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Luta feminista perde sua mais expressiva líder em SC

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À frente do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas, do qual foi fundadora, há cerca de 15 anos

Ela lutou desde muito jovem contra o machismo e o assédio moral no trabalho e atuou como fundadora na organização das mulheres trabalhadoras urbanas em seu estado. Coordenadora do coletivo feminista 8M em Santa Catarina, Schirlei de Azevedo foi uma das mais vigorosas e atuantes lideranças das lutas feministas contra o Golpe de 2016, a reforma da previdência e a retirada de direitos dos trabalhadores. Ajudou a organizar as mulheres pelo Fora Temer, a perda dos direitos que se seguiu e o #EleNão para evitar a tragédia maior que se consumou com a eleição de Jair Bolsonaro. Presidenta do Diretório Municipal do PT, formada em Pedagogia pela Udesc, encabeçou também os movimentos contra a mordaça dos professores, os cortes na educação e o fechamento de escolas públicas na capital.

Desde o início do ano enfrentava também uma doença renal e depois o câncer que a abateu em pleno vigor, na juventude revolucionária dos seus 53 anos. Schirlei se foi na sexta-feira à noite, enquanto assistíamos na arquibancada da quarentena ao desmonte da farsa do golpe e do crime eleitoral no ringue Sérgio Moro X Bolsonaro. Partiu silenciosamente, na noite do Brasil, quando poderia vislumbrar o começo do fim de uma familícia que tanta infelicidade trouxe para ela e para os seus povos.

Até ser internada em 22 de fevereiro deste ano, no Hospital Governador Celso Ramos, para retirada de um rim, Schirlei de Azevedo do Amaral Ribeiro estava nas ruas, liderando protestos contra o assassinato de Marielle Franco e outros feminicidios, a violência LGBT, o ataque aos territórios indígenas e quilombolas, a criminalização do aborto. Do sexto andar do Hospital ela participou dos panelaços do Fora Bolsonaro e, com ajuda do filho Rodrigo do Amaral, mandava mensagens para as companheiras e companheiros insistirem na derrubada do governo miliciano.

Ainda se recuperando da cirurgia, descobriu um tumor agressivo no cérebro e desde a cama do HGCR, sua luta passou a ser por uma vaga no Hospital do Cepom, referência no tratamento oncológico, o que só ocorreu no dia 3 de abril, com a mobilização dos amigos. Chegou a escrever um artigo sobre a uberização do trabalho, para provocar debate com as companheiras. Um recado de Rodrigo no Facebook dá o tom da líder consciente que ela era, incapaz de se desplugar das dores do mundo. “Mãe está pedindo, com aquele jeitinho todo dela, que vá todo mundo pro Rio Vermelho abraçar o Quilombo Vidal Martins, principalmente as crianças de lá”. Era um dia de manifestação pela regularização das terras do quilombo e Schirlei deu o comando a distância:

“Aquela é uma conquista rara e muito cara para nós (povo de Florianópolis) e em terras de grande valor e exploração imobiliária. É lá, pisando naquela terra, cuidando da nossa gente, alimentando, garantindo segurança e aconchego é que devemos estar, não em hospital”.

 

Da cama do hospital, Schirley mandava mensagens de estímulo à luta das mulheres e trabalhadores

Foram tantas as frentes de resistência que ela abraçou que seria impossível rotular sua trajetória em uma designação menos plural do que esta: líder feminista. Como assessora parlamentar na Alesc, foi a idealizadora do projeto resultante na lei que baniu o uso do amianto em Santa Catarina.

A vida desta lutadora foi marcada pelo lastro de retrocessos que se seguiram aos períodos de vitória democrática e conquistas de direitos por sua geração. Já em 2004, atuou nas frentes por ampliação do espaço da mulher na política e se candidatou à vereadora pelo Partido dos Trabalhadores de Florianópolis. Como militante do partido, enfrentou a prisão do ex-presidente Lula da Silva, contra a qual encampou férrea batalha. Vitoriosa nas eleições para presidente do Diretório Municipal do PT em Florianópolis, realizadas do ano passado, assumiu o cargo em 29 de setembro, mas foi obrigada a se afastar cinco meses depois por causa da doença renal e do câncer que se revelou com metástase.

Foram muitas as derrotas, mas ela sempre fez de todas elas um motor para a batalha seguinte. Enfrentou essa sequência sofrida de eventos com o braço erguido em punho e um sorriso de confiança na próxima batalha. Difícil esquecer as lágrimas de Schirlei ao discursar em evento dedicado à defesa do Estado Democrático e de Direito promovido pela bancada parlamentar de esquerda da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, que ela assessorava. Era véspera do golpe de 2016. Impossível não visualizá-la agora falando com a voz embargada que, depois de tanta luta das mulheres e das classes trabalhadoras para redemocratizar o país e conquistar direitos sociais, não queria deixar o Brasil sombrio que se avistava para os filhos e netos.

Coletivo 8M muito deve à liderança amorosa de Schirlei, capaz de aglutinar todas as forças

A pantera loira que lutava contra a supremacia racial desempenhou um papel importantíssimo como representante da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Vítimas de Assédio Moral na Brasil pela Telecom, participando de audiências públicas e prestando assessoria a sindicatos trabalhistas de todo estado. Também foi coordenadora do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas em Santa Catarina desde a sua fundação. Embora transparente na sua definição partidária, era a líder feminista que melhor conseguia agregar todos os grupos de mulheres e nos fazer sentir parte de uma única comunidade de resistência, colocando em segundo plano nossas diferenças ideológicas em favor da união das esquerdas. Deixou três filhos , Matheus, Thiago e Rodrigo e a neta Sophia, todos sementes dessa vida dedicada à transformação.

O velório ocorreu neste sábado, 25/04, das 10 às 12 horas, no Crematório do Cemitério Jardim da Paz, em Florianópolis, com a homenagem dos amigos, que entraram de máscaras, em rodízio de dez pessoas em cada vez para prestar sua última homenagem à líder amorosa, uma das mais expressivas que Santa Catarina já teve.

Abaixo, uma das incontáveis entrevistas realizadas pelos Jornalistas Livres com a grande líder.

 

 

PT Santa Catarina

9 h · 

NOTA DE PESAR DO DIRETÓRIO DO PT SANTA CATARINA

O Partido dos Trabalhadores de Santa Catarina comunica com profundo pesar o falecimento da companheira, Schirlei Azevedo.

Schirlei nos deixou na noite desta sexta-feira, dia 24, depois de lutar bravamente contra um câncer desde fevereiro.Natural de Florianópolis, *Schi,* como era carinhosamente chamada, era atual presidenta do PT da Capital e uma das maiores militantes feministas do partido. Filiada ao PT desde 1988, trabalhou na área das telecomunicações, onde chegou a presidir o Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing e disputou as eleições municipais de 2004 e 2008, como candidata a vereadora. Também trabalhou por muitos anos como assessora na liderança da Bancada do PT na Assembleia Legislativa.

Foi uma das fundadoras do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas SC (MMTU) e uma das maiores defensoras das bandeiras feministas. Atou na linha de frente em importantes mobilizações e pautas que tinham o objetivo de garantir os direitos das trabalhadoras e trabalhadores. Luta, organização e militância política faziam parte do seu dia a dia.

“Sou uma mulher do PT”. Assim que ela se intitulada em sua página na rede social e assim Schirlei era conhecida. Apaixonada pela causa, ela sempre esteve na linha de frente na discussão de importantes debates do partido e estava vivendo um dos momentos mais felizes de sua vida: presidenta do seu partido, na sua cidade. Um sonho e uma missão dessa mulher que sempre nos acolheu com um lindo sorriso no rosto.

A imagem pode conter: 1 pessoaSchirlei também fazia parte do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT da Secretaria Nacional das Mulheres e era formadora da Escola Perseu Abramo nos temas mulheres e feminismo. Uma mulher guerreira que seguiu assim até os últimos minutos de sua vida.

Nos deixou um legado de luta pelos direitos dos menos favorecidos, especialmente das mulheres. Com seu jeito amável e generoso, lutava incansavelmente para que as mulheres tivessem voz e espaço no mundo, assim como ela conseguiu ter. Compartilhava seus saberes e sempre estava disposta a ajudar.

Mulher, feminista e extremamente dedicada nos deixa um belo legado e sem dúvida será seguido para todas, todes e todos que acreditam que mundo melhor é possível.

O Partido dos Trabalhadores de SC lamenta profundamente sua prematura partida e manifesta condolências a familiares, companheiras especialmente a sua mãe Sueli, seus filhos Matheus, Thiago e Rodrigo e sua paixão, a neta Sophia.

SCHIRLEI, PRESENTE!

Décio Lima
Presidente do PT-SC

 

 

NOTA DE PESAR PSOL FLORIANÓPOLIS

Com profunda tristeza recebemos a notícia de que a companheira Schirlei Azevedo, presidenta do PT de Florianópolis, nos deixou nesta sexta-feira, 24 de abril. Ela enfrentava um câncer e estava internada desde fevereiro.
Natural de Florianópolis, Shirlei foi militante feminista, filiada ao PT desde 1988. Trabalhou na área das telecomunicações, onde chegou a presidir o Sindicato dos Trabalhadores em Telemarketing. É uma das fundadoras do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas SC e disputou as eleições municipais de 2004 e 2008, como candidata a vereadora.
Em nome do PSOL, nos solidarizamos com a família, amigos e com a militância do PT nesse momento de dor.

Schirlei Azevedo, presente!
Florianópolis, 25 de abril de 2020

Diretório Municipal do PSOL

 

Secretaria Mulheres PT/SC

3 h · 

NOTA DE PESAR DA SECRETARIA DE MULHERES DO PT/SC

A imagem pode conter: 2 pessoasA Secretaria Estadual de Mulheres do PT-SC se despede da nossa grande lutadora, Schirlei Azevedo, nossa mulher de luta! Se despedir de alguém como a Schirlei é muito doloroso, ela faz parte das pessoas imprescindíveis, que acolhia a todas com um abraço e um sorriso. Não tê-la em vida, no fronte, na organização nos fará muita falta!

Feminista e leal ao seu Partido e à causa das Mulheres, a nossa guerreira lutou até o último instante pela vida e nos deixou um legado. Filiada ao Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras desde 1988, a organização das mulheres petistas em Santa Catarina tem muito da Schirlei! Militou no movimento sindical e na denúncia das doenças relacionadas ao trabalho, a favor do SUS e contra toda forma de violência e pela pauta das mulheres. Foi uma das fundadoras do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Urbanas – MMTU. Integrou a organização do 8M em Santa Catarina. Fazia parte do Coletivo de Formadoras da Escola Nacional de Formação do PT e Formadora da Escola Perseu Abramo. Integrante da Secretaria Nacional de Mulheres do PT, da Secretaria Estadual de Mulheres do PT e recentemente foi eleita a Presidenta do PT de Florianópolis.

Uma mulher de luta! Não tê-la em vida com a gente, será muito dolorido, mas vamos continuar a sua trajetória, pelas nossas vidas, das nossas irmãs, das nossas mães, das nossas tias, das nossas filhas, das nossas primas, das nossas amigas, enfim por todas as mulheres. A Schirlei não ia querer que a gente parasse, até que todas estejam livres!

Vamos resistir pelas futuras gerações de mulheres que merecem nascer e viver num lugar mais justo. Vamos lutar o quanto for preciso. E vamos, sim, mudar o mundo, e a Schirlei estará na nossa mente. Agora ela se transforma em força para cada mulher petista, se torna inspiração de resistência e de compromisso!

Sem poder nos abraçar, justamente na despedida de quem o abraço era tão acolhedor, nós trocamos energia de todos os cantos do estado e saudamos a vida da nossa companheira Schirlei. Nos solidarizamos aos filhos, a neta, a sua mãe, a todos os familiares e amigas e amigos.

Vá em paz, Companheira Schirlei! Gratidão por toda a luta! Nós seguiremos com você em nossos corações!

Schirlei PRESENTE, hoje e sempre!

Coletivo da Secretaria Estadual de Mulheres do PT-SC.

   

MANIFESTO DE SOLIDARIEDADE E PESAR

A Esquerda Popular Socialista – EPS do Partido dos Trabalhadores de SC manifesta seu profundo pesar pelo falecimento da companheira, Schirlei Azevedo.

Lutando contra um câncer desde fevereiro, Schirlei nos deixou na noite desta sexta-feira, dia 24. Schirlei deixa um grande legado de compromisso e lutas da classe trabalhadora em nossos estado e no país.

Filiada ao PT desde 1988, presidiu sindicato, foi candidata a vereadora e trabalhou na liderança do PT na ALESC durante muitos anos. Sua atuação e sua história à conduziram para assumir presidência do PT de Florianópolis.

Acima de qualquer luta estava sua dedicação ao PT e a defesa das bandeiras feministas, “uma mulher do PT”, como ela mesma se definia.

A militância de Schirlei ficará marcada na história do Partido dos Trabalhadores. A militância desta mulher, protagonista de seu tempo, formadora, guerreira, acolhedora, e que com generosidade compartilhava saberes e vivências.

Neste manifesto, celebramos à sua vida e reverenciamos a sua memória.

Somos gratos pelo privilégio de poder ter contado durante esses anos com seu exemplo e engajamento nas lutas de nosso povo pela construção de uma sociedade democrática e justa.

Aos familiares, sua mãe Sueli, seus filhos Matheus, Thiago e Rodrigo e sua paixão, a neta Sophia, companheiras e companheiros de luta a EPS manifesta sua solidariedade nesta hora de dor.

SCHIRLEI, PRESENTE, SIGA EM PAZ SUA JORNADA

Florianópolis, 25 de Abril de 2020.

ESQUERDA POPULAR SOCIALISTA DO PARTIDO DOS TRABALHADORES (EPS-PT)

 

  

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3 Comments

3 Comments

  1. Gilberto Barros

    25/04/20 at 13:40

    Que uma revoada de anjos conduz o espírito dessa guerreira para a luz. Deus ampara e conforta os corações dos entes queridos e amigos dela.

  2. Valeria Dallegrave

    25/04/20 at 17:20

    Grande guerreira. Belo texto-homenagem. Seguimos em frente, por nós, por ela, pelos que virão…

  3. Weimar Donini

    26/04/20 at 1:16

    Batalhadora incansável. Fará muita falta!

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Geral

O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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Geral

O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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