Fallet-Fogueteiro: “Deram facadas no coração de um, no pulmão de outro. Foi uma chacina a facadas”

Nesta terça-feira, 12 de fevereiro, uma van sufocante, sem ar e sem janela, levava o “pessoal dos direitos humanos” do centro do Rio de Janeiro até o Morro do Fallet, na zona norte. O objetivo era participar de um encontro, promovido pela Defensoria Pública, com os moradores da comunidade e familiares de 15 jovens mortos pela polícia quatro dias antes, na mais violenta operação da década. O entrosamento entre todos, tristes e preocupados com o que ouviriam logo mais, foi cortado pelo diálogo de uma mulher com um jovem, representante da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos.
– Quem é o secretário de Direitos Humanos do Witzel?
– É A secretáriA. Fabiana Bentes.
(Cara de: quem é essa pessoa???)
– Ela vem do Esporte. Não é ligada aos Direitos Humanos.
A van seguiu. Quando chegou ao posto de gasolina, no pé da favela, os defensores e assessores parlamentares (de mandatos de esquerda) desceram. Foram imediatamente filmados por cinegrafistas da Globo e do SBT. Alguns não gostaram. A situação era tensa. Mas os cinegrafistas não estavam nem aí. Alguns jornalistas freelancers, que trabalham na defesa dos direitos humanos, comentaram a presença da repórter da Globo. Foi ela quem, ano passado, divulgou o nome e a foto de um jovem de Acari, suspeito pela polícia de ser assassino de um policial. Ocorre que este mesmo jovem, na hora do telejornal, já havia se apresentado à delegacia e provado sua inocência. A repórter estava com medo. Disse para a colega: “eles já estão nos observando lá de cima, não conheço nada aqui, não sei avaliar o risco”. O cinegrafista da Globo completou: “poderiam ter nos trazido em um carro descaracterizado, não esse, com esse logo enorme da Globo”.
O “pessoal dos direitos humanos” subiu o morro. Os jornalistas, no primeiro momento, evitaram. Ao chegarmos na Associação de Moradores do Fallet, uma liderança local pedia a todos os visitantes que se apresentassem. Estavam lá defensores públicos do Estado, da União, assessores parlamentares, jornalistas e, ainda, representantes da Secretaria de Direitos Humanos cuja secretária “não é ligada aos diretos humanos”. Todos eram aplaudidos pelos moradores, que lotavam o pequeno imóvel.
Os familiares das vítimas foram chamados para uma sala à parte. Ali os defensores coletaram os depoimentos para fortalecer a pressão sobre o Ministério Público, a Polícia Militar e a Polícia Civil, que, teoricamente, investigam a trágica ação. Os demais ficaram na sala maior, explicando o que aconteceu para o Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Rio, Pedro Strozenberg. Os relatos, quase todos de mulheres, são aterrorizantes.
“A operação começou logo de manhã!”, gritou a primeira.
“O Choque e o BOPE vieram para matar”. As falas, em gritos, iam se atropelando.
“Os policiais me chamaram de piranha e vagabunda!”, reclamou outra, já quase chorando.
“Foi uma carnificina! Uma chacina! Eles mataram a facadas os meninos, todos estavam rendidos”. Uma chacina a facadas? A afirmação estremeceu os visitantes.
“Os meninos estavam fugindo dos policiais, que entraram no morro por todos os lados, invadindo as casas, xingando as pessoas. Esse grupo de sete meninos correu para dentro de uma casa qualquer. Os policiais quebraram a porta e entraram na casa”, explicou uma voz mais tranquila.
“Os meninos queriam se entregar. Eles entraram na casa e se entregaram”, disse uma senhora, que emendou: “aí, em todos os grupos de zap chegou a mensagem de que os policiais estavam com meninos dentro de uma casa, fazendo maldade. Foi por isso que toda a comunidade correu em direção a essa casa”.

“Às 9 horas, eu recebi uma mensagem mesmo, que dizia que os garotos estavam sendo torturados nesta casa. Eu corri pra lá”, confirmou uma menina de não mais de 15 anos, que conhecia vários deles.
“Quando os moradores chegaram perto da casa, os policiais atiraram para cima dos moradores. Teve gás de pimenta. Bomba! Quebraram as motos dos mototaxistas! Eles ameaçaram quem filmava”, disse uma jovem, amiga dos mortos.
“A polícia disse que houve tiroteio. É mentira! Temos que desmontar a versão através dos detalhes!”, gritou uma mulher, tentando organizar as falas.

“Como eles dizem que houve tiroteio se meus sobrinhos XXXX e XXXX foram mortos com facadas na barriga? Tá aqui a certidão de óbito. Houve espancamento. Quebraram o pescoço de um dos meninos! Tá aqui o laudo do IML. Há um consenso entre nós de que houve tortura. Teve facada no coração, no pulmão!”, disse o tio, ainda jovem, de dois dos mortos.

 

“A polícia não acuou apenas os jovens na casa. Ele acuou toda a comunidade!”, gritou uma senhora, de 40 anos na sociedade.

“Os policiais pegaram os corpos rapidamente e botaram em cima das caminhonetes. Eles sentaram em cima dos corpos. Nem mesmo depois de mortos, os corpos foram respeitados. Os corpos foram levados para o hospital com policiais sentados em cima desses corpos”, esbravejou uma jovem, já chorando.

“Isso não é novidade, senhor. Eles vem com essas chaves mistas, que abrem qualquer porta. Foi assim que entraram em outras várias casas da comunidade naquela manhã. Em duas delas, mataram mais dois irmãos em cada! Mataram o filho da XXXX e da XXXX”, deixou escapar uma das moradoras.

“Cada um fala de seu morto!”, tentou organizar um jovem mototaxista.

A essa altura, os jornalistas da grande imprensa já haviam chegado à associação. Como raramente estão preocupados com a segurança dos moradores de favela, já haviam ligado suas câmeras. A situação incomodou os moradores.

“Tira essa câmara da minha cara! Depois a polícia vem aqui e me mata. O que vai adiantar minha cara no jornal? Ô moço, por favor, cuida com isso aí!”, reclamou, com toda a razão, uma mulher de cerca de 40 anos.

“Então se cada um fala do seu morto, eu vou falar do Jefferson. Eu vi o Jeferson caminhar baleado pela comunidade logo cedo. Ele pedia para chamarem seu pai, o XXXX. Mataram o Jeferson, depois mataram dois na casa da XXXX. Tiraram um de casa. A gente sabe o nome de cada um dos mortos!”, disse uma moradora, sugerindo que os nomes, quase todos Silvas, fossem enfileirados na conversa.

“Roger Silva, David Silva, Felipe Antunes, Enzo Carvalho, Maikon Silva, Vitor Hugo Silva, Luan de Oliveira, Carlos Alberto Castilho, Jeferson de Oliveira, Gabriel da Silva, Robson da Silva e André Leonardo Dias”, foi a chamada perversa dos jovens, muitos ainda menores de idade.

“Foi isso, senhor. Sete foram mortos na casa. Depois, duas duplas de irmãos em duas casas diferentes. Teve ainda o Jefferson. Foram 12 mortos no Fallet. E ainda mais três, fomos saber depois, que foram mortos lá no Morro dos Prazeres (morro vizinho, onde havia uma operação do BOPE”, explicou um homem.

“Um desses mortos foi encontrado na mata dos Prazeres. Ele era aqui do Fallet, mas a polícia não queria deixar a gente entrar na mata. Quando encontraram o corpo dele, ele tava num buraco, que havia sido coberto por folhas de árvores. O Matheus tinha dois tiros na boca”, lembrou, com horror, uma senhora.

Foi então que o Corregedor Pedro intercedeu, para lembrar o contexto no qual a tragédia estava inserida: “Pessoal, vocês sabem que tem muita gente lá fora achando que tá certo fazer o que foi feito. Tem muita gente que acha que a operação foi bem sucedida. A gente tá aqui para ajudar a dizer que não, que esta operação não foi bem sucedida”.

“Eu briguei toda a semana no Face por causa disso! Tem muito gente dizendo: bandido bom é bandido morto. Não gente! Tem a lei para quê, então?”, disse a moça mais jovem a se pronunciar.

“Por que só foram no Fallet?”, disse uma moradora, deixando escapar um consenso entre os moradores: de que a operação da polícia ocorreu em parceria com a facção rival a do Fallet. Um jovem se levantou e mostrou um vídeo, da Rede Record, que mostrava a PM usando uma toalha para esconder das câmaras quem entrava dentro do caveirão naquela manhã.

“Aliás, se tiver um jornalista da Record aqui, não vou bater palma não. A Record tá sempre aplaudindo a polícia, que oprime o morador, não pode isso!”, reclamou uma senhora bem velhinha, provavelmente, ex-telespectador de Wagner Montes, jornalista sensacionalista que morreu recentemente.

“A gente tá aqui para evitar que isso aconteça de novo. Porque hoje é aqui, amanhã…”. Ela foi cortada: “É aqui de novo! A polícia tem alguma coisa com o Fallet”, disse uma mulher, que saiu da sala imediatamente.”Eles poderiam ser presos e mudar de vida”, voltou a dizer um tio de vítimas. “Então a pena de morte existe no Brasil! Por que existe só para pobre? Tem muito bandido do colarinho branco que tá preso por aí, mas vai sair e pode mudar de vida. Nossos sobrinhos, nossos vizinhos também podiam”.

“Eu quero contar outro caso, que eu vi: nos Prazeres, neste mesmo dia, a polícia pegou um gaguinho. Ele ficou todo assustado, não sabia o que falar. Ele tem problema. A polícia pegou esse cara e deu uma martelada na mão dele. Eles tavam tão drogados, tão drogados…”, lamentou uma senhora bem negra, que disse ainda mais: “Eles matam cachorros quando entram aqui também. Eles vêm aqui na comunidade condenar as pessoas”.

“Ninguém aguenta mais! Eu quero dizer uma última coisa: aprendam a votar, Marcelo Freixo me representa!”, gritou uma jovem, que também se levantou e saiu da sala.

Uma senhora já bem idosa levantou uma ideia: “Tinha que ter um repórter morando aqui. Ia ver que quem chega atirando sempre sempre é a polícia. Tem que acabar com isso. Tem que ser dentro da lei! Depois que esse governador (Wilson Witzel) entrou, muita gente vai morrer ainda!

“Naquele dia das mortes, se aqueles dois repórteres ali não tivessem chegado na hora certa, muito mais gente iria morrer. Foi um anjo quem mandou vocês”, disse uma mulher, fazendo a mais bonita homenagem que eu já vi um jornalista receber.

“A gente até sabe quem são os policiais que vêm aqui com a má intenção. É o Cara de Espinha e o Salchicha!”, denunciou uma moradora.

O representante da Defensoria da União pediu a palavra. Ele explicou o projeto do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que quer ampliar o conceito de legítima defesa: “Eles fazem tudo isso que vocês falaram sem ter permissão. Se o projeto passar, eles terão permissão”.

“Agora vão ter?”, perguntou, apavorada, uma moradora.

“Sim!!! Então vamos nos armar!”, gritou um homem, que foi acompanhada por outra mulher, a mais agitada de todas: “Alguém me dá uma pistola e me ensina a atirar! É guerra, então?”

O Corregedor da Defensoria tomou a palavra novamente. Disse que quem quiser formalizar as denúncias poderia procurar os defensores. Foi logo interrompido: “A gente até quer, mas tem medo!”

A reunião terminou, e a imprensa foi entrevistar individualmente os familiares dos mortos. A mãe de dois deles foi a que mais se dedicou a falar, para a Globo e SBT: “Tiraram o direito deles de viver, tiraram meu direito de ser mãe. Um escolha não define a vida de ninguém. Agora só me resta o vazio. Eu nem tive coragem de ver os vídeos”. A repórter da Globo foi a única, naquele dia inteiro, a perguntar se os jovens eram traficantes. Assustada com a pergunta, a mãe respondeu: “Um filho meu viu o outro ser morto. Eles andavam com os amigos do tráfico. Tinham cometidos erros”.

Ao terminar a entrevista, ela mostrou as certidões de óbito de seus filhos, de 16 e 18 anos. Em uma delas, o resumo de um dia de terror: LESÃO POLICERVICAL. FERIMENTO TRANSFIXIANTE DO TÓRAX. AÇÃO PÉRFURO CONTUNDENTE.

Arrasados, o “pessoal dos direitos humanos” desceu o morro a pé. No caminho, um deles perguntou aos representantes do governo do Estado: “e aí, o governador vai saber disso que foi falado hoje?”. Com a cara de chateação, um dos representantes respondeu: “saber ele já sabe”.

Ao lado do coronel Rogério Figueiredo, secretário da Polícia Militar, o governador Witzel publicou um vídeo na internet nesta quinta-feira no qual parabeniza o Choque, o BOPE, toda a PM: “O que aconteceu no Morro do Fallet-Fogueteiro foi uma ação legítima da Polícia Militar. A polícia agiu para proteger o cidadão de bem.”

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