Era inevitável, na verdade. Após as primeiras semanas da euforia que acompanharam a estreia de Bacurau no circuito cinematográfico brasileiro, a reação adversa a ele tinha que chegar. Faz parte do ciclo de vida de um produto cultural que as vozes contra ele se levantem, e isso nunca foi mais verdadeiro do que na internet, onde ter a opinião “diferentona” de todo mundo virou forma de inflar o ego, se declarar a voz da razão em meio à multidão ensandecida, ou, ainda mais satisfatório para o dissidente: à multidão enganada, burra, simplória, básica.
Daí que surge, eu acho, a necessidade de proclamar que a obra de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles não é o símbolo de resistência de esquerda que foi pintado pelo discurso político de parte de seu público — que é, ao invés disso, uma diatribe perigosa, virulenta, que enganou a massa, com boas intenções ou não, induzindo-a a comprar uma visão de mundo tão tacanha e primitiva (embora oposta politicamente) quanto a que o presidente e seus comparsas promovem no comando do governo federal.
Assim como me vejo pensando acerca de muitas das mentiras contadas pelo presidente, no entanto, é difícil engolir essa versão dos fatos. Difícil principalmente porque a minha vivência de cinema como arte e como fenômeno de cultura pop aponta que um filme interage com o seu público em um nível que pouco ou nada tem a ver com as discussões acadêmicas qualificadas, ou as análises infindáveis do quão correta é a sua mensagem de ativismo, que podemos fazer.
Cena de Bacurau (Fonte: Divulgação)
Tempos de violência
São numerosos os estudos que mostram como mídias violentas não influenciam de forma direta, nem provocam, comportamentos violentos. Nos EUA, que vivem uma epidemia de tiroteios em massa que só faz crescer, políticos de direita, um atrás do outro, tentam culpar filmes, séries, músicas e (mais recentemente) videogames violentos pelos episódios que tiram a vida de milhares todos os anos. A cada tentativa, são barrados pela ciência, embora essa noção tenha se infiltrado na convenção popular.
É dela, possivelmente, que vem a condenação da violência em Bacurau, e a revolta contra a reação jubilante e satisfeita que muitos públicos mostram a essa violência. Só que o medo de que um filme sobre revolução violenta leve a uma revolução violenta na vida real subestima a inteligência do público, que se conecta há décadas com histórias semelhantes e sabe separar ficção de realidade.
Pode ser que nem todos os milhares que foram ver Bacurau no cinema possam teorizar sobre os apelos midiáticos da narrativa cinematográfica e a psicologia de sua absorção pelo público, mas é quase nata do humano que vive em sociedade a habilidade de traduzir ficção em sentimento e levá-la, de forma não literal, para o contexto em que vive. Por isso, inclusive, que Bacurau é absorvido como “símbolo de resistência” pela esquerda intelectual, que vê nele a repetição de clichês imagéticos antigos conectados à suas crenças políticas, em um momento no qual elas estão, senão perdidas, esmaecidas no cenário nacional.
Enquanto isso, para o público fora dessa bolha de ativismo classe média/alta, o filme é muito mais visceral. Embora talvez não consigam dar nome às referências levantadas por Mendonça Filho e Dornelles, sabem que elas estão lá — e vibram de forma catártica pela forma como o filme as resgata e atualiza. É a própria prerrogativa do cinema de gênero, no qual Bacurau firma seu pé de maneira decisiva ao emprestar elementos de ficção científica e thriller: reafirmar a eficiência e o valor de certos clichês, através de sua reencarnação em contextos modernos.
O nome de Quentin Tarantino, diretor norte-americano de filmes como Pulp Fiction: Tempos de Violência e Bastardos Inglórios, foi frequentemente citado por críticos ao falar de Bacurau. A comparação era irresistível: o filme de Mendonça Filho e Dornelles lança mão da estilização da violência, característica mais popularmente conhecida do cinema de Tarantino, e chegou aos cinemas poucas semanas depois de Era Uma Vez em… Hollywood, grande produção do cineasta norte-americano.
Embora, desde então, muitos tenham apontado diferenças fundamentais entre o cinema de Tarantino e o de Bacurau, há também semelhanças insuspeitas, que vão além dessa comparação estética rasa. Em seus últimos filmes, Tarantino também tem contado histórias de revoluções violentas, colocando uma vingadora judia para incendiar nazistas em Bastardos Inglórios, um escravo liberto para chicotear donos de plantações em Django Livre.
O norte-americano escapa (na maior parte do tempo) de críticas como as levantadas contra Bacurau, imagino, porque coloca suas revoltas violentas no passado, alterando o rumo de acontecimentos reais e imaginando como a história seria diferente se o oprimido tivesse a chance de se vingar do opressor. Enquanto isso, Mendonça Filho e Dornelles localizam a sua trama em um futuro próximo, colocando-nos na desconfortável (ao menos, para alguns) posição de considerar que nosso presente está levando a uma situação em que a revolta violenta pode se tornar a única saída.
Frente a isso, aterrorizados, alguns de nós sentem a necessidade de realçar a irrealidade da situação. De pintar como non-sense, incompreensíveis, ou psicologicamente rasas, as ações dos vilões da trama de Bacurau, de sublinhar o tempo todo um suposto surrealismo usado pelos diretores. Mendonça Filho e Dornelles estão menos para David Lynch, no entanto, e mais para Ken Loach, fosse o renomado realista inglês um pouco mais chegado a experimentações de gênero.
Um novo coletivo
Tudo isso para dizer que, no fim das contas, quem vai realmente medir o impacto cultural de Bacurau não é a esquerda intelectual que conceitualiza as noções de revolução apresentadas nele. Quem vai medir o valor de Bacurau é um povo muito semelhante ao retratado pelo filme, que vai ver ali reflexões de sua vida mais honestas, ainda que escondidas sobre um verniz de fantasia e catarse, do que o cinema normalmente apresenta. Em filmes anteriores, Mendonça Filho deu voz a um nordeste moderno, urbano, diverso — aqui, faz o mesmo, independente dos clichês em que tramita.
Por todas as suas brincadeiras com a rotina de uma cidade minúscula, seu resgate de imagens icônicas do sertão e do cangaço, Bacurau expressa uma revolta nordestina que é muito contemporânea. É fácil ver isso nas faces que representam a revolução do filme: lideranças da comunidade incluem uma médica lésbica mais velha, vivida com garra inconfundível e humor afiadíssimo por Sônia Braga; e uma travesti que faz vigia nos limites da cidade, onde aparentemente vive com o seu namorado ou marido.
O grande herói local, enquanto isso, é Lunga, que, o filme leva a crer, lidera uma trupe de foras-da-lei violentos que foram execrados por sua homossexualidade, ou ao menos o seu desvio das normas de gênero convencionais. Lunga é alternadamente chamado por pronomes masculinos e femininos durante o filme, e, na caracterização impecável de Silvero Pereira, se torna um dos personagens mais instantaneamente icônicos da memória recente do cinema nacional.
São esses tipos que o filme inclui, de maneira inédita, nos clichês que aborda, no imaginário de revolução que levanta. Bacurau pode se passar em um futuro próximo, mas, como todos os filmes futuristas, é um filho da época em que foi feito: traz para 2019 o conflito do local contra o colonizador (e não do nativista contra o estrangeiro, como desonestamente alguns críticos do filme colocaram), e pede, em última instância, por uma união organizada contra a opressão. Dizer que o filme arrisca inspirar qualquer coisa além disso parece-me profundamente equivocado.
Rua Augusta 1029, documentário curta-metragem registra os momentos iniciais de uma ocupação. Gravada em 2015 no ato Abril Vermelho em que 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social na cidade de São Paulo.
Em 1968 durante as filmagens de “O Bandido da Luz Vermelha” Sganzerla, diretor do filme, escreveu um manifesto chamado “Cinema-fora-da-lei”, no qual seu trecho final dizia:
“O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.”
(Rogério Sganzerla)
Passados mais de meio século depois muita coisa aconteceu, tanto no cinema como na história política do país. Entretanto, o Brasil atual de certa forma, é um eco cacofônico daquele fatídico 1968, não por acaso, a citação acima ainda faz sentido mesmo depois de 52 anos, e com a exceção dos “personagens medrosos”, o documentário de Mirrah Iañez é a incontestável prova da atualidade do manifesto de Sganzerla. “Rua Augusta, 1049” é um cinema-fora-da-lei, instável como nossa sociedade na iminência (e da necessidade) de explodir pra não “sobrar quem estiver de sapato”i.
O filme nos mostra os primeiros momentos de uma ocupação por famílias em um prédio abandonado no centro de São Paulo, lutam contra o tempo enquanto a polícia vai cercando o local. No escuro a câmera tateia o espaço, registra os procedimentos iniciais e atua também como mecanismo de proteção contra as arbitrariedades da polícia, os sons desencontrados nos inserem na tensão do momento, cinema e ativismo se fundem em uma imagem imprecisa e cirurgicamente potente, pois, ao mostrar pouco, revela muito.
Na urgência da luta por moradia, a câmera de Mirrah ocupa politicamente não só este ato, mas o próprio cinema, em crise, em muitos casos vazio e elitizado, a imagem em movimento e sons estabelecem aqui a sua função social, não que o cinema deva necessariamente ter essa função, mas estes tempos exigem, assim como o déficit de moradia diante de tantos prédios abandonados exige a ação e questionamento por parte dos movimentos de luta por moradia.
“Rua Augusta 1049”, portanto, como um cinema de ocupação, se realiza na necessidade, no ato político de questionamento do status quo, na luta por justiça social, na coletividade, na coragem e na ousadia de pensar um novo mundo comprometido com a luta de trabalhadores, antifascista e anticapitalista.
Porém sem ser panfletário, ancorado não no discurso retórico mas na dialética das relações de afeto entre pessoas de luta, que para além de números estatísticos e narrativas espetaculares, mostra um cinema feito por nós, para nós, sem hesitar. Em um dos diálogos do filme:
-O meu olho tá doendo – diz um menino pré-adolescente depois de ter inalado gás de pimenta.
-Isso aí é normal, A nossa luta é isso aí. – diz sua mãe enquanto estende a bandeira da F.L.M.
-Eu sei. – responde o menino ajudando a mãe a amarrar a bandeira.
No último plano do filme, quase despercebido, numa irônica coincidência, uma revista Exame perdida na entrada do prédio cuja capa fala sobre especulação imobiliária é endereçada a Delfim Netto no endereço da ocupação, Rua Augusta 1029. Delfim, é importante lembrar, foi dentre outras coisas ministro da economia durante a ditadura militar (em 1968 enquanto Sganzerla escrevia seu manifesto e participou da criação do AI-5) e é sua a célebre frase “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, uma ironia aguda demais que coroa o acaso e a relevância de um filme feito literalmente na guerrilha em uma sociedade que não divide apartamentos abandonados com quem não tem onde morar numa cidade que cresceu mais do que um bolo superfermentado.
Quem não luta, tá morto!
Sobre o filme:
Rua Augusta, 1029 (2019)
Sinopse: Na madrugada de 13 de Abril de 2015, 6 mil famílias ocuparam 18 prédios sem função social. O Ato, ABRIL VERMELHO, serviu para atentar o governo sobre a falta de vontade política para sanar os problemas de habitação.
Peripatético, curta-metragem de 2017, é um dos mais emblemáticos filmes para se perceber o novo caminhar do cinema no Brasil. Até o dia 19 de outubro estará disponível para ver gratuitamente em uma Mostra online de Cinema Brasileiro Contemporâneo no site do Itaú Cultural.
O curta-metragem é um formato enxuto em diversos sentidos e sua viabilização não depende fundamentalmente de leis de fomento e patrocínios (ainda que sejam absolutamente importantes), como ocorre com os longas-metragens de maneira geral. O curta em sua essência é um produto audiovisual menos burocrático, em que o realizador possui maior liberdade de experimentação artística e produtiva, não precisando necessariamente de grandes recursos, o que consequentemente propicia ao filme de curta duração a possibilidade de ser um grande laboratório de pesquisa e experimentação de linguagens e poéticas.
Sem dúvida, este formato, principalmente com o advento do digital, é uma espécie de espaço privilegiado para se perceber o que pode ser o futuro do Cinema, seja no surgimento de novas possibilidades de linguagem, de produção e principalmente de novos cineastas.
Paralelamente, com o surgimento de oficinas e cursos livres de cinema digital, alguns deles em territórios descentralizados durante a última década, principalmente na cidade de São Paulo, é possível perceber um aumento significativo de cineastas periféricos e com narrativas para além das até então difundidas pelo cinema hegemônico.
Novos corpos e novas perspectivas periféricas desvelaram-se simultaneamente às lutas identitárias, sejam de pretos, mulheres, indígenas e LGBTQIA+ entre outros. Inevitavelmente a produção audiovisual recente se insere nesta perspectiva, principalmente o curta-metragem, dada a sua acessibilidade.
Sendo assim, ao seguir o caminhar do cinema através dos filmes curta-metragem que vem se destacando nos últimos anos, podemos entender e refletir sobre o cinema, e sobretudo a sociedade contemporânea.
E agora neste momento de pandemia e desmonte de instituições e políticas públicas audiovisuais em que o cinema tem sido drasticamente afetado, paradoxalmente, graças a uma série de Mostras e Festivais de Cinema realizadas de forma online, é possível ver de casa o que há de melhor do universo dos curtas-metragens enquanto propostas e respiros de outros possíveis cinemas na iminência de um futuro incerto.
Neste contexto tão atípico, portanto, é possível ver “Peripatético”, curta-metragem de ficção vencedor de diversos prêmios na época de seu lançamento, incluindo o Festival de Brasília em 2018. “Peripatético” de alguma forma é um exemplo bastante relevante das colocações acima, apresentando um cinema contra hegemônico, dirigido por Jéssica Queiroz, uma mulher preta e periférica, gravado na Zona Leste de São Paulo com personagens diretamente conectados a este lugar de fala. Um olhar desatento poderia deixar passar a relevância e transgressão disto, pois, se antes a periferia era retratada sempre pelo olhar de um diretor homem heteronormativo branco de classe média, aqui se abre uma fresta para um novo ponto de vista, de baixo para cima e de dentro para fora.
O resultado é um filme bastante vigoroso ao retratar temas já bastante abordados nas artes e no cinema em outros momento, como a passagem da adolescência para a vida adulta, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais e o racismo.
Entretanto, Jéssica Queiroz propõe um outro imaginário sobre a periferia, colocando em xeque o clichê da periferia suja, violenta, de tons ora azulados ora pastéis, com faces cheias de dor, sofrimento e melodrama. “Peripatético”, ao contar a história de três jovens amigos moradores da periferia e seus planos e medos para o futuro, apresenta uma periferia pop com uma fotografia iluminada e cheia de cor, com diálogos cheios de referências a animes japoneses, “Ilha das Flores”, banalidades e reflexões existenciais, tudo ritmado por uma edição bastante dinâmica, porém, sem deixar de lado temas como a violência, a desigualdade social e o racismo, o que muda é a maneira como isto é tratado.
Há uma inventividade lúdica no filme que surpreende a cada cena, desde graffitis animados em diálogo com os pensamentos em voice over da personagem sobre o trabalho, a explicação da meritocracia mostrando nadadores e não nadadores em uma piscina competindo e a cena da abordagem policial violenta encenada por crianças brincando de polícia e ladrão. Jéssica consegue em suas alegorias, mesmo não explicitando a violência e o sofrimento, potencializar imagens carregadas de crítica e afeto que transbordam um “real” que encontra identificação instantânea com quem também vive em regiões periféricas, coisa que filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, por exemplo, não atingem nem de longe.
“Peripatético” não é o primeiro e nem o único filme que traz estas questões, mas é um dos mais relevantes ao trazer um frescor narrativo em contrafluxo do até então cinema tradicional (branco de classe média) produzido até aqui, sem deixar de ser popular e muito menos de ignorar as questões que atravessam seu contexto.
Se no filme, no qual jovens entram na fase adulta cheio de incertezas, o cinema brasileiro em crise entra também em uma nova fase. Creio que uma saída possível é caminhar junto com essa nova geração, observando-os e (re) aprendendo com elas e eles, e assim, será possível amadurecermos enquanto cinema e sociedade.
Sobre o filme:
Peripatético (2017)
Sinopse: Simone, Thiana e Michel são jovens moradores da periferia de São Paulo. Simone procura o primeiro emprego, Thiana tenta passar no vestibular de medicina e Michel ainda não sabe o que fazer. Em meio às demandas do início da fase adulta, um acontecimento histórico em maio de 2006 na cidade de São Paulo muda o rumo de suas vidas para sempre.
Mãtãnãg, a encantada é um curta-metragem de animação produzida pelo povo Maxakali, e vem se destacando no circuitos de festivais de cinema. Ele está online até o dia 15 na Mostra Cine Flecha de cinema indígena contemporâneo.
Ao mesmo tempo em que, neste contexto de pandemia, muitos projetos culturais e artísticos tenham sido paralisados, no circuito audiovisual diversas Mostras e Festivais de Cinema optaram por realizar suas edições de forma online, permitindo que filmes restritos a eventos locais pudessem ser vistos de qualquer parte do mundo.
Neste cenário atípico, e como nunca antes, é possível assistir muitos curtas-metragens (formato pouco comum em plataformas on demand) inéditos e recentes, que oferecem em geral uma maior ousadia e algum frescor em experimentações de linguagem e técnica, além de visibilizar produções independentes e marginais com outras narrativas além das até então difundidas pelo cinema hegemônico.
Atualmente, o cinema no Brasil vem também passando por processo de transformação no qual, o cinema negro, feminista, LGBTQIA+ e periférico vem ganhando (a partir de muita luta) cada vez mais espaço, e neste bojo, o cinema indígena contemporâneo.
Se este cinema de guerrilha, mais identitário e político é ainda uma vertente do cenário audiovisual brasileiro que orbita nas margens do “mainstream”, o cinema indígena está ainda mais à margem, ao mesmo tempo em que, desde o revolucionário projeto “Vídeo nas Aldeias” idealizado pelo indigenista Vincent Carelli lá em 1986, a produção cinematográfica de nossos povos originários cresceu de maneira exponencial, mas ainda que circulado apenas em espaços restritos a filmes etnográficos.
Imagem: Divulgação/Pajé Filmes
É sob esta perspectiva que está em cartaz a 1ª Mostra Cine Flecha, exibido na plataforma VideoCamp e que está disponível gratuitamente até o dia 15 e outubro. Nela é possível ver 25 filmes brasileiros e 1 boliviano. Dentre eles, a animação “Mãtãnãg, a encantada”.
O curta narra uma história tradicional do povo indígena Maxakali situado no município de Ladainha (MG) que, mesmo tendo contato com os brancos por séculos, tentam preservar sua cultura mantendo sua língua e sua cosmologia, e já há alguns anos, utilizam o cinema como ferramenta para tal.
Animação no Cinema Indígena
A animação, fruto de uma oficina, foi roteirizada e ilustrada pelos próprios indígenas, a direção é de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, este último não é um Maxakali mas é um parceiro deles há décadas, e foi o mediador entre o projeto dos Maxakali e editais de fomento.
Outra característica importante sobre o curta é que ele é todo falado em Maxakali com legendas em português. O filme retrata a história da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Nesta jornada eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo dos Yãmiy (dos espíritos).
Entre cantos que evocam essa história e a mistura de desenhos de cada participante, a animação nos faz imergir em um universo onírico e novo, de outra temporalidade, outras noções de narrativa a partir de outras percepções de mundo.
Em uma negociação entre tradição e modernidade, os Maxakali se conectam com sua cultura, se afirmando e fortalecendo seus laços enquanto povo, corroborando com a afirmação de Krenak em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”:
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos (…) E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.
(Ailton Krenak)
Adiando o fim do mundo, os Maxakali mostram uma animação naturalmente decolonial, difícil de descrever de maneira eficiente em palavras “coloniais”. Tem que assistir, assim como os outros filmes que compõem esta mostra imperdível. E ainda parafraseando e citando Krenak, Filmar, “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial”.
Mais relevante politicamente do que isso, neste momento em que territórios indígenas e tribos estão sendo dizimados enquanto o Brasil arde em chamas, só a destituição deste governo.
Sobre o filme:
Mãtãnãg, a Encantada (2019)
Sinopse: Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual.
Brasil (SP) | 14 min. | Animação | Livre
Direção: Shawara Maxakali e Charles Bicalho
Pesquisa e Roteiro: Pajé Totó Maxakali Charles Bicalho
Produção: Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho
Tradução: Charles Bicalho, Isael Maxakali, Sueli Maxakali
Carlos Ebert
17/09/19 at 17:56
O filme é ruim.