Indígena Takwara, que abrange 9.700 hectares, conforme o laudo oficial. Mas por direito a área seria maior, segundo Valdelice, formada em história indígena e estudante de Mestrado profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais, pela UNB. Takwara é uma das 42 áreas reocupadas que os Guarani Kaiowás chamam de “terras retomadas”.

Os despejos violentos começaram a partir de 1919, quando o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) criou as oito reservas, justamente com o objetivo de  obrigar os indígenas a evadirem de seus territórios tradicionais. Valdelice simboliza a materialização dessa união interétnica estratégica, a partir do casamento com um índio Guarani. Além dessas duas etnias, outras cinco, num total de sete que habitam o Mato Grosso, também estão ameaçadas pela decisão da AGU: os Terena, Guató, Ofaiyé, Kinikinaua e Kadiwéu. “As liminares terão um efeito dominó devastador”, alerta Pietra.

Como os Guarani e Kaiowá foram os últimos a migrar para as reservas indígenas, são os mais perseguidos pela força de resistência dos seus clãs, feridos pelo sistema de matriarcado, explica Pietra, que é formada em Direito, especialista em Direito do Trabalho e Direito Público e fez mestrado em Educação pelo Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Sul, com a dissertação “Shanenawa, o povo do pássaro azul: as possibilidades de uma educação ambiental profunda” e agora realiza mestrado na Universidade Federal de Pelotas, com um estudo na área de antropologia da violência , chamado Mulheres Terra, Vida, Justiça e Demarcação: A luta das mulheres Kaiowá em Takwara/MS. “Os clãs começaram a retornar para a terra de seus antepassados nos anos 80, e a cada retorno são expulsos com muita violência”. Há mais de duas décadas essa aliança ancestral produziu inúmeros movimentos de retomada da terra roubada, num combate destemido de vida e de morte. Apesar da vida desgraçada pelos governos e ruralistas, os Guarani e Kaiowá acreditam que a Terra do Sol vai um dia pôr fim à sua dor. Do firmamento, sorri a esperança póstuma de Taperendy, que significa “caminho iluminado”. Antes de Jacinto Honório da Silva Filho ser condenado como mandante do crime que calou fundo na alma da comunidade, o neto do latifundiário já investe seu ódio contra os indígenas. Mas novas lideranças também se erguem na luta pela resistência. A luta continua e isso é o ciclo da vida.

Entoando cânticos tradicionais, as líderes indígenas homenageiam Marcos Veron, cujos restos mortais também estão ameaçados de despejo

Através da amiga Pietra Dolamita, que pesquisa, como Valdelice, a violência antropológica contra as mulheres Kaiowá, converso com a líder por telefone. Foi estudando que a filha do cacique Veron despertou o interesse pela verdadeira história de seus antepassados e do seu próprio nome. “Descobri que nosso sobrenome veio de um argentino que escravizava os índios e eles iam sendo registrados com o sobrenome dele”. Num depoimento gravado no celular, emocionada e trêmula, mas também convicta e corajosa, Valdelice conta a história de seu pai, de sua família e de seu povo. E afirma: “Nós estamos demarcando as nossas terras com o nosso próprio sangue”.

As duas amigas conversam atentas aos sinais das plantas, dos bichos e do céu, pois os fazendeiros estão paramentados até com câmeras de drone para localizar a líder. Diante de qualquer suspeita, elas se embrenham na mata, onde o jagunço do fazendeiro não entra. “O mato tem uma coisa que não deixa o branco entrar”, diz Pietra. Ao anoitecer, antes de retornarem ao seu esconderijo com as outras mulheres, conversamos as três por telefone e Valdelice me dá o seguinte depoimento, que transcrevo na íntegra:

Valdelice Veron vive o luto do pai temendo novos massacres

“Hoje, 13 de janeiro de 2018, nós da família do cacique Marcos Verón, juntamente com as lideranças indígenas, estamos reunidos na Terra Indígena Takwara, município de Juti, Mato Grosso do Sul, no Brasil, para lembrar a história de luta, de resistência do cacique.

A nossa Terra Indígena tradicional é Takwara. Sempre vamos voltar nela. Tem um grande significado porque é uma terra sagrada. É onde nós temos a memória, onde nós temos a história. Por isso nós voltamos a retornar nossas terras indígenas aqui no Estado do Mato Grosso do Sul, porque aqui no Brasil nós não somos ouvidos.

Nossos governantes que era pra fazer respeitar nossa Constituição Federal, que é a nossa lei que está escrita, eles não respeitam, eles rasgam, queimam a Constituição Federal e matam nós quando nós lutamos por nossa terra. Nós somos perseguidos pelos latifundiários e mortos pelos pistoleiros dos fazendeiros aqui no Mato Grosso do Sul.

Apesar de termos já o cacique Marcos Veron e 289 líderes  indígenas assassinados no Mato Grosso, entre eles Kurissiope, a matriarca indígena da Terra. Eles atiraram nela à queima-roupa, uma matriarca de 80 anos, na terra de Makurissiambá, no Mato Grosso do Sul. Outro também foi morto e cercado pelos pistoleiros. E assim nós seguimos demarcando nossa Terra Indígena com luto e sangue. Nós estamos demarcando as terras indígenas com nosso próprio sangue.

Hoje quando a gente lembra o cacique Marcos Veron foi um pai, foi um avô, foi um genro, um sogro, um amigo, um companheiro. Ele foi um guerreiro Kaiowá para nós. Por isso vão passar várias gerações e nós vamos lembrar dele. Vamos lembrar dele, esse guerreiro que ele é. Todos nós, os 18 filhos e filhas, netos e bisnetas ele vai se lembrar dele e da resistência e vamos lembrar da bandeira dele que é Terra, Vida, Justiça e demarcação.

No dia 13 de janeiro de 2003, fomos cercados pelos pistoleiros na nossa T.I. Takwara, quando a minha família, as mulheres, crianças foram espancadas estupradas, mulheres e meninas foram violentadas. Nosso cacique foi torturado e morto. Estamos lembrando nossa forma de resistência com muita força e coragem. Lembrando a luta dele fazendo esses ritos de canto e dança com Mbaraka. Nossa forma de luta Kaiowá é pacífica. Isso é o que estamos fazendo hoje 13 de janeiro de 2018, ainda com muita tristeza.

Eu agradeço vocês que são poucas jornalistas, que faz o papel falar, que leva a nossa luta, a nossa tristeza, para as pessoas saber que nós ainda estamos aqui, ainda estamos de pé, ainda estamos vivas. Agradeço a todos vocês.

Terra Indígena de Takwara sofreu o primeiro despejo em 1953. O povo foi arrancado da terra e jogado nas reservas indígenas criada pelo Serviço de Proteção ao Índio e pelo governo. Nós, índios Kaiowá, nunca aceitamos a reserva porque significa área de abate, de confinamento, área de morte.

Esse fazendeiro sem coração que torturou e matou nossa cacique Marcos Veron, de nome indígena Taperendy, que significa caminho iluminado, não vai ficar impune. Na terra, toda a divindade sabe, o que aconteceu com o povo indígena Kaiowá aqui no Mato Grosso do Sul”.

DECISÃO DE TEMER/AGU DETONA BOMBA DOS DESPEJOS

“Na prática, o parecer da AGU paralisou as demarcações de vez”, afirma em nota o Instituto Socioambiental (ISA). Mas a tese do marco temporal faz pior do que isso. Como uma estratégia do governo Temer e da bancada ruralista capaz de deflagrar a desocupação das áreas retomadas e favorecer ordens de despejo violentas a prerrogativa da Terra Raposo da Serra tende a produzir um drástico retrocesso, se não houver ampla reação nacional e internacional

Com seu poder de influência sobre a Justiça Federal, a Advocacia Geral da União (AGU), que deveria ser o principal órgão de defesa do cumprimento do direito à terra dos indígenas brasileiras, acabou criando um mecanismo desencadeador de ordens de despejo e de reintegração de posse contra os povos indígenas. A ameaça de novos massacres provocada pela decisão pode ser sentida por todas as etnias de terras retomadas do Mato Grosso do Sul, sobretudo na região de Dourados, conforme posição oficial do Conselho Missionário Indígena. Isso porque o estado concentra o mais acentuado passivo de regularização fundiária dos territórios tradicionais no país.

Publicado em julho pela advogada-geral, Grace Mendonça, e adotado pelo presidente Temer para todos os órgãos federais, o parecer 01/2017 teria, conforme as lideranças indígenas, a função de manter o quadro de não-reconhecimento dos direitos ao território como está. O dispositivo obriga toda a administração pública, inclusive a Fundação Nacional do Índio (Funai), a obedecer as condições estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (Roraima). “Na prática, o parecer paralisou as demarcações de vez”, afirma em nota o Instituto Socioambiental (ISA). Mas a tese do marco temporal faz pior do que isso: como uma estratégia do governo Temer e da bancada ruralista capaz de deflagrar a desocupação das áreas retomadas e favorecer ordens de despejo violentas, ela tende a produzir um drástico retrocesso, se não houver ampla reação nacional e internacional.

Prova disso, é que a AGU também está anexando o parecer aos processos judiciais em que está arrolada como parte interessada, conforme nota do Instituto Sócio-ambiental, que está articulado com o movimento indígena #Resistência2018 para tentar revogar o parecer. “O resultado provável serão decisões judiciais desfavoráveis às comunidades indígenas. Assim, o governo Temer consolida o pior desempenho nas demarcações desde a redemocratização do país”, denuncia a entidade.

O Marco Temporal restringe os direitos territoriais dos povos determinando que só podem ter reconhecidas as terras que estavam sob sua posse na data em que a Constituição Federal foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Explica o artigo publicado pelo CIMI: “Existe uma crise humanitária na Reserva de Dourados se arrastando há pelo menos duas décadas. Os 16 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena vivem confinados em três mil hectares e buscam terras para desafogar’ a situação”.

Sem a sua participação ou concordância, os indígenas foram levados para a Reserva no decorrer do final da primeira metade do século XX, como política de colonização de “terras devolutas” do então estado do Mato Grosso. Portanto, em 5 de outubro de 1988, esses povos já não estavam nas terras tradicionais de onde foram retirados à base de força e violência, explica o documento. “Dessa maneira, a cada retomada ou ocupação de terra fora da Reserva, eles sofrem ações de reintegração de posse que desde o ano passado têm como principal argumento deferidor a tese do marco temporal”, diz ainda.

Em entrevista a jornalistas de Brasília, Sônia Guajajara, uma das coordenadoras da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), afirmou que se trata de medida do Poder Executivo como um todo, justamente o que tem como papel efetuar a política de demarcações: “Como a retomada de terra é a alternativa dos povos para garantir o território tradicional, esse parecer é o combustível necessário para abastecer a usina de reintegrações de posse, com destaque para as decisões de primeira instância”.

Leia mais a respeito na página do ISA: https://goo.gl/FroFPU

 

 

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Publicadoo

em

O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

Continue Lendo

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

Publicadoo

em

Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

Continue Lendo

Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

Publicadoo

em

Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

Continue Lendo

Trending