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Política

Flores da Maré

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Flore da Maré. Foto: Arquivo pessoal Renata Souza

Eram 4 da tarde. A jornalista, chefe de gabinete e amiga na intimidade da vereadora Marielle Franco sequer havia almoçado. Com semblante aparentemente cansado, Renata Souza se apresenta com ares de ter tido sua vida revirada de “cabeça para baixo” desde o dia 14 de março, assassinato de Marielle.

Duas “crias” da Maré inseparáveis que se conhecem no histórico Pré Vestibular CEASM (Centro de Estudos e Açoes Solidárias da Maré), reduto de formação política de diversos militantes que hoje assumem um papel fundamental na luta pelo direito dos favelados nos movimentos sociais. Formadas pela PUC- RJ ( Renata em Jornalismo e Marielle em Ciências Sociais), as duas atuavam em diferentes frentes de movimento na favela e se reeencontram na composição da equipe do primeiro mandato de Marcelo Freixo, em 2007. A parceria profissional e política marcou a união de uma irmandade inseparável nas lutas sociais em defesa do povo favelado e na vida particular. Vestimentas iguais usadas, grupos de amigos em comum, mesmos locais freqüentados. Pistas que denunciam o alto grau de intimidade nas fotos das redes sociais. As iniciais das duas MA e RE formam o nome do lugar de pertencimento responsável pela formação de consciência política destas duas potências femininas negras.

No decorrer da entrevista, interrupções emocionadas e voz embargada ao se remeter as inúmeras memórias de sua irmã companheira. Após responder a entrevista, expressa confidências de acontecimentos sem explicação que ocorreram no seu cotidiano antes de Marielle falecer. Um deles, no dia 14 de fevereiro, um mês antes do assassinato, momento em que Renata quebra seu braço direito, levando uma dura queda no chão no mesmo horário da execução de Marielle (entre 21:30 e 21:40).Sentiu uma dor tão forte que sua sensação foi de perda de uma “parte do seu corpo”na ocasião e de estranhamento do processo do tombo.

Renata e Marielle são responsáveis por subverter estatísticas relativas à condição da maioria esmagadora do conjunto de 54 % da população negra, dentre 27% desta parcela formada por mulheres pretas. De 60 mil pessoas assassinadas, 71% eram negras segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Quando o comparativo relaciona-se com o local de moradia, o relatório da Anistia Internacional evidencia que os jovens moradores de favela são mais propenços a serem mortos pela polícia. De 1275 assassinatos registrados pela polícia militar, 79% dos assassinatos atingia pessoas negras.

Quando o recorte populacional é em cima de“ Gênero”, percebe-se que as mulheres negras vivem num mundo muito mais violento que as mulheres brancas. O número de brasileiras negras assassinadas aumentou 54% entre 2003 e 2013, apesar da Lei Maria da Pena(Lei 11.340/06) ter sido sancionada em 2006 e ter havido uma redução de 10% na violência contra as mulheres brancas.A escritora Vilma Piedade explica o conceito de “ dororidade” em sua literatura, ao definir um sentimento de dor somente proveniente a condição do “existir” histórico das mulheres pretas e compreensível na relação entre as mesmas.

Conceição Evaristo, grande referência para a juventude e movimento negro homenageou Marielle após sua morte em forma de poesia, afirmando sua descrença a “nadificação” de um corpo ao tombar no espaço feito poeira. Neste mesmo direcionamento, viralizou-se no movimento de mulheres em luta o provérbio mexicano: “Quiseram me enterrar mas não sabiam que éramos sementes” . Assim, reivindicamos mais sementes negras que “movimentem as estruturas do mundo”como afirma Angela Davis em seus estudos.

Entrevistaremos hoje uma dessas “sementes” de Marielle. Com a palavra, Renata Souza:

Como você conheceu Marielle Franco?

Renata Souza:A nossa relação de confiança entre as duas se estabeleceu quando eu reivindicava uma bolsa de estudos na PUC-RJ e tinha que me reportar à Marielle, que era secretária do Ceasm e responsável pelas bolsas, na época. Eu ficava com ela ao telefone desesperada, esperando que a pessoa me atendesse e a Marielle falando: ‘Não sai da sala que a pessoa vai te atender’”,. Nessa mesma época em 2003, atuamos juntas no movimento chamado “Posso me identificar”, com as mães do morro do Borel, devido à chacina ocorrida naquele ano. Em 2006, as duas fizeram a campanha contra o Caveirão, quando foi implantado nas favelas do Rio de Janeiro. No mesmo ano, realizaram a campanha de Marcelo Freixo e passaram a compor a equipe do primeiro mandato, em 2007, iniciando a militância política partidária.

O mandato, ou melhor, “a mandata” como vocês chamam, tinha como centralidade as pautas relativas aos direitos das favelas e das mulheres, e às interseções entre gênero e negritude. Que legado fica, a partir de agora, na política?

Renata Souza: A primeira coisa que fica de legado é que a luta de classes, a luta que hoje a favela reivindica, é uma luta que possa levar em consideração a luta de negros e negras, a luta das mulheres, a luta da juventude para continuar viva. A Marielle traz no mandato, em sua fala, que todas essas lutas estão interligadas. Ela traz um escopo de lutas para pensar o quanto as desigualdades sociais, que tanto os negros quanto as mulheres e os favelados sofrem, estão ligadas entre si diariamente. Então, não é excluir uma luta, hierarquizar quem sofre mais, quem sofre menos nessa sociedade. Mas é mostrar o quanto essas pessoas que vivem na favela, o quanto essas mulheres, negros e negras, têm os seus direitos violados dia a dia por morarem lá, por serem negros e negras, por serem mulheres.

Como vocês se sentiam com essa representatividade dentro da Câmara em que colocavam questões tão delicadas, como o genocídio do povo negro, o racismo, a luta pelo direito à favela, lá dentro?

RS: A Marielle destoava daqueles homens. A maioria homens brancos vindos de uma classe endinheirada. A Marielle trazia cor naquele espaço tão cinza, tão cheio de preconceito, tão conservador, onde o favelado não se sente à vontade, onde as mulheres não se sentem à vontade, onde as lésbicas não se sentem à vontade, um espaço onde as pessoas não são bem-vindas. A Marielle, o corpo dela naquele espaço, incomodava. As lutas da Marielle davam voz naquele espaço tão duro, um espaço de fazer política, que faz a diferença na vida das pessoas, as leis que vão influir diretamente na vida de quem mora na favela – que morre com a falta de saúde pública, que morre nos hospitais, que não tem acesso à educação de qualidade. São essas vidas que estão sendo colocadas ali, a toda prova. São esses homens que decidem essas vidas. São esses homens que não têm qualquer relação, porque não vem de favela. Eles não são mulheres. Eles não sabem o que de fato a população que tá na favela vivencia. Eles não se colocam no lugar dessas pessoas, que moram na favela. A Marielle se colocava o tempo inteiro no lugar dessas pessoas, que vivem todo esse tipo de preconceito, que vivem todo esse tipo de situação quando tem, por exemplo, uma operação policial dentro da favela. Ela sabia do que estava falando. Diferente desses homens, que não sabem o que significa uma operação policial que começa 6h e não tem horário para terminar. Em que as crianças ficam na linha de tiro e não têm como ir para escola. Os pais dessas crianças não sabem se conseguem chegar ao trabalho ou se vão voltar do trabalho. Realidade que a Marielle conhecia tão bem e que esses homens engravatados, endinheirados, não conseguem conhecer, realidade sobre a qual não conseguem se sensibilizar e não conseguem legislar. Eles legislam sob uma ótica preconceituosa de que essas pessoas não são pessoas regidas por direitos. Então, as leis acabam sendo de uma forma para agregar direitos àqueles que já detêm privilégios nessa sociedade.

Após o cruel assassinato de Marielle, as mulheres em luta incorporaram o termo “sementes”. De que forma você consegue perceber essas sementes, agora, no cenário da política?

RS: A Marielle sempre disse isso para outras mulheres. O trabalho legislativo, o trabalho dela, não se esgotava dentro da Casa. Talvez, por isso, Marielle trouxe tanto incômodo. O trabalho legislativo era basicamente três dias da semana, e a Marielle não parava. Ela começava de manhã muito cedo e terminava à noite muito tarde. Ela fazia debates por toda a cidade, fora da cidade e por todo o país. Marielle era pra estar em Harvard, Estados Unidos, duas semanas depois que ela foi assassinada. Ela levava todas as pautas, todas as lutas que a “mandata” costurava pelo mundo. Essa sempre foi a ideia da Marielle. A ideia de semente é disseminar essas lutas. E não só isso, mas disseminar mulheres que tenham essas lutas em seus corações, que pudessem fazer e se sentirem acolhidas e fortalecidas. Há muitas mulheres que já fazem essas lutas. Só que muitas vezes elas se encontram muito solitárias. Não encontram acolhimento para fazerem suas lutas, que já fazem no seu dia a dia. Hoje, com essa execução sumária da Marielle, as pessoas se sentem sementes prestes a germinar. Então, esse é o recado que a Marielle traz. Essas mulheres se sentem mulheres prestes a germinarem. E nessa germinação elas sabiam que já eram sementes. Elas já estavam ali, fazendo igual ao que Marielle faz, porque a gente sabe que um símbolo como esse não morre com quatro balas na cabeça. Ele sobrevive dentro de cada uma de nós. Então todos nós somos sementes de uma Marielle que não foi silenciada. Todos nós, enquanto sementes, vamos fazer ecoar a voz de Marielles.

Você acha que esse fato amedrontou as mulheres negras e as mulheres das favelas?

Existe uma afirmação corrente do Movimento Negro que diz: “Esse espaço não é para nós. Nós não temos que disputar esse espaço.” Outros, em contraposição dizem: “Mais do que nunca é um espaço que temos que disputar”. Como você analisa essas duas narrativas?

RS: Sem dúvida. O assassinato, a execução sumária da Marielle, traz uma ameaça para a democracia brasileira. Enquanto nós, lutadores e lutadoras pelos direitos humanos, vivemos nessa democracia, todos nós vivemos ameaçados e ameaçadas. Então, estar pleiteando ou pensar em pleitear qualquer espaço na institucionalidade, no espaço legislativo, nos coloca num desafio muito grande, nos amedronta. Porque ninguém quer que sua luta seja silenciada da forma que tentaram silenciar a luta da Marielle. Ninguém quer que quatro balas interrompam sua vida de forma tão violenta, tão absurda como foi com a Marielle. Mas as pessoas entendem que quanto mais Marielles terem, mais estaremos fortalecidas diante dessa atrocidade que aconteceu. Eu acho que é uma ameaça geral, porque não é uma pessoa que foi ameaçada, foi uma democracia brasileira. Diante de uma democracia ameaçada, todas nós nos sentimos ameaçadas. Mas, ao mesmo tempo, a partir de muitas mulheres com quem temos conversado, tem surgido um sentimento de fazer com que essa sociedade perceba que as mudanças são possíveis. E que lutar pelos direitos humanos, lutar por uma sociedade mais justa, não seja visto e não seja silenciado de uma forma tão cruel e desumana.

Como ficarão os encaminhamentos dos projetos que Marielle defendia na Câmara?

RS: Todos os projetos que nós fizemos obedeciam, basicamente, públicos que pudessem atender mulheres pobres, negras, faveladas, jovens favelados. Então, foram projetos para preservarem vidas dessa população. A gente fez projetos de lei direcionados a esse público e para as mulheres lésbicas também. Não vai dar para dizer todos os projetos, mas eu vou focar em alguns que para a gente foram fundamentais. Um deles, que foi aprovado, foi a Casa de Partos, que foi um projeto superimportante em que a gente definiu ter essas para mulheres terem partos humanizados. Porque uma das coisas que a gente recebeu muito em nosso gabinete foram lugares em que as mulheres não tinham seu parto totalmente respeitado, onde as mulheres sofriam muito. Então, conseguimos aprovar esse projeto. Outro, que ainda não foi para discussão, é o Espaço Coruja, que não é uma creche, mas que na verdade é um espaço em que a criança pudesse ficar à noite. A gente sabe que, muitas vezes, o acolhimento à criança é responsabilidade exclusiva da mãe. Percebendo isso, vimos que esse Espaço Coruja seria direcionado a essa mãe para deixar a criança num espaço que pudesse acolher com um atendimento pedagógico, mas que não substituísse a creche e com um horário que obedecesse à lei. Porque uma criança não pode ficar mais de um determinado tempo longe do convívio com os pais, com a família.

Como você se sente neste exato momento e o que você gostaria de dizer aos eleitores de Marielle e para os milhões de seguidores dela no mundo?

RS: Eu me sinto orgulhosa como uma amiga. Uma pessoa que acompanhou a trajetória e pode trabalhar junto, construir junto tudo o que a Marielle fez, tudo o que construiu no mandato. Isso é um motivo de orgulho pra mim. Faria tudo de novo. Me sinto muito orgulhosa, mesmo sabendo que isso tudo não vai trazer ela de volta. Mas isso tudo que a gente construiu eleva tudo o que a Marielle fez e como se notabilizou no espaço mundial. Isso me traz alegria. A gente não vai trazer a Marielle de volta. Mas ameniza a dor. A memória da Marielle está preservada e a gente vai continuar fazendo com que a voz dela ecoe cada vez mais.

Eu acho que as pessoas se identificam com a Marielle porque é uma mulher real. Ela está no rosto de cada uma de nós. Viver essa identificação mundial com essas pautas que são tão caras pra gente, principalmente pra gente que é favelado, é ver o quanto nosso projeto político tava certo. O recado que dou para essas pessoas é que continuem acreditando, continuem resistindo, continuem lutando. Porque Marielle está em cada uma de nós.

Mariana Reis / Especial para os Jornalistas Livres

Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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