Desculpem-me mas hoje não vestirei branco.

Grafite Saci Urbano - Foto: Sato do Brasil

Desculpem-me mas hoje não vestirei branco. Não comerei 3 uvas, não rezarei, coisa que nunca fiz. Não fecharei meus olhos para alguma contemplação silenciosa. Perdoem-me. Não jogarei ramalhetes de flores ao mar, mesmo que eu estivesse próximo de algum, não libertarei pombas brancas, ratos do ar, para respirar pretensa liberdade. Não acenderei velas nem pavios.

Amanhã pretendo apenas seguir o dia e assim, a noite e, por ventura, a madrugada. Quiçá, ver a porra do nascer do sol. Ando cansado, talvez me perca em Morfeu e acorde já, onde todos estaremos. Olho para o relógio e já são mais de meia-noite. Já caminhamos para o último dia do resto de nossas vidas. Mas sinto um certo desconforto. Grande demais. Não terminamos o que ousamos começar.

2016 foi perverso. Durante todo o ano a perversidade do ser humano aflorou de modo drástico e violento. É difícil desconversar sobre a incrível mobilidade do abate da desgraça alheia. Chutar cachorro morto. O ser humano é perverso, naturalmente perverso. Ao dominar todos os outros animais, nós ainda os queremos domesticados, gradeados em jaulas, presos em parques temáticos como bizarrices de um mundo moderno. Claro que, pra isso, teve que inventar uma rede na qual ele mesmo se amarrou de forma avassaladora. Nóis contra rapa. Nesse momento, perdeu-se o controle sobre a barbárie. Quando nos vimos como únicos donos e senhores do destino do poder. Nesse momento, fudeu. Tudo dominado, nos viramos contra nós mesmos. O próximo animal a ser abatido.

Somos criaturas solitárias, que visamos um contento pessoal e intransferível. Por isso e para isso, gozamos. O gozo é a dramaturgia do poder. A grana também, o celebritismo, a dor terceirizada, a falência do bem-estar e do espaço público, o golpe. A alcova, o trono. Quando precisamos construir uma regra, estratificação objetiva de controle sobre a violência primal de nossa espécie, quando estabelecemos templates de um cidadão de bem em conta com a sociedade vigente para que possamos conviver minimamente em comunidade, o caldo entorna.

Ainda mais. O poder requenta sua existência em uma poderosa liga de velhos carcereiros de hábitos tardios. Velhos homens brancos com baba nos cantos das bocas se entrelaçam nas teias do preconceito, do machismo, dos diferentes salões sociais, do racismo, da misoginia, da transfobia. Uma reunião mal cheirosa de antigos fomentadores da discórdia viral e da pobreza real, que criam em suas fantasias, um território cinzento, sem vida, sem alma, sem valor, cercados por alarmes, cadeados e milícias de calçada. Criam dentro desse roteiro dos absurdos, um único inimigo a ser combatido e o destroem impiedosamente através de verdades inventadas e mentiras violentas, com a dolente proteção da grande mídia, dos arautos da informação e dos big brothers da vez, em nome do pai, da mãe, dos filhos, de Deus.

Quando o poder se encarcera dentro de uma rede virtual, sua alcova tecnológica, onde você cria sua imagem e semelhança, aparece, firme e forte, o eu exacerbado, a total falta de noção. A barricada que a rede produz, permite a difusão de ideias até então domesticadas sob a luz do bem estar moral, e vemos a completa destruição do ser humano cordial, que conquista seu domínio através de uma hierarquia coletiva. Protegido pela idoneidade cega do anonimato, tudo pode. Racismo, preconceito, assédio sexual e moral, intolerância religiosa, econômica e social. Tudo pode. A rede se transformou numa privada pública diária.

Grafite Saci Urbano – Foto: Sato do Brasil

Mas o pior ainda esteve por vir e veio. Quando a horda intolerante percebe e reconhece a rua como espaço da sua jogatina, o ser humano chega ao ápice de sua miséria institucional. E não falo das batucadas de panelas Le Creuset nas varandas gourmet. Quando refugiados africanos são assassinados em formato de execução, apenas pelo fato de serem estrangeiros, é disso que falo. Quando uma travesti ou um gay é atacado violentamente tanto física quanto psicologicamente causando morte e medo, é disso que falo. Quando um homem comum defendendo outro ser humano em nome da tolerância é massacrado e morto a socos e pontapés, é disso que falo. Quando espancam e matam uma mulher porque simplesmente alguém disse que ela parecia com alguém que fez alguma coisa, é disso que falo. Quando você é impedido com agressividade exagerada de vestir uma camiseta vermelha, mesmo que você carregue um nenê no colo, é disso que falo. Quando um índio é incendiado num ponto de ônibus porque, de acordo com o assassino, parecia um mendigo, oi, é disso que falo. Quando um homem é espancado porque veste uma túnica branca e exerce silenciosamente sua religião num país laico, é disso que falo.

Talvez a maior violência seja o nosso silêncio. Quando fechamos a janela do nosso tanque de guerra diário, quando abaixamos a cabeça pra dentro das fantasias dos nossos livros, quando mudamos de calçada, quando aumentamos o volume, quando não prestamos atenção, quando não ficamos onde estamos, quando não apertamos as mãos. A ordinária meia-boca, o meio-copo, o desprezível mais ou menos, o em cima do muro. E quantas vezes, penetrei nesse universo ardiloso e angustiante, transformando meu umbigo no eixo primordial da vida. Promessa: nunca mais do mesmo. Os mesmos símbolos, as mesmas desculpas, as mesmas cerimônias que nunca se concretizam.

Ao mesmo tempo, sou um otimista, eu ainda acredito no ser humano. O ser humano que se desumaniza, que cria em si, o espírito de um outro animal. O verdadeiro animal cordial, o homo cordialis. Esse sim, eu acredito com fé cega e amolada. Esse animal que conheci nas ruas e esquinas da cidade, em brado forte, em lágrimas compartilhadas, com punhos cerrados, em abraços contundentes. O animal revolucionário. O animal tolerante. O animal igualitário. Quase uma invenção de algum roteirista desavisado, mas verdadeiro. O pós-herói mais destemido. Alguns dizem que já viram em algumas montanhas, envoltos em nuvens de vagalumes, outros dizem que esses seres dançam em meio à neblina, alguns mais falam em rodas em volta de fogueiras que cintilam pequenas sereias de asas pontiagudas. Existem alguns loucos que teimam em dizer que estão nas ruas, nas cidades, no campo, em moradias e escolas ocupadas, em meio a terras cultivadas, em casas rodantes em vizinhanças de luz, em praças imigrantes, em manifestações públicas munidos de câmeras e textos, ao seu lado no ponto de ônibus.

Esses hominídeos deram a volta em seu destino. Reverteram a lógica da existência e se reinventaram. Perceberam na coletividade seu maior trunfo. A troca de saberes, o entendimento de cada história, a dominação de seus anseios perigosos, a parceria ilógica, a contaminação de processos. Assim, partiram para a construção de uma sociedade igualitária, tolerante e revolucionária. Se a revolução não vai ser televisionada, vai ser compartilhada. A partir da tecnologia do encontro, a tecnologia de rede. A rede comum, templário de novas experiências de cidade. A viralização da revolução. A construção de uma nova escola, de dentro pra fora e de fora pra dentro, a percepção de uma nova forma de moradia, comunitária e horizontal, o entendimento da coletivização como meio de participação das decisões, o ambiente interno e externo como parte integrante da relação de trabalho, prazer e auto-gestionamento, a visão de uma humanidade só, sem as diferenças que as falsas fronteiras proporcionam, a compreensão que todos temos cartacterísticas próprias, maneiras, credos, culturas, que não nos fazem maiores ou menores e que apenas nos fazem griôs de nossas histórias. Hackeando e desintegrando as correntes da velha sociedade e inventando uma outra, libertária, densa em seu comprometimento com o outro, com a vizinhança, um mundo fantástico de paz, respeito e alegria.

E vou ser sincero, vou contar pra vocês. Um dia eu fui cooptado por um desses seres. E já faz tempo. Me levaram para uma praça, tarde de brisa na zona norte. Lá embaixo enxergava a cidade. Adormeci. E vi a cidade que sempre sonhei e continuo sonhando. Acordado, a promessa de nunca mais deixar pra lá, ser indiferente, passar a vez. Sempre estar a frente de nosso destino. Encontrei muitos outros, que também fazem parte dessa vizinhança, e alguns juntos, outros por perto, preparamos essa grande revolução silenciosa, feita de corações cheios de fúria e sonhos. Nada menos que tudo. O copo sempre cheio. Oxigênio. Transborda.

Desculpem-me mas hoje não vestirei branco. Não comerei 3 uvas, não rezarei, coisa que nunca fiz. Não fecharei meus olhos para alguma contemplação silenciosa. Perdoem-me. Não jogarei ramalhetes de flores ao mar, mesmo que eu estivesse próximo de algum, não libertarei pombas brancas, ratos do ar, para respirar pretensa liberdade. Não acenderei velas nem pavios. Criemos novos símbolos. Vivamos 2017 com sabedoria, coragem e ousadia. E tudo será.

Com amor, Sato do Brasil. Jornalista livre e casadalapa.

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