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Assistir “…E o Vento Levou” com extras não nos impede de gostar do filme

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Hattie McDaniel, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel de Mammy, em cena do filme

Por James Cimino, especial para os Jornalistas Livres de Nova York

Era uma vez um filme, vencedor de oito Oscar, indicado a 13, um dos primeiros grandes épicos do cinema, que tinha como pano de fundo a guerra civil americana, mas que mostrava a escravidão como algo “benigno”, quase que um refúgio para os ineptos negros, cuja missão nobre na Terra era servir os seus senhores brancos. Está é uma versão de “…E o Vento Levou” que, digamos, o vento levou do catálogo da HBO Max após o roteirista John Ridley (“12 Anos de Escravidão”) publicar um editorial criticando o caráter revisionista do filme.

Apesar do debate infundado de que o filme estaria sendo censurado, ele volta para o catálogo do serviço de streaming, apenas duas semanas depois, em uma nova versão: mais completa, mais honesta, mais informativa, mais histórica, tudo isso sem cortar ou adicionar uma cena, um diálogo sequer no corte original de 1939, dirigido por Victor Fleming e estrelado por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland, Leslie Howard e Hattie McDaniel.

Agora, quem assistir ao filme verá um prólogo de cinco minutos apresentado pela professora de cinema da Universidade de Chicago Jacqueline Stewart em que ela aponta ao mesmo tempo a grandiosidade da obra e seus erros históricos. Após essa pequena introdução, começam os créditos: primeiro Clark Gable, o cafajeste Rhett Butler, embora quem apareça em quase todas as cenas do longa que tem cerca de 3 horas e 40 minutos seja o segundo nome, a inglesa Vivien Leigh, que interpreta a inescrupulosa e cativante heroína Scarlet O’Hara. Em seguida, aparecem os nomes de Leslie Howard, que interpreta o melancólico Ashley Wilkes, e Olivia de Havilland, a íntegra Melanie Hamilton. De Havilland, aliás, é a única atriz viva do elenco e completou nessa quinta-feira (2) 104 anos.

Após a ficha técnica, elenco é reapresentado por núcleos. Hattie McDaniel, Oscar Polk e Butterfly McQueen, respectivamente os escravos Mammy, Pork e Prissy, aparecem no núcleo de Tara, obviamente após os atores brancos.  Os créditos do filme, aliás, representavam as desigualdades raciais e de gênero existentes na indústria do cinema e em uma sociedade ainda racialmente segregada por força de lei.

Mas também os créditos representam o tamanho do cacife do artista. Clark Gable era a estrela do filme, e Vivien Leigh, embora tenha dado uma das duas grandes performances de sua vida e certamente uma das melhores da história do cinema, era apenas uma atriz inglesa iniciante, por isso o nome dele aparece primeiro. No caso dos coadjuvantes, no entanto, tanto Leslie Howard quanto Olivia de Havilland tinham o mesmo quilate, embora Melanie seja uma personagem que também apareça muito mais que seu marido Ashley. Que o nome de Howard apareça antes de De Havilland nos faz pensar no machismo que em muitos casos ainda persiste em Hollywood.

Logo em seguida vem a primeira fantasia do filme: um texto introdutório que explica ao espectador que mundo é esse em que ele está entrando. E este mundo à parte, como diz textualmente a personagem de Olivia de Havilland, é “uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada O Velho Sul”. E continua: “Aqui neste belo mundo, o cavalheirismo rendeu sua última homenagem. Aqui foram vistos os últimos cavalheiros e suas belas; escravos e seus senhores. Procure este lugar apenas nos livros, porque ele nada mais é que um sonho a se recordar. Uma civilização que o vento levou…”

Antes de continuar a analisar suas falhas e destacar seus acertos, é importante destacar outros dois extras que aparecem no catálogo da HBO Max logo abaixo do filme, além do prólogo. Em 2019, quando o filme completou 80 anos de lançamento, o canal TCM promoveu um debate chamado “…E o Vento Levou — Um Legado Complicado” com a participação da produtora Stephanie Allain, de “Cara Gente Branca”, da autora do livro “Frankly My Dear”, Molly Haskell, além da professora Jacqueline Stewart.

E para celebrar o legado de Hattie McDaniel, a Mammy, primeira atriz negra da história a ganhar um Oscar, há um episódio de cinco minutos da série do canal TCM “What a Character” (“Que Personagem”) dedicado à atriz.

Os erros

A grandiosidade do filme nos cega para suas falhas no que diz respeito à escravidão. Mas também é importante mostrar que o material extra nos abre os olhos para o esforço que o produtor do filme, David O. Selznick, teve em não repetir o legado de “Birth of Nation”, de D.W. Griffith, que provocou o renascimento da Ku Klux Klan. O uso da palavra “negro”, por exemplo, foi negociada com a NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, na sigla em inglês), para, ironicamente, dar mais veracidade à história.

Aliás, o longa elimina a Ku Klux Klan de uma sequência em que Scarlet é atacada ao atravessar de carroça pelo meio de uma favela. No filme, ela é salva por um ex-escravo de sua fazenda. Posteriormente, seu marido Frank Kennedy e o nobre Ashley Wilkes vão vingar sua honra e incendeiam a favela, não sem antes matar alguns negros. No livro, quem pratica essa vingança é a KKK, conforme explicar a professora Jacqueline Stewart. “No livro, aqueles personagens fazem parte da KKK.”

A principal crítica feita durante o painel de 80 anos do filme, no entanto, é sobre o caráter dos escravos neste fantasioso mundo que ignora a brutalidade da escravidão sobre a qual essa sociedade foi erigida. Nele, os negros são ou serviçais, nobres por sua devoção a seus senhores brancos, ou ineptos.

Segundo a professora da universidade de Chicago, a secessão é retratada como “causa perdida” não apenas na indústria do entretenimento, mas também na academia. Segundo ela, “…E o Vento Levou” relata uma “perda irreparável” desse modo de vida.

Inclusive, quando os Yankees (os soldados da União) se aproximam de Atlanta, vemos uma cena em que Scarlet cruza com os escravos de Tara que estão marchando, sorridentes e felizes, para a linha de frente, onde irão cavar trincheiras para os confederados.

“No filme, a escravidão é vista como benigna. Há uma suposta nobreza nisso, porque mantém o negro em seu lugar devido, que na verdade é um lugar feliz e seguro, enquanto que após a guerra, no período imediatamente posterior à abolição, a reconstrução, tudo cai por terra. Ou seja, os negros não têm capacidade de se guiarem a si mesmos”, complementa a professora.

A autora Molly Haskell também aponta esse retrato “demonizante” do pós guerra, segundo ela como se a abolição tivesse sido uma falha completa, já que os negros acabam se tornando ou favelados ou se aliando aos malvados Yankees. No entanto, Haskell destaca que o filme dá ao sul o que eles não tiveram na vida real: a fantasia da vitória.

Mas o filme também deixa implícito que o trabalho dos escravos nos campos de algodão não era necessariamente honrado. Quando Scarlet e as irmãs trabalham na colheita de algodão após Tara ter sido saqueada pelos Yankees, vemos elas ficarem com as mãos calejadas, emagrecendo, terem os cabelos desgrenhados, os vestidos sujos e rasgados e cada vez menos parecerem com aquelas beldades do começo do filme que disputavam os “cavalheiros” nos churrascos na fazenda.

No entanto, logo depois, vemos o pai de Scarlet, já delirante após a guerra, falando para a filha que não estava gostando do jeito que ela tratava Mammy e Prissy. “Devemos tratar muito bem os nossos servos, especialmente os escurinhos (darkies, em inglês)”, num diálogo que claramente tem como intuito dizer que os escravos eram tratados com humanidade.

Isso não era verdade nem mesmo nos bastidores do filme, quando nem havia mais escravidão. Butterfly McQueen, que interpreta a mentirosa Prissy, teve que negociar com o diretor uma cena em que Scarlet a esbofeteia. Segundo os debatedores, durante a filmagem, Vivien Leigh foi orientada a bater de verdade em McQueen. Em resposta, ela não estava entregando o resultado desejado pelo diretor. Ela então disse ao diretor que só daria a performance desejada se aquela branca não batesse mais em sua cara.

A força do filme é feminina

 

Apesar de tudo isso, como ainda conseguimos gostar do filme e nos emocionar com ele? Essa foi a primeira questão respondida pelas debatedoras: a força das personagens femininas, especialmente, Scarlet e Mammy, mas também Melanie.

“Scarlet é inescrupulosa, maltrata todos que ela ama, mas além da excitação de ver uma mulher tão dona de si, especialmente no sul, onde os homens brancos não possuíam apenas os escravos, mas também suas mulheres, eu acho que a gente torce por ela porque Rhett, Mammy, Melanie e Ashley a amam apesar de todos seus defeitos”, analisa Molly Haskell.

A produtora Stephanie Allaine diz que o que sempre a atraiu no filme foi o fato de Scarlet ser uma personagem que não é submissa, mas que se coloca em pé de igualdade com os homens. Mesmo em uma cena em que Rhett Butler, ferido de ciúme, ameaça esmagar sua cabeça com as próprias mãos, ela não se intimida: “Tire suas mãos de mim, seu bêbado idiota!”, diz a altiva personagem.

“Ela é resiliente, não desiste nunca. Mas o filme tem outra personagem que me atrai muito que é a Mammy, que é inteligente, sábia e destemida. Ela é a consciência do filme. E, além disso, ela é a única que enfrenta Scarlet e, com astúcia, a convence a fazer o que é certo.”

No filme, aliás, Mammy é um papel muito maior que no livro, graças ao produtor David O. Selznick e à performance cativante de Hattie McDaniel, que em inglês não tem os cacoetes ridiculamente racistas da dublagem brasileira. Até a autora do livro, Margareth Mitchell, apontou que, na plantation, nenhuma escrava, por mais status que tivesse dentro de casa, gritaria da janela com uma sinhazinha como acontece no filme.

Filme é anti-guerra

 

“…E o Vento Levou” pode ser um filme que romantiza a escravidão, mas seus dois protagonistas são os maiores críticos da Confederação e da guerra que dela se sucedeu. Isso fica bem claro na primeira aparição de Rhett Butler, quando os sulistas estão reunidos na fazenda de Ashley Wilkes se vangloriando de um ataque do general Robert E. Lee que forçou o exército do presidente Lincoln a recuar. Butler, um homem de reputação duvidosa, explica que o sul não tem sequer uma fábrica de canhões e que a única coisa que eles têm são escravos, algodão e arrogância. Em uma cena posterior, ele diz a Scarlet que aquela guerra é um desperdício em nome da teimosia em se manter no passado.

Mas, novamente, é o no cinismo de Scarlet O’Hara que vemos talvez a maior declaração de repulsa ao regime escravagista do sul. Quando ela assume a madeireira de seu marido, contrata prisioneiros de guerra sulistas para cortar árvores para seu negócio. Eles lhes são apresentados por um feitor, que lhe pede “carta branca” para lidar com eles.

O nobre Ashley faz uma objeção dizendo a ela que a tal carta branca significa liberdade para bater e subnutrir os prisioneiros, que ele prefere contratar negros libertos, mas Scarlet se opõe dizendo que o preço que eles cobram iria quebrar o negócio. Ashley então diz que se recusa a lucrar às custas de trabalho forçado e do sofrimento dos outros. Ela, então, lhe dá um xeque-mate: “Você não era tão seletivo assim quando possuía escravos.”

Neste ponto da narrativa, Scarlet já havia jurado por Deus que jamais passaria fome novamente, nem que precisasse matar, roubar ou trair. Também havia decidido vencer os Yankees em seu próprio jogo, ou seja, ela se torna uma yankee, nem que seja às custas de seu próprio povo.

Para as debatedoras, essa postura da personagem torna o filme um crítica à guerra civil americana. “Scarlet não é mais aquela menina simplória, mas sobrevivente como é ela vai fazer de tudo para vencer. Porque no fundo ela não acredita na guerra nem naquela filosofia ultrapassada que a originou. Scarlet na verdade se torna a antítese do sul.”

Portanto, a experiência de assistir a “…E o Vento Levou” com todo esse debate e contextualização não apenas é mais rica intelectualmente, como tampouco nos impede de gostar do filme apesar e também, por que não, por causa de suas contradições. Ao contrário, todo esse material nos abre os olhos para o caráter insidioso daqueles que usam o cinema para moldar a realidade e reescrever a história, como bem aponta, ao fim do debate, uma pessoa da plateia.

“Acho que estamos sendo muito tolerantes com o retrato que se faz dos confederados, não apenas no filme. Hoje você faz uma tour por Charleston e eles mostram um lugar onde foi um mercado, mas não dizem que era um mercado ‘de escravos’. Nas plantations, a mesma coisa. Você vê em algumas delas uma placa explicando que ‘aquela plantation foi construída com trabalho não remunerado’, como se aquelas pessoas tivessem ido voluntariamente trabalhar ali.”

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1 Comment

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  1. Neco Zenn

    04/07/20 at 2:22

    Deixem “E o vento Levou” no seu lugar na história do cinema. Ele retrata os personagens de sua época! Quem gosta do filme não necessariamente concorda com ele! Óbvio! A sua narrativa mostra bem no que os EUA se tornou após aquela guerra! Se for seguir assim olho por olho e dente por dente, como ficam os romances que abordam escravidão no Brasil? Também temos uma história vergonhosa de escravidão. Deixem o filme em paz….no fim, o que importa na trama é a terra vermelha de Tara e não importa quem será explorado por seus donos inescrupulosos e isso não invalida o filme.

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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