Nos meus tempos de ZN, um dia conheci o Centro Cultural São Paulo, na Vergueiro. Achei o máximo. Aí, conheci o MASP. Foi a glória. Sentei na frente de um quadro e redesenhei numa folha de papel. Soube pela minha professora que era de um tal de Van Gogh. Conheci a arte. Atravessei a ponte e cheguei no centro. Conheci a cidade. Vivenciei a noite e fui trabalhar num bar. Conheci Itamar Assumpção, Chico Cesar, Gigante Brasil, Edu Rocha, os irmãos Nardo. Conheci Paulo Freire, Julio Dojcsar, Silvana Marcondes, Jards Macalé, Jorge Mautner. Um mundo novo. Arte verdadeira, engajamento político, pensamento coletivo. Conheci e criamos a casadalapa. Conheci o movimento estudantil. Me envolvi. Conheci Orlando Silva, a família Petta. Passei a acreditar que podemos mais. Que somos atores dessa grande tragédia e comédia humana. Que estamos no volante de nossos destinos. Conheci Erundina num restaurante da Vila Mariana, Marina num aeroporto em minha primeira viagem para o exterior. Conheci Haddad na CasaRodante e Dilma em sua campanha de reeleição. Faltava um cabra.
Ontem foi o dia que conheci o Lula. Já tinha visto ele de longe na Paulista logo depois da aclamação do primeiro presidente operário desse País. Ouvi seu discurso atentamente. Mas enxergava um ponto perdido em meio a fumaça, serpentina, confete e carnaval. Ontem, não. Fiquei próximo ao palco da quadra do Sindicato dos Bancários durante todos os discursos. Estava exausto. O dia foi cansativo a valer e meu joelho atropelado me dizia que estava precisando de descanso. Nessa hora, ouvi que ele viria. Resolvi ficar ali, no meio da multidão e do calor que sempre me enche de suor e sede.
Chegou a hora. Como numa plateia dos Beatles, a geral explodiu em êxtase e desespero. Gritaria, empurra-empurra, pisões em dedos mindinhos, celulares nas cabeças alheias, lágrimas e barulho. Muito barulho. O dono da bola pediu silêncio como uma simples anedota de um domingo de festa familiar. E o silêncio se fez.
Foto: Mídia NINJA
Olhei pra ele, pro cara, pro homem, pro chefe. Mas vi um velhinho, baixinho, barriguinha saliente, a dor estampada no seu rosto, o cansaço visível. Um senhor frágil, às portas de um desmaio ou de um tchau de desistência. Começou a falar. A voz rouca e falha me deixou mais preocupado ainda. Buda meu, toda aquela força que já vi pelos monitores que passaram pela minha vida, discursos inflamados, a minha dorsal em completo frisson, onde estaria? Onde estaria todo o poder do mentor de uma mudança que vi com meus próprios olhos? O cara que transformou um País? Onde estaria?
Então, o cabra começou a falar. A voz rouca e frágil foi se repetindo como um mantra. Uma reza. Oração. E todos com seus espíritos. Falou sobre indignação e respeito. — É verdade…, comentou baixinho alguém por perto. Lembrou da sua caminhada, da campanha difamatória da TV Globo na disputa com Collor. Lembrou do jogo de esconde-esconde do FHC. E veio. Água mole em pedra dura…
A voz foi ganhando força ou eu mesmo deixei que a força daquela voz entrasse em meus ouvidos. E falou das pessoas do andar de baixo, dos degraus conquistados. Negros, índios, domésticas, a periferia. — O Nordeste, Lula!, gritou uma senhora ao meu lado. Eu mesmo pude conhecer nos rincões do Ceará, da Bahia, de Goiás e do Amazonas um brasileiro de peito aberto, certo de sua história, sua cultura, sua importância. As conquistas. Um governo pra todos. Lembrou que trabalhador teve aumento todo ano, aposentado, todo mundo. Também ganhou o banqueiro, ganhou o empresário. Ah, Lula, banqueiro e empresário? Mas se o governo era pra ser de todos, todos tinham que ser, ou não?
E ele falando, falando, pareceu mais magro, mais alto. Seus cabelos completamente brancos, em vez de velhice, agora me pareciam brancos de sabedoria e experiência e sua voz cada vez mais forte, mais contundente. Falou do pobre ocupando shopping, comendo hamburger, frequentando teatro, cinema. –Aí, mexeu com nós! Outro respondeu. Falou do pobre chegando no Parque do Ibirapuera, andando de avião. — Avião, avião! Surgiu num coro. Meus braços já estavam cansados, levantados para fotografar no celular uma imagem potente. Mas ele continuou falando. Falou que pobre agora podia escolher onde ir, onde estar. Falou que o pobre não era um problema, que pobre virou a solução! Nessa hora, não segurei. Lula, seu fela! Me fez chorar, porra! Eu sabia. Era aquela voz, aquela oração, aquele mantra.
Fotos: Sato do Brasil para Jornalistas Livres
E quanto mais eu ficava cansado, mais forte o cabra ficava. E sua voz, que antes me parecia frágil, agora gritava impávida, sobre histórias incríveis. Falou alto do desgosto da elite quando o Estado começou a emprestar cinquenta reais pra pobre comprar arroz, feijão, carne, e falou do desgosto da elite aumentando vendo esses empréstimos gerando emprego, arrecadação e investimento. Gritou sobre um país de futebol e carnaval que elegeu um torneiro mecânico e se tornou independente dos cofres internacionais, de um governo que criou 22 milhões de empregos, com aumento real de salário, de um governo que construiu mais universidades que qualquer outro. Gritou sobre a vontade alheia do seu fracasso. Gritou sobre suas companhias na jornada, os sem terra, os sindicatos, a CUT, os catadores de papel, as mulheres. — Não chora, não! Alguém pede. Mas ele chorou. Humanos choram também. Assim mesmo, continuou. Berrou sobre um Palácio e seus moradores diários. E que ele era o outro, e o outro era ele.
Foto: Mídia NINJA
Eu já exaurido, agora sua voz chegava mansa e tranquila. Falou baixinho de sua ignorância, seu desconhecimento, mas falou também de seu poder de escutar o que se precisava ouvir. Falou de quem não tinha luz e agora tem, de quem não tinha onde vender e agora tem, falou de quem não tinha crédito e agora tem. Cochichou sobre a primeira mulher presidenta do País. E mais, sobre o preconceito contra as mulheres, uma sociedade machista e a luta para combater tudo isso. E soprou sobre o absurdo de um retirante que chegou à Presidência da República e foi considerado “o cara”.
Quando tudo chegou ao fim, olhei de novo para o palco e vi um gigante. Um gigante ferido pela batalha em curso, mas com uma guerra a vencer. Um guerreiro criado no pau a pique e que junto a seu exército de fortes, ainda tem muito sangue a jorrar um País governado por todos.
3 respostas
Quem é que consegue produzir tanta estupidez?! caramba!
Chorando muito…Só os que tem na alma os propósitos e a dignidade de Lula podem chorar como ele e com ele.
Que texto bonito.