Futebol e colonização simbólica

No último jogo da seleção inglesa, o tabloide The Sun usou o nome do seu "bom menino" como trocadilho para o "principal produto de exportação" da ex-colônia Colômbia
Hoje jogam duas seleções europeias, das ex-metrópoles França e Bélgica, contra duas seleções sulamericanas, das ex-colônias Uruguai e Brasil. Será que superamos o colonialismo mental? Por: Liana de Paula, Professora de Sociologia da Unifesp
Tenho acompanhado a mídia esportiva e, por estar ainda finalizando um pós-doc na Inglaterra, lendo/vendo bastante coisa publicada por jornalistas ingleses e franceses. E me chama a atenção a cuidadosa construção de heróis e anti-heróis da Copa e sua relação com uma reiteração de lugares simbólicos de colonizados e colonizadores.
Primeiramente, campeonato de futebol não é uma academia de boas maneiras em que só os moralmente louváveis ganham o presente do Papai Noel (aquele senhor moralista) de levarem a taça por serem ‘bons meninos’. Assim fosse, nem precisa de campeonato. Uruguai seria campeão desta Copa.
Mas, evidentemente, a mídia esportiva inglesa – e francesa – não está a tecer loas para a equipe uruguaia por sua moral. O negócio é valorizar o produto europeu.
E, assim, a mídia esportiva inglesa apresenta Harry Kane como um dos grandes heróis: ele é o moço branco, inglês e londrino (um feito de fato, considerando a quantidade de imigrantes em Londres), ele é pai de família (segundo filho nasceu ou nascendo), e ele é o capitão do time. Percebem a associação simbólica? A mídia esportiva inglesa joga o tempo todo com essa imagem do craque inglês bom moço.
Já Lukaku e Mbappé são figuras heroicas menos óbvias e bem mais complexas por serem negros, de famílias vindas de ex-colônias africanas e pela delicada construção de identidade que representam. Mas a mídia esportiva inglesa e francesa os simplifica brutalmente e tenta apresentá-los como a possibilidade de redenção das ex-metrópoles, como se o drama da colonização pudesse ser resolvido a partir do bom desempenho deles nos gramados. Lukaku sabe disso, e já declarou que, quando joga bem, é belga, quando joga mal, é belga de origem congolesa.
Enfim, não podemos ter uma vida maniqueísta sem anti-herói e o escolhido do momento é o brasileiro Neymar. Neymar é pintado, na mídia esportiva inglesa e francesa, como o símbolo do ‘selvagem’ que justifica a colonização. É o colonizado mau caráter que simula sua dor, que tenta enganar para levar vantagem.
E assim, em pleno século XXI, temos recolocado em um campeonato de futebol toda a força da ideologia colonial, que quer impor a primazia do europeu dentro e fora do campo. Se o Brasil ganhar, sua vitória será diminuida pela construção de uma imagem colonizadora do mito do mau-Neymar.

PS: Neymar não é santo, longe disso. Kane, Lukaku e Mbappé também não são. E nenhum deles está ali buscando a beatificação. Minha crítica volta-se para a mídia esportiva, e seus moralismos coloniais.

PPS: Por tudo isso, achei ainda mais vergonhosa a fala do Osorio, técnico do México, reiterando para a mídia esportiva internacional que Neymar é um mau exemplo para as crianças. Juan Carlos Osorio foi o colonizado útil/subserviente nessa fala.

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