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Feminismo

Eu festejo a condenação de Danilo Gentili. Por Lola Aronovich

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POR LOLA ARONOVICH, blogueira feminista

O assunto nas redes sociais ontem era a condenação do reaça misógino, racista e homofóbico Danilo Gentili a seis meses e 28 dias de prisão em regime semiaberto por injúria à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).

Em 2016 o reaça disfarçado de humorista publicou vários tuítes contra a deputada, como faz cotidianamente contra mulheres em geral (euzinha, a deputada Sâmia Bonfim, a youtuber Alexandra Gurgel, entre inúmeras outras). A intenção é sempre a de divulgar sua ideologia de direita contra ativistas e de atiçar seus milhões de seguidores a atazanarem a vida de mulheres que trabalham e não têm medo. Maria do Rosário então pediu, via notificação extrajudicial, que Gentili apagasse os tuítes com insultos chamando-a de falsa, cínica e nojenta.

Qual foi a reação de Gentili? Um vídeo que quase todo mundo viu: alegando que paga o salário da deputada e que pode dizer o que quiser, ele rasgou a notificação, a esfregou nas suas partes íntimas, por baixo da calça, e concluiu, num show de misoginia: “Maria do Rosário, chegando minha cartinha, abre ela, tira o conteúdo, sinta aquele cheirinho do meu saco e abra a bunda e enfie bem no meio dela tudo isso aí que eu estou mandando agora pra você”.

Nada de muito chocante pra quem já fez “piada” discordando de Jair Bolsonaro e dizendo que a deputada merece sim ser estuprada.

A juíza Maria Isabel do Prado, que decidiu pela condenação criminal de Gentili, justificou que a intenção do comediante não era humorística, e sim de insultar e humilhar. Ao receber a notificação, segundo ela, ele “poderia simplesmente ter discordado ou ter buscado a orientação jurídica de advogados para acionar pelo que entendesse ser seu direito”, mas optou por gravar um vídeo “altamente reprovável e ofensivo”.

Alguma dúvida que esta juíza já deve estar recebendo ameaças de morte e estupro desde anteontem? A lógica é a mesma. Não tem a ver com humor. Tem a ver com misoginia, com poder e humilhação, com subjugar as mulheres.

É óbvio ululante que Gentili não vai passar nem um minuto na cadeia. A pena será substituída por prestação de serviços comunitários e multa. Mas, se mantida a condenação, ele ao menos não será mais réu primário. Já é alguma coisa pra quem goza da impunidade faz tanto tempo. Por outro lado, a condenação está lhe dando muita publicidade. As buscas por seu nome no Google aumentaram 4.000% nas últimas 24 horas. E ele, assim como o presidente dele, é adepto do “falem mal mas falem de mim”.

 

Gentili tem um longo histórico de atacar minorias. Seu humor não é o de criticar poderosos, muito menos o sistema, e sim de xingar ativistas e pessoas comuns. Em 2012, por exemplo, Thiago Ribeiro, um jovem redator negro, fez um vídeo em que juntou vários momentos racistas do humorista. Gentili lhe mandou um tuíte: “Sério, vamos esquecer isso… Quantas bananas vc quer pra deixar essa história pra lá?”.

Imagino que agora em 2019 isso seria interpretado como racismo, mas, cinco anos atrás, a 10a Vara Criminal da Justiça de SP absolveu o humorista porque não houve “intenção de ofender a vítima”.

Ah sim, tem mais um detalhe: Gentili, este defensor incansável da liberdade de expressão, conseguiu tirar o vídeo de Thiago do ar.

 

Em 2013, Gentili fez piadas no seu programa de TV contra a maior doadora de leite do Brasil, Michele Maximino. Michele era uma mulher comum, casada, mãe de dois filhos, conservadora até, habitante de uma cidadezinha em Pernambuco, mas ela todos os dias dirigia 80 km para levar seu leite materno a Caruaru. Sua doação diária era responsável por 90% do banco de leite do hospital de lá. Ela não ganhava nada com isso, fora a certeza que fazia a coisa certa de ajudar outros bebês.

Gentili achou divertido mostrar fotos de Michele em seu programa, falar das “tetas” dela, comparar o leite dela ao “leite” de um ator pornô, fazer montagem com uma das fotos, transformando-a em “Leite da Moça”.

Michele passou a ser hostilizada na sua cidade com menos de 25 mil habitantes, apelidada de “vaca do Gentili”. Ela e a família tiveram que se mudar por virarem motivo de chacota. Ela processou Gentili, ganhou, ele recorreu o quanto pode, e agora em janeiro saiu a sentença definitiva: Gentili terá que indenizar Michele em 200 mil reais. O que deve representar, sei lá, metade do salário do humorista e apresentador em um mês?

 

Durante o processo da votação do impeachment de Dilma, em 2016, Gentili, para marcar seu posicionamento, achou engraçado questionar se a senadora negra e nordestina Regina Sousa (PT-PI) seria de fato senadora. “Senadora? Achei que fosse a tia do café”, deixando claro seu racismo nada enrustido.

 

A única ocasião em que Gentili pediu perdão por uma piada foi em 2011, quando escreveu um tuíte sobre os moradores de Higienópolis (onde há muitos judeus) serem contra o metrô no bairro (“Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”). A Band, sua emissora na época, sentiu a pressão dos patrocinadores e mandou ele se retratar.

No mesmo dia do tuíte odioso, Gentili obedeceu, e disse em seu Twitter: “Minha intenção como comediante nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público q não fosse alegria. Peço perdão se falhei nesse meu objetivo com a piada q fiz essa tarde. Me coloco a disposição da comunidade Judaica para me redimir”.

Nada de oferecer bananas a um negro que protesta contra racismo, ou de esfregar no saco a notificação de uma deputada mulher. Quando o alvo da piada é um grupo com poder econômico um pouco maior, a defesa da liberdade de expressão irrestrita some rapidinho.

E por falar em liberdade de expressão, dói ver a maioria dos humoristas — quase todos homens brancos e héteros — defendendo Gentili. Eles raramente defendem os alvos das “piadas” do humorista, mas creem que o humor pode tudo, e que é censura condená-lo, ainda mais com uma sentença de prisão (imagino que eles saibam que Gentili não será preso, né?).

Também vi gente se manifestando contra o “punitivismo” de prender alguém, ainda mais alguém tão inofensivo. Bem, vejamos: um carinha que nunca matou ninguém — não estou falando de Gentili –, mas que faz fóruns anônimos festejando massacres e recrutando rapazes para cometê-los é inofensivo?

Ou é só liberdade de expressão? Ao ser acusado, ele não pode alegar que foi tudo uma piada? E se eu ofender alguém, chamando-o de estuprador, e, ao ser processada, fizer um vídeo rasgando e esfregando o papel nas minhas partes íntimas? Tudo bem? No processo, eu posso alegar que só estava brincando, que não foi minha intenção insultar?

Acho que quem reclama do “punitivismo” na condenação de Gentili sabe que o sistema que prende e tortura uma mulher pobre por furtar uma lata de leite condensado num supermercado é o mesmo que permite que não seja preso um senador gravado pedindo dinheiro pra empresário corrupto e dizendo que mataria o primo se o delatasse. É também o mesmo sistema que permite que um humorista que faz carreira perseguindo mulheres e negros tenha no máximo que pagar uma parcelinha de seu salário se porventura for condenado.

Ironicamente, o público de Gentili é o mesmo que quer que eu vá presa por defender a legalização do aborto (acho que é meio a meio: metade me quer presa, metade me quer fuzilada). É o mesmo que celebra quando sou processada por misóginos que me ameaçam de morte e estupro e fazem de tudo pra destruir minha vida (Marcelo, ou “Psy”, que passou cinco anos ininterruptos me ameaçando e atacando, e que finalmente foi condenado a 41 anos e está preso desde maio, já me processou duas vezes). Aliás, parte do público de Gentili é aquele composto por grupos neonazistas e misóginos que planejam e executam massacres em escolas e que veem o humorista como um dos seus.

Por que será que os piores cidadãos de bem do Brasil (entre eles o  presidente fascista, que não deu um pio sobre a execução de um pai de família negro pelo exército, mas escreveu um tuíte se solidarizando com Gentili) identificam o stand-up bully como sendo da mesma trupe? Bom, em dezembro de 2015, quando o Profissão Repórter dedicou um programa à luta feminista contra os misóginos, chegando ao ponto de tentar entrevistar Marcelo, Gentili se posicionou. Não contra gangues que ameaçam mulheres e negros, mas contra mim — como se algum dos onze boletins de ocorrência que fiz foi por alguém ter me chamado de gorda.

Gentili tem um ódio todo especial por mulheres gordas (pode chamar de gordofobia, se preferir).

Se você já foi gorda alguma vez no seu passado, como é o caso da candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila, você será “zoada” pelo eterno “pior aluno da escola” (Gentili escreveu um livro glorificando o bullying. O livro virou filme com apoio da Lei Rouanet. Nossos impostos pagam campanha pró-bullying). Simples assim.

A deputada federal Maria do Rosário, provavelmente a mulher mais atacada do Brasil (fazem ataques orquestrados até à filha menor de idade dela!) há anos, é fina demais para comemorar a condenação de Gentili.

Mas eu festejo sim. É uma vitória coletiva de todas nós que somos frequentemente atacadas pelo humorista e seu séquito. E vale perguntar se Gentili mantém o que disse aos judeus ofendidos — “minha intenção como comediante nunca foi trazer nenhum outro sentimento ao público que não fosse alegria”. Qual é a alegria dessa gente em hostilizar mulheres, principalmente aquelas que não aceitam se calar?

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17 Comments

17 Comments

  1. Bárbara

    13/04/19 at 9:09

    Sem palavras Lola! Eu TB festejo MT essaessa conden 👏👏👏👏👏👏👏👏

  2. Pena que essa condenação nunca seja cumprida, que tipo de humor é esse? Um cara sem graça, que se aproveita de situações para poder se promover ,insultando pessoas e depois dizendo “foi uma piada” ,vivemos em uma idiocracia, exaltando idolos de barro que se moldam de acordo com a situação

  3. JOSÉ FERREIRA DA SILVA

    13/04/19 at 10:05

    Faz muitíssimo bem ao intelecto e acrescenta conhecimento, quando me deparo com matéria bem escrita, rica em conteúdo, como a que escreveu Lola Aronovich. Ainda que em tom festivo pelo desfecho que teve a condenação do rapaz, useiro e vezeiro em fazer chacotas ofensivas, principalmente, às minorías nas quais me incluo. A autora da matéria descreve com profundidade a trajetória “ofensiva” , do que se intitula humorista, até então desconhecida por mim, e que após a narrativa escrita muito bem articulada por Lola, dá ideia do quanto o rapaz ofendeu aos de cor negra extensivo a mim. Por seu escrito esclarecedor, repito, sou totalmente solidário ao festejo comemorativo, vez que, conforme a matéria, em algum momento, foram, também, as ofensas dirigidas à sua condição de mulher. Ainda, com referência à condenação, estimulado pela grei de pessoas simpatizantes ou corporativas, ao que parece o condenado faz “deboche” , e como bem diz Lola, essa condenação, ao menos, servirá de freio as investidas do “humorista”. Será ?

  4. Ronaldo de Faria Castro

    13/04/19 at 10:40

    Humorista sem graça!
    Fascistóide;
    Deveria ter sido encarcerado!
    Crápula racista!

  5. Marcos Antonio Duarte

    13/04/19 at 10:55

    Texto excelente
    , Muito bem escrito e esclarecedor.

  6. Daniel Mendes

    13/04/19 at 11:00

    Bom dia Lola, eu odeio esse site, mas leio porque quero manter o equilíbrio, odeio a maioria das reportagens que vocês fazem, mas leio pra manter minha mente equilibrada,, gosto de parte do humor do Danilo, parte, acho a outra parte muito ofensiva, mas quero dizer que essa sua matéria de hoje foi espetacular!! Concordei com cada palavra sua, essa é uma das poucas matérias desse site que eu concordo na íntegra, parabéns pela matéria! Em relação ao Gentili, eu mesmo sendo de extrema direita, deixo minha posição. Todos são iguais negros, homossexuais heterossexuais, bissexuais, intelectuais, normais vejo todos de forma igual, meus melhores amigos são angolanos pra você ter uma ideia! Então, Nem todos da extrema direita são racistas, fascistas, homofóbicos como vocês dizem!

  7. José Wilton

    13/04/19 at 12:12

    Infelizmente o humor inteligente e de qualidade se perdeu, a muito sarcasmo e preconceito camuflado em “forma de humor”, nosso povo precisa urgentemente acordo pra tudo que está acontecendo nesse momento de total escuridão ao patrimônio sócio-cultural do Brasil. Devemos tomar de volta nossas referências: Chico Anísio, jo, tv pirata, mazaropi, os trapalhões… Não podemos deixar que pessoas que não possuem pelo menos o velho e primordial Bom senso de suas atribuições sejam referência para essas geração já tão afogada nesse maremoto de desinformação.

  8. Atila tadeu santos e moura

    13/04/19 at 13:17

    Não sei… diante dos fatos, me parece que a condenação dele foi muito leve. Particularmente, não gosto do programa dele, nao tem gabarito, nem história, foi produzido . Além do mais esse formato de programa é muito chato. Gentili não é jô soares, Clodovil ou hebe Camargo . Gentili é lixo sem formação ou knowhow. Sem carisma sem história … só um filhinho fe papai quem ganhou um programa de TV para brincar!

  9. Inácio da Silva

    13/04/19 at 13:19

    Na sanha de reclamar desse comediante a única coisa que vão, efetivamente, conseguir é dar publicidade às besteiras que ele fala, aumentar a audiência dos programas dele e, por conseguinte, seu cachê na televisão…como dizia o finado Carlos Imperial, que vivia ofendendo os outros: “Falem mal, mas falem de mim”…ignorá-lo é o que mais prejuízo traria ao bolso dele…ai sim iria doer…essa condenação não fará nem cosquinhas nele…não irá preso e poderá ser reformada nas instâncias superiores…

  10. Marcello Antunes da Silva

    13/04/19 at 14:28

    Parabéns Lola. Ontem mesmo escrevi mensagem para a ombudsman da Folha pedindo que se faça uma comparação entre a liberdade de expressão desse cidadão, o Golden Shower e a exposição de um racista que xingou o STF. Questiono que, pessoalmente, posso chamar uma ministro do STF e dizer que eh piada, afinal de contas eu pago o salário dela? Tempos obscuros este

  11. Mario

    13/04/19 at 14:57

    Mas ñ será mais primário

  12. Raul

    13/04/19 at 15:05

    Só aguardando pra ver quando deixaremos de nós importar com as besteiras que outros falam, e dar importância ao racismo real como um pai de família ter seu veiculo alvejado 80 vezes por engano, infelizmente perdi meu tempo lendo essa “notícia”.

  13. Cláudia Mendonça Magalhães Gomes Garcia

    13/04/19 at 15:57

    Há muito ele não faz comédia. Comete crimes. Um moleque criminoso. Como moleques são as pessoas que o defendem.

  14. Rosemblatt Ferreira Gomes Lima

    13/04/19 at 16:07

    Parabéns a Jornalista pelo posicionamento lúcido e inteligente, já fui até fã desse imbecil, mas hoje até me envergonho disso, gente desse tipo tem que ser processado e condenado sim, essa foi a primeira condenação, mas muitas outras virão ainda, ele que se cuide, pois na próxima ele dever ser preso.

  15. JOAO ALEX MARSIGLIA

    13/04/19 at 19:10

    O Brasil tem tanta coisa para satirizar, pra que usar de baixarias das mais baixas para com minorias? Eu até gostava do Gentili nos tempos da Band mas agora que virou celebridade ele acha que pode tudo inclusive ter atitudes nojentas como a que teve contra a Maria do Rosário. Perdeu as estribeiras bem a razão.

  16. Inácio da Silva

    14/04/19 at 20:52

    É interessante ver que muitos dos que gritam que ninguém pode ser considerado culpado antes de esgotados os recursos em cortes superiores (caso do Lula) querem aqui considerar o comediante culpado após uma sentença em primeira instância…que, inclusive deverá ser reformada nas cortes superiores e ele não perderá a condição de réu primário…

  17. Joyce Jota

    30/04/19 at 14:38

    Odeio esse ser. Por mim ele mofava na cadeia.

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Feminismo

“Estupro culposo”, culpa da vítima?

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Por Sonia Coelho*

O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”

A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências

A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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Feminismo

Estupro e feminicio em Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros

A cidade conhecida nacionalmente pelo clima esotérico, energia positiva e atrai turistas que exalam positividade, não tem sido um lugar seguro para as moradoras locais

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Republicação do jornal Metrópoles, por Anderson Costolli

APolícia Civil de Goiás (GO) investiga um caso de violência sexual que deixou os moradores de Alto Paraíso (GO), um dos principais destinos turísticos de Goiás, revoltados. Uma mulher, identificada como Oigna Rodrigues da Silva, 43 anos, foi estuprada e, devido aos graves ferimentos provocados pela brutalidade, morreu. Ela chegou a ser socorrida e encaminhada para o hospital da cidade, mas não resistiu.

O caso ocorreu nessa quarta-feira (16/9). Oigna foi encontrada em casa, por uma equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), bastante machucada e o Serviço de Atendimento Móvel Urbano (Samu) foi acionado. A vítima recebeu o atendimento na unidade de saúde, com adoção dos procedimentos e protocolos indicados às vítimas de violência sexual, mas veio a óbito na manhã dessa quinta-feira (17/9).

A Secretaria Municipal de Saúde do município de Alto Paraíso disse que os serviços de segurança pública foram notificados das lesões que a paciente apresentava, através de exame comprobatório de corpo delito preenchido pelo médico de plantão.

O prefeito de Alto Paraíso, Martinho Mendes da Silva, repudiou o caso de violência e disse, por meio de nota, que acionou a PCGO, “solicitando uma atuação severa e investigação rigorosa”.

Oigna era uma mulher bastante conhecida no município. Por ter sofrimentos psíquicos, era atendida pela equipe da Secretaria de Assistência Social e do CRAS havia 12 anos, segundo a prefeitura.

Segundo o boletim de ocorrência, a vítima tinha um atendimento marcado com a assistente social do CRAS para quarta-feira (16/9), mas a paciente não compareceu. Desconfiada, uma equipe foi até a casa da mulher, que não atendeu a porta. Pela janela, uma das assistentes sociais avistou os pés de Oigna, que estava caída no chão.

Com a ajuda de uma vizinha, a funcionária do CRAS conseguiu entrar na casa de Oigna e a encontrou caída, de bruços, com vários ferimentos no rosto e com muito sangue no chão. “Ela estava sem consciência, sangrando, porém, respirando de forma ofegante”, consta no boletim.

Ao chegarem ao local, os atendentes do Samu fizeram os primeiros socorros e verificaram que o sangue na roupa da vítima já estava seco, o que indicava que os ferimentos haviam ocorrido tinha algum tempo.

Os sinais de violência sexual só foram identificados no hospital, no momento em que os funcionários da unidade davam banho em Oigna. “Ela possuía sinais de agressão física no tórax, seio, e também laceração na vagina, em decorrência de uma violência sexual”, diz o documento. Oigna aguardava pela transferência para um hospital em Goiânia, quando teve uma parada respiratória e faleceu.

Delegado da Polícia Civil de Goiás à frente do caso, Danilo Meneses diz que o crime foi cometido com requinte de crueldade. “Já identificamos um suspeito e pretendemos dar uma resposta à sociedade o quanto antes. O crime é realmente chocante. Inadmissível”, disse o delegado.

“Justiça por Oigna”

Nas redes sociais, um coletivo de mulheres de Alto Paraíso clama por segurança, uma vez que ninguém foi preso. O grupo organiza, ao menos, duas manifestações e exigem respostas das autoridades que investigam o caso.

Nesta sexta-feira (18/9), às 17h, ocorre a Marcha Justiça por Oigna, com concentração na Praça do Canãa. A orientação é que todas as mulheres compareçam ao protesto de roupas pretas e levem velas.

Uma nova manifestação está marcada para a próxima segunda-feira (21/9), desta vez em frente à Prefeitura Municipal de Alto Paraíso. O ato Justiça por Oigna começa às 10h.

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Belo Horizonte

A ciranda das mulheres que percorre o Brasil em podcast

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Texto: Lucas Bois
Revisão: Ágatha Azevedo

Escutar notícias, ouvir uma narração e ser levado por uma trilha sonora… O que antes poderia ser um programa de rádio, hoje talvez seja um episódio de podcast. Esse fenômeno que invadiu a internet há poucos anos, continua em constante crescimento no número de ouvintes e se expande também na variedade de assuntos oferecidos. Atualmente, grande parte dos temas de podcasts estão relacionados à pandemia da COVID-19 ou ao contexto sócio-político decorrente do bom ou mau enfrentamento dos governos a essa crise mundial sanitária. No nosso país, a pandemia escancara as desigualdades ao evidenciar os problemas sociais que separam as classes econômicas da população.

Diante desse contexto, as jornalistas Raquel Baster e Joana Suarez decidiram mergulhar no mundo do podcast para contar histórias de mulheres brasileiras que enfrentam a pandemia, além dos desafios diários vividos cotidianamente. “A gente tem certeza que as mulheres sempre tem as melhores soluções. Ao reunir essas histórias, trazemos muitas ideias e inspirações, formando uma grande ciranda. Daí veio o nome do podcast: Cirandeiras“, conta Joana.

Para conhecer melhor esse espaço de webrádio e feminismo, os Jornalistas Livres fizeram um bate-papo com as jornalistas que contam sobre o processo de produção, a pandemia e a relação desse projeto com a democratização da comunicação.

Como começou

Raquel Baster e Joana Suarez já dividiam afinidades pelas pautas feministas e bastou apenas uma semana de quarentena para que colocassem o projeto do podcast em ação. Joana, que vem do jornalismo de redação, conta que já vinha se aproximando da rede de podcasts, refletindo sobre a acessibilidade do áudio e seu poder de democratizar: “A maioria dos textos que eu faço são textos enormes e tenho a certeza que muita gente não lê, principalmente as mulheres sobre quem eu falo. O áudio me atraía muito porque leva as pessoas a imaginarem, criar cenários e ir para outra dimensão. Agora na pandemia onde as pessoas estão confinadas, o podcast virou uma companhia, uma forma de sair de casa.”

Já Raquel trouxe ao universo do podcast, sua experiência com a comunicação popular: “Eu sempre trabalhei muito com rádio comunitária e me interesso por essa forma de comunicação que está mais próxima das pessoas. Por mais que ainda seja um novo tipo de mídia, o podcast traz as características do rádio, como as histórias contadas através de uma narração.”

Como é produzido

Muitas vezes, quem escuta um podcast não imagina o que pode estar por trás de sua produção. Segundo as jornalistas, a primeira coisa a fazer é pensar no tema e escolher as mulheres para as entrevistas, por elas chamadas de “cirandeiras”.

“Geralmente o episódio tem a ver com uma pauta que já trabalhamos anteriormente e assim, procuramos mulheres que já tivemos contato. Por coincidência, toda vez que decidimos uma pauta, acontece algo nacionalmente que se conecta ao programa.” Joana lembra que o episódio recente Pandemia na internet sobre segurança digital foi ao ar na mesma semana em que o Senado brasileiro discutia o projeto de lei que combate fake news, enquanto outra discussão acontecia nas redes sobre a exposição de dados pessoais dos usuários do aplicativo FaceApp.

Após o primeiro contato, elas fazem uma pesquisa sobre a cirandeira, enviam as perguntas e dão algumas dicas à entrevistada de como fazer uma boa gravação utilizando o próprio WhatsApp. Como essa orientação, muitas vezes, não é suficiente, nem sempre os áudios tem a melhor qualidade, “mas na pandemia tá tudo justificado”, comenta Joana.

Com as respostas da entrevistada, o roteiro chega a ter mais de 10 páginas e leva de 20 a 30 horas para sua elaboração. A cada episódio, uma delas toma à frente a função de escrever o roteiro, incluindo referências pessoais, e em seguida, a parceira acrescenta a sua parte. “A gente percebe que às vezes um tema muito comum para uma, pode ser muito complexo para a outra. A gente vai se complementando para facilitar o entendimento de quem escuta”, conta Raquel.

Depois do roteiro, vem a hora da gravação que exige algumas preparações, como escolher um horário silencioso do dia para gravar, desligar a geladeira e armar um pequeno estúdio caseiro com edredons. “O legal do podcast é que é uma mídia barata. Basta ter um celular, internet e gambiarras”, conta Joana dando risadas.

Retorno dos ouvintes

As jornalistas contam que 75% das pessoas que ouvem o podcast são mulheres e pertencem ao grupo social que elas convivem. Além do desafio de expandir a rede de ouvintes, elas relatam que ainda é uma grande dificuldade fazer com que o podcast retorne às pessoas entrevistadas e a outras mulheres que não estão acostumadas a esse tipo de mídia.

Raquel conta que a cirandeira Lia de Itamaracá, entrevistada no episódio Pandemia na Ilha, só pôde escutar o podcast após seu produtor viajar até a ilha onde mora para mostrá-la pessoalmente em seu celular. Lia é uma das mulheres brasileiras que ainda não fazem parte dessa grande rede de internet em 2020.

Um infográfico produzido pelo site iinterativa utilizando as fontes do IBOPE, Spotify Newsroom e ABPod, mostra que cerca de 45% do público dos podcasts é formado por homens, do sudeste do país, que pertencem às classes A e B e tem entre 16 e 24 anos. Segundo a pesquisa feita em 2019, 32% dos entrevistados nem sabiam o que é um podcast.

Se o podcast ainda é limitado a uma pequena parcela da população, o WhatsApp talvez possa ser um lugar mais democrático para a sua difusão. As jornalistas contam que decidiram fazer os episódios em formatos pequenos de até 30 minutos para conseguir enviar pelo aplicativo de mensagens e garantir que o podcast alcance o maior número de pessoas.

Democratização da comunicação

Para a jornalista Raquel Baster, é inevitável discutir o alcance dos podcasts sem pensar na democratização dos meios de comunicação no Brasil. Apesar do surgimento das novas mídias, grande parte das informações veiculadas é controlada por um conglomerado de grandes empresários que atendem os interesses privados dessa própria elite.

Segundo ela, “não adianta inventar a roda do podcast, sem falar da estrutura da comunicação no Brasil. Para tornar (a comunicação) mais acessível, precisamos discutir a concentração midiática. A internet ainda não é acessível para grande parte da população brasileira. Precisamos que o maior número de pessoas tenham acesso, mas que possam também alcançar os meios de produção.”

No episódio sobre trabalhadoras rurais, a entrevistada Verônica Santana fala sobre a dificuldade das agricultoras em conseguir se comunicar durante a pandemia, visto que o trabalho sempre foi presencial. “A gente tem muita dificuldade, tanto no domínio dessas ferramentas, como no desafio de que a internet não funciona na maioria dos nossos territórios rurais. No campo, a internet ainda não é uma realidade.”, diz Verônica.

Segundo a pesquisa TIC Domicílios, apenas 50% da população rural tem acesso a internet e esses números podem diminuir ainda mais de acordo com o recorte social e econômico.

Por outro lado, Joana revela seu otimismo no poder das novas mídias: “Acho que o podcast vai se democratizar como aconteceu com o Instagram. Quando a gente poderia imaginar ter acesso a sotaques das pessoas do sertão do Cariri?” Joana se refere ao podcast BUDEJO, de Juazeiro do Norte, e cita ainda o Radionovela produzido por alunos da UFPE em Caruaru, no agreste pernambucano, que narra em formato de radionovela O Alto da Compadecida em Tempos de Pandemia, adaptação da obra de Ariano Suassuna.

Para onde vai essa Ciranda

O podcast Cirandeiras teve início durante a pandemia, portanto grande parte dos seus episódios tem esse tema como contexto. No entanto, as jornalistas Raquel Baster e Joana Suarez pretendem continuar os episódios futuramente, indo a diferentes locais do Brasil para entrevistar de perto as mulheres que conduzem “as cirandas”.

Os episódios das Cirandeiras estão disponíveis nas plataformas mais conhecidas de podcast e tem a cada quarta-feira um novo episódio. Também estão presentes no Instagram, onde ocorrem as lives com as outras mulheres dentro das temáticas dos programas.

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