A globalização neoliberal no banco dos réus

Thomas Piketty tem alertado que os efeitos do aumento da desigualdade transcendem a injustiça social: são danosos ao próprio funcionamento da economia. O artigo, que segue, nos dá boa noção dos efeitos políticos e ambientais que resultam da globalização tão arduamente defendida pelos neoliberais.

Os manuais de economia, em sua maioria ortodoxos e assentados no neoliberalismo, não se cansam de incentivar a globalização e a abertura dos mercados nacionais para produtos e capitais importados. A abertura expõe nossa produção à concorrência, obrigando-nos a produzir com maior eficiência ou somente produzir aqueles bens que tenhamos vantagens comparativas aos outros produtores, afirmam os economistas neoliberais. Todos ganharão quando cada um produzir aquilo em que é mais eficiente, vaticinam eles.

Assim foi construído o discurso para que os países abrissem suas fronteiras. As indústrias puderam passar a escolher sua localização no mundo, obviamente em locais que os custos eram mais baixos. E os capitais puderam, da mesma forma, escolher mercados onde alcançassem melhor combinação retorno e risco.

Por debaixo do discurso de eficiência, no entanto, há questões muito sérias, como a precarização do trabalho e o aumento da desigualdade de renda. O trabalhador estado-unidense sindicalizado e protegido por uma legislação trabalhista forte, por exemplo, viu sua fábrica mudar-se para a China e seu emprego evaporar-se. A China é mais eficiente ou paga mal seus operários e os mantém à margem de direitos? A China é mais eficiente ou permite economia de impostos às empresas que lá se instalam? A China é mais eficiente ou despreza os controles de danos ao meio ambiente? Vamos ao texto de Piketty.

Devemos repensar a globalização, ou o Trumpismo prevalecerá

por Thomas Piketty

O aumento da desigualdade é, em grande parte, responsável por esta reviravolta eleitoral.

Digamos logo de cara: a vitória de Trump se deve, antes de qualquer outra razão, à explosão da desigualdade econômica e regionais nos Estados Unidos por várias décadas e à incapacidade dos sucessivos governos para lidar com isso.

Os governos de Clinton e Obama não fizeram mais do que acompanhar a liberalização do mercado lançada na gestão Reagan e seguida nas presidências de Bush pai e filho. Às vezes, Clinton e Obama superaram os republicanos, como na desregulamentação financeira e comercial realizada sob Clinton, por exemplo. A suspeita de que os democratas estavam muito próximos de Wall Street e a incapacidade da elite político-midiática democrata de aprender as lições com os votos dados a Sanders, fizeram o resto do serviço.

Hillary ganhou o voto popular por um fio de bigode (60,1 milhões de votos contra 59,8 milhões para Trump, de uma população adulta total de 240 milhões), mas a participação dos mais jovens e dos grupos de menor renda foi muito baixa para permitir a vitória nos principais Estados.

A tragédia é que o programa de Trump só reforçará a tendência para a desigualdade.

Ele pretende abolir o seguro de saúde concedido, com muito esforço, aos trabalhadores de baixa renda no mandato de Obama. Trump pretende, ainda, estabelecer no país um apressado dumping fiscal [nota do tradutor: dumping fiscal é proporcionar uma queda nos impostos das empresas supostamente para aumentar a atratividade para investimentos no país], com uma redução de 35% para 15% na taxa de imposto federal sobre os lucros das corporações, embora os Estados Unidos tenham, até o momento, resistido a esta tendência, já verificada na Europa.

Além disso, o papel crescente da etnicidade na política americana não é um bom presságio para o futuro se não forem encontrados novos compromissos. Nos Estados Unidos, 60% da maioria branca vota por um partido, enquanto mais de 70% das minorias votam pelo outro. A maioria branca está prestes a perder sua vantagem numérica (70% dos votos emitidos em 2016, contra 80% em 2000 e 50% em 2040).

A principal lição para a Europa e para o mundo é clara: a globalização deve ser fundamentalmente reorientada, com urgência.

Os principais desafios de nossos tempos são o aumento da desigualdade e do aquecimento global. Devemos, portanto, implementar tratados internacionais que nos permitam responder a esses desafios e promover um modelo de desenvolvimento justo e sustentável.

Os acordos de um novo tipo podem, se necessário, incluir medidas destinadas a facilitar esses intercâmbios. Mas a questão da liberalização do comércio não deve mais ser o foco principal. O comércio deve voltar a ser um meio ao serviço de fins mais elevados. Nunca deveria ter se tornado nada além disso.

Não deve haver mais assinaturas de acordos internacionais que reduzam direitos aduaneiros e outras barreiras comerciais sem incluir medidas quantificadas e obrigatórias para combater o dumping fiscal e climático nesses mesmos tratados. Por exemplo, poderiam existir taxas mínimas comuns de imposto sobre as empresas e objetivos para as emissões de carbono que possam ser verificadas e sancionadas. Já não é possível negociar tratados de comércio livre com nada em troca.

Deste ponto de vista, o acordo de livre comércio entre União Europeia e Canadá (CETA, na sigla em inglês) deve ser rejeitado. É um tratado que pertence a outra era. Este tratado estritamente comercial não contém absolutamente nenhuma medida restritiva em matéria fiscal ou climática. Todavia, contém uma referência considerável à “proteção dos investidores”. Isso permite que as multinacionais processem os estados sob tribunais de arbitragem privados, ignorando os tribunais públicos disponíveis para todos.

O controle jurídico proposto é claramente insuficiente, particularmente no que se refere à questão-chave da remuneração dos árbitros e conduzirá a todo o tipo de abusos. No mesmo momento em que o imperialismo jurídico americano está ganhando força e impondo suas regras e obrigações às nossas empresas, esse declínio na justiça pública é uma aberração. A prioridade, pelo contrário, deveria ser a construção de autoridades públicas fortes, com a criação de um procurador, incluindo um promotor público europeu, capaz de fazer cumprir as suas decisões.

Os Acordos de Paris tinham um objetivo puramente teórico de limitar o aquecimento global a 1,5 graus. Isto exigiria, por exemplo, que o petróleo encontrado nas areias betuminosas de Alberta, Canadá, fosse deixado no solo. Mas, o Canadá acaba de começar a mineração lá novamente. Então, que sentido há na assinatura deste acordo e, logo em seguida, apenas alguns meses depois, assinar um tratado comercial altamente restritivo sem uma única menção desta questão?

Um tratado equilibrado entre o Canadá e a Europa, destinado a promover uma parceria para um desenvolvimento justo e sustentável, deve começar especificando os objetivos de emissões de cada signatário e os compromissos práticos para alcançá-los.

Em matéria de dumping fiscal e taxas mínimas de tributação sobre os lucros das empresas, isso significaria, obviamente, uma mudança completa de paradigma para a Europa, construída como uma zona de livre comércio sem uma política fiscal comum.

Essa mudança é essencial. Que sentido há em concordar com uma política fiscal comum (que é a área em que a Europa conseguiu algum progresso neste momento) se cada país puder fixar uma taxa próxima de zero e atrair todas as sedes das principais empresas?

É hora de mudar o discurso político sobre a globalização: o comércio é uma coisa boa, mas o desenvolvimento justo e sustentável também exige serviços públicos, infraestrutura, saúde e sistemas educacionais que, por sua vez, exigem sistemas de tributação justos. Se falharmos em entregá-los à população, o Trumpismo prevalecerá.

Nota:

Artigo publicado em The Guardian, em 16/11/2016, com o título original We must rethink globalization, or Trumpism will prevail, por Thomas Piketty, em https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/nov/16/globalization-trump-inequality-thomas-piketty

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