É verdade que ordem judicial não deve ser discutida, mas sim cumprida?

Ilustração sobre foto: ONU/Jean-Marc Ferré

O advogado e mestre em relações internacionais, Fábio Balestro Peixoto*, respondeu com clareza às principais questões acerca da decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU. O comunicado determina que o governo brasileiro garanta os direitos políticos e eleitorais do ex-presidente Lula no pleito de 2018.

Reproduzimos a matéria originalmente publicada no Sul21.

Sobre a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU (por Fábio Balestro Floriano)

A decisão é de cumprimento obrigatório?

Não se deixem enganar pelo linguajar diplomático da comunicação, que fala em ‘recomendação’ e outros termos suaves: a decisão é de cumprimento obrigatório. No momento que foi ratificado o Protocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos – Decreto nº 311/2009, as decisões do Comitê passaram a ser vinculantes. “Requested” é a linguagem diplomática. A obrigação jurídica é a mesma. O linguajar é o mesmo do art. 25 do regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que fala em ‘solicitar’) e do Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.136/2002) (o qual também fala em ‘recomendação’) – que condenou o Brasil no caso Aline Pimentel com a comunicação nº 17/2008 e teve a decisão seguida à risca.

Mas e a soberania nacional?

O Brasil, no exercício de sua soberania, independentemente, decidiu aderir ao Protocolo Adicional ao Pacto de Direitos Civis e Políticos em 1992 e ratificou (confirmou) essa decisão em 2009, no Decreto 311. A partir daí, as decisões exaradas pelo Comitê por fatos ocorridos a partir de 2009 são de cumprimento obrigatório pelo Estado. O Brasil pode, se quiser, denunciar o tratado – o que equivale a retirar-se dele. É o que a Venezuela fez em 2012 em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos. As decisões tomadas antes da denúncia, entretanto, continuam valendo. E essa é uma postura infantil, para dizer o mínimo – do tipo ‘concordei com as regras do jogo, mas como perdi não concordo e não brinco mais.’ Aliás, nunca é demais frisar: é possível a um país aderir ao tratado de Direitos Humanos e não ao Protocolo Facultativo, que permite a avaliação de casos individuais. O Brasil sempre se vangloriou de ser um dos países que mais assinou tratados de Direitos Humanos. O problema é que, quando se assumem esses compromissos, estamos sujeitos a cumpri-los. Não é diferente agora.

Quem, afinal, emitiu a decisão?

Todos os tratados de Direitos Humanos do Sistema ONU possuem um Protocolo Facultativo que permite reclamações individuais. Em virtude desse protocolo existe um comitê permanente de especialistas que analisa os casos um por um. No caso do Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, esse comitê é o chamado Comitê de Direitos Humanos, que integra o sistema ONU de monitoramento de tratados. Então as desqualificações que estão havendo de que seria “uma decisão de especialistas e não da ONU” não são válidas. Elas são de um comitê de especialistas criado pelo organismo justamente para analisar denúncias individuais de violações ao Pacto de Direitos Civis e Políticos e portanto, embora impreciso, não é errado dizer que “são da ONU.” A explicação ao final da nota quer dizer apenas que o Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos entregou a comunicação à representação brasileira, mas ela foi emitida pelo Comitê e não por eles – o que em nada a invalida.

A comunicação fala em “interim measures”. Isso quer dizer que não é pra valer?

“Interim measures” são medidas cautelares, ou provisórias – idênticas às tomadas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Belo Monte em 2011 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do presídio Urso Branco em 2002, assim como em tantos outros casos de violações de Direitos Humanos no qual a inação deixa direitos sob ameaça. E, exatamente como no direito interno, cautelares devem ser cumpridas até que saia uma decisão final. O objetivo disso é evitar que um direito da vítima sofra uma lesão irreparável. E, nesse caso, importa ainda frisar que a defesa de Lula fez três pedidos: liberdade, direito de reunião – seja com a coligação ou para dar entrevistas – e o direito de concorrer. O Comitê disse ‘não’ ao primeiro pedido e ‘sim’ aos dois últimos.

Afinal, constataram violação de direitos no caso do Lula?

Sim e não. Ele quer dizer que foi achada uma possível restrição a direitos civis e políticos segundo o descrito no Pacto. O mérito dessa restrição (que pode ser válida juridicamente, como no caso da restrição de liberdade a apenado com trânsito em julgado) só vai ser decidido no futuro, mas até lá, provisoriamente e para evitar que haja lesão irreparável de direitos no caso de ser considerada inválida a restrição, deve-se garantir o direito de Lula concorrer e de dar entrevistas e reunir-se com membros de sua coligação.

*  Fábio Balestro Floriano é advogado, Mestre em Relações Internacionais (UFRGS), especialista no Estudo das Instituições Ocidentais (University of Notre Dame) e Doutorando em Direito (USP). Atuou defendendo o Estado brasileiro em cortes e fóruns internacionais entre os anos de 2011 e 2012, e continua atuando em casos junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Notas
1 Matéria originalmente publicada em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2018/08/sobre-a-decisao-do-comite-de-direitos-humanos-da-onu-por-fabio-balestro-floriano/
2 Essa matéria recebeu o selo 021-2018 do Observatório do Judiciário.
3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.

 

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