A discussão da moda, nas rodas golpistas, é passar leis que “flexibilizem” a relação trabalho e capital. Precisamos “modernizar” a legislação trabalhista, repetem com ares de quem se refere a matéria óbvia, evidente, pacificada, de conhecimento geral. Invejo o otimismo de quem julga que flexibilizar e modernizar significa outra coisa que não cortar direitos, imprimir mais trabalho com menor retorno, com menos garantias.
O governo Temer, e todos que o apoiam, está dizendo, com todas as letras, aos trabalhadores: “só vocês criam valor, e para ganharmos mais, precisamos que vocês criem mais valor, recebendo menos e trabalhando mais, para aumentarmos nossos lucros”.
Eles confirmam Marx: só o trabalho cria valor.
Ao tempo em que, em coro querem aprovar regulações para, nas palavras de Marx, aumentar o trabalho excedente e, assim, aumentar a mais-valia. Trabalho excedente entendido como o valor que o trabalhador gera e não é pago em seu salário e mais-valia entendida como o lucro apropriado pelo empresário.
A última pérola vem acrescentar à discussão uma mudança na lei trabalhista para permitir jornadas de trabalho de 12 horas. Não consegui fugir da ideia de que retornamos, não ao neoliberalismo dos Fernandos, Collor e Cardoso, mas ao século XIX. Brincávamos que o programa golpista seria a Ponte para o Passado. Não poderíamos supor que o retrocesso chegaria à revolução industrial inglesa, que Marx bem analisou e afirmou que a jornada normal de trabalho foi resultado de séculos de lutas entre capitalistas e trabalhadores.
Marx está morto. Sua descrição do capitalismo e dos capitalistas, entretanto, está cada vez mais viva. Quando, no século XIX, Marx cita a “sede vampiresca do capital pelo sangue vivificante do trabalho”, parecia intuir que, dali a duas viradas de século, haveria um bando hematófago a negar o processo civilizatório que, se passou muito ao largo de promover a igualdade, ao menos, limitou certos excessos.
O consumo de uma vida em 7 anos de trabalho
A súcia que usurpou o poder no Brasil em 2016 certamente veria com normalidade viver nos tempos sombrios, nos EUA, que Marx descreve: “O trabalho dos negros nos estados meridionais da América do Norte preservava certo caráter patriarcal enquanto a produção se destinava principalmente à satisfação direta das necessidades. Na medida, porém, em que a exportação de algodão se tornou interesse vital daqueles estados, o trabalho em excesso dos pretos e o consumo de sua vida em 7 anos de trabalho tornaram-se partes integrantes de um sistema friamente calculado. Não se tratava mais de obter certa quantidade de produtos úteis. O objetivo passou a ser a produção da própria mais-valia.”
Marx dedicou quase 80 páginas do Capítulo VII, de O Capital, a uma exposição histórica detalhada da luta real entre capitalistas e operários para determinar a duração da jornada de trabalho. “Argumentava ele que, enquanto os trabalhadores procriassem, fornecendo, assim, seus próprios substitutos, os capitalistas lutariam para estender a duração da jornada de trabalho, até que ela atingisse o limite da resistência humana”, nos ensina E. K. Hunt
A jornada normal de trabalho
foi o resultado de séculos de lutas
entre capitalistas e trabalhadores.
Marx descreveu a voracidade do capital no século XIX, que muito se assemelha às questões do Brasil do século XXI, da seguinte forma:
O que é uma jornada de trabalho? Durante quanto tempo é permitido ao capital consumir a força de trabalho cujo valor diário paga? Por quanto tempo se pode prolongar a jornada de trabalho além do tempo necessário para reproduzir a própria força de trabalho?
A estas perguntas, conforme já vimos responde o capital: O dia de trabalho compreende todas as 24 horas, descontadas as poucas horas de pausa sem as quais a força de trabalho fica absolutamente impossibilitada de realizar novamente sua tarefa. Fica desde logo claro que o trabalhador, durante toda sua existência, nada mais é que força de trabalho, que todo seu tempo disponível é, por natureza e por lei, tempo de trabalho, a ser empregado no próprio aumento do capital.
Não tem qualquer sentido o tempo para a educação, para o desenvolvimento intelectual, , para preencher funções sociais, para o convívio social, para o livre exercício das forças físicas e espirituais, para o descanso dominical, mesmo no país dos santificadores do domingo. Mas, em seu impulso cego, desmedido, em sua voracidade por trabalho excedente, viola o capital os limites extremos, físicos e morais, da jornada de trabalho.
Usurpa o tempo que deve pertencer ao crescimento, ao desenvolvimento e à saúde do corpo. Rouba o tempo necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às refeições para incorporá-lo, sempre que possível, ao prórpio processo de produção, fazendo o trabalhador ingerir alimentos como a caldeira consome carvão, e a maquinária, graxa e óleo, enfim, como se fosse mero meio de produção.
O sono normal necessário para restaurar, renovar e refazer as forças físicas reduz o capitalista a tantas horas de torpor estritamente necessárias para reanimar um organismo absolutamente esgotado.
Não é a conservação normal da força de trabalho que determina o limite da força de trabalho; ao contrário, é o maior dispêndio possível diário da força de trabalho, por mais prejudicial, violento e doloroso que seja, que determina o tempo de descanso do trabalhador.
O capital não se preocupa com a duração da vida da força de trabalho. Interessa-lhe exclusivamente o máximo de força de trabalho que pode ser posta em atividade. Atinge esse objetivo encurtanto a duração da força de trabalho, como um agricultor voraz que consegue uma grande produção exaurindo a terra de sua fertilidade.
Marx conhecia os golpistas brasileiros?
Notas
1 “O operário fez tudo; e o operário pode destruir tudo, porque pode fazer tudo de novo.” Essa frase é a epígrafe do livro “Compêndio de O Capital”, de Carlo Cafiero, escrito em 1879.
2 As citações de Marx foram extraídas do capítulo “A jornada de trabalho”, do livro “O Capital” de Karl Marx, Livro 1 volume 1.
3. E. K. Hunt é o autor de “História do Pensamento Econômico”.
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