Partidos políticos, antirracistas na prática, podem beneficiar candidaturas negras a partir de agora
Agosto foi marcado por uma vitória histórica para negros e negras que pretendem ocupar cargos públicos na política do país. O conservador Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu que o dinheiro do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo disponível para candidatos em rádios e na TVs deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar nas disputas eleitorais.
Só que num país que convive, há séculos, com o racismo estrutural colado em sua história, a decisão passa a valer somente a partir das eleições de 2022. Para quem ainda não entendeu o que aconteceu, a luta para que essa determinação fosse alcançada tem origem em passos que vem de longe e pode, de fato, se respeitada pelos partidos que se declaram, de fato, antirracistas na prática, transformar as disputas eleitorais pelo país a partir desse ano. A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) iniciou uma consulta à corte, em conjunto com a ONG EDUCAFRO.
Na prática, o TSE foi questionado sobre a possibilidade de parte do financiamento que já é hoje, embora ainda bastante desproporcional, mesmo garantido por legislação, destinado às candidaturas femininas, pudesse ser então garantido para candidatas negras. Questionaram também sobre a reserva de vagas para a propaganda eleitoral. A porcentagem mínima definida para a distribuição do Fundo ficou definida em 30%.
Tarcisio Vieira de Carvalho Neto foi o único Ministro que deu voto contrário à proposta, por entender, que cabe ao Legislativo tratar dos questionamentos.
Ainda sobre a decisão não valer já para 2020, que mesmo em meio à pandemia, tem eleições mantidas e que serão realizadas em 15 de novembro, a justificativa foi baseada no princípio de anualidade, ou seja, o de não poder haver mudanças eleitorais, com menos de um ano, para a data do próximo pleito.
Mesmo com votos baseados em argumentos e reconhecimentos dos problemas graves de racismo que temos no Brasil, com o uso inclusive, da expressão “racismo estrutural”, a decisão de implementação somente para 2022, esqueceu de ser antirracista a partir de já, deixando de aproveitar para efetivamente fazer essa reparação histórica a população negra.
Nas três últimas eleições (2014, 2016 e 2018) o número de candidaturas brancas foi superior a 50% em relação a de qualquer outro recorte racial. Parte de um processo histórico de baixa representatividade negra em cargos eletivos, por exemplo.
Em 2018, o Congresso Nacional teve uma taxa maior que 45% de renovação, a maior da desde a democratização, mas novamente, com pouco crescimento de congressistas negros .
![POR QUE A DECISÃO DO TSE PARA CANDIDATURAS NEGRAS É HISTÓRICA E AO MESMO TEMPO INCOERENTE?](http://jornalistaslivres.org/wp-content/uploads/2020/09/WhatsApp-Image-2020-09-01-at-18.04.22.jpeg)
Pensando nisso, a deputada Benedita da Silva propôs um Projeto de Lei proposto na Câmara Federal que prevê um número mínimo de vagas preenchidas, em partidos, proporcionalmente ou igual à de negros e pardos na população de cada estado, de acordo com o últimos dados do IBGE. O mesmo PL propõe que 30% do Fundo Especial e do Fundo Partidário sejam alocados a cada partido e, que em pleitos majoritários e proporcionais, os fundos sejam alocados para candidaturas de mulheres e distribuídos igualmente, sendo 50% mulheres brancas e 50% pretas e pardas.
JOVENS E PRETOS, REALIDADES E INCOERÊNCIAS
Para falar sobre o assunto e discutir os efeitos da decisão do TSE, ouvimos dois jovens negros que constroem, em partidos diferentes, uma luta comum: o professor Douglas Belchior, que em 2018 foi candidato a deputado federal pelo PSOL/SP, e a advogada Tamires Sampaio, atual pré-candidata a vereadora pelo PT, na cidade de São Paulo. Ambos militantes históricos com referenciamento em passos que vem realmente de longe.
![POR QUE A DECISÃO DO TSE PARA CANDIDATURAS NEGRAS É HISTÓRICA E AO MESMO TEMPO INCOERENTE?](http://jornalistaslivres.org/wp-content/uploads/2020/09/WhatsApp-Image-2020-09-01-at-18.08.59-300x170.jpeg)
Para Belchior, sempre houve injustiça quanto a proporcionalidade:
“a decisão do TSE é uma vitória do movimento negro, uma vitória da luta histórica do movimento, de lideranças negras, que sempre reclamaram condições para conseguir emplacar mandatos de lideranças negros na política. E os partidos sempre foram o impedimento. É preciso lembrar e refletir sobre isso. Os partidos enquanto instituições num Brasil, estruturalmente racista, também reproduziram racismo nas suas relações internas e escolhas de prioridade. Isso sempre refletiu na priorização de recursos, de tempo de TV, de maneira que quando o TSE faz a reflexão e toma a decisão de estar do lado certo da história, como disse o Barroso, sem dúvida, temos um resultado a ser comemorado. Antes tarde, do que nunca”.
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Tamires Sampaio considera a decisão como antirracista:
“É uma grande vitória construída a partir da consulta de uma deputada federal negra, a Benedita da Silva, e que teve como reforço a campanha das entidades do movimento negro, que significa a busca real por eleições antirracistas e aprovação da proporcionalidade da distribuição do fundo. A gente sabe que, mesmo nos partidos de esquerda, as candidaturas negras ainda recebem pouca estrutura. Ter uma decisão do TSE falando que é preciso ter essa proporcionalidade, tanto no que se refere ao fundo, tanto quanto no que se refere ao tempo [de propaganda] é fundamental. É um grande passo para o aumento da representatividade. Mas ao mesmo tempo eu acho que, agora, como isso só passa a valer em 2022, temos que brigar para o Projeto de Lei da Benedita ser aprovado no Congresso. A proporcionalidade precisa estar relacionada, para mim, na proporcionalidade de negros das cidades. Eu tenho um pouco de receio dos partidos, condicionados a isso, não darem espaço para as candidaturas negras.”
Para Douglas, a decisão embora vitoriosa, também se mostra incoerente:
“aprovar e reconhecer a importância histórica da mudança, mas não impor isso já nessa eleição [municipais], é um equívoco grave e inclusive chega a ser incoerente, já que se a análise que o TSE fez, da importância da mudança, da correção da justiça histórica, é tão importante assim, ela deveria sobrepor a importância da regra temporal, que que pede que qualquer mudança aconteça até um ano antes da eleição. Com essa decisão de não impor desde agora essa regra, o TSE devolve os partidos a autonomia e a decisão política de implementar, ou não, desde já, o que já foi avaliado pelo TSE. É importante lembrar também que a pressão da Coalizão Negra por Direitos, do movimento negro como um todo e da Uneafro vai a partior de já para cima dos partidos afim exigir que pessoas negras que disputam as eleições desse ano já sejam beneficiadas.”
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Tamires nos disse ainda, que mesmo em partidos de esquerda há espaços que reproduzem relações sociais e institucionais do racismo estrutural
“Há espaços que moldam o papel do negro, na sociedade, como um todo na prática da subalternidade e não dos espaços de poder. A ocupação de negros na política, em cargos eletivos ou espaços de decisão nos próprios partidos, promove uma transformação que muitas pessoas não querem e não topam. Mesmo que seja de esquerda, porque os brancos de esquerda se privilegiam com a branquitude, também fazem parte desse cenário de privilégios baseado na exclusão e violência contra a população negra. Quando a gente fala, sempre, que não basta não ser racista, é necessário ser antirracista, é muito relacionado a isso. Não ser racista em abstrato, sem ter ações políticas que provoquem a realidade é deixar o cenário como está”.
DENÚNCIA E DIREITOS HUMANOS
Douglas Belchior que denunciou, em sua campanha de 2018, a preferência partidária por candidaturas brancas concorda com Tamires:
“a crítica que o movimento negro faz, o apontamento e a cobrança, é em relação ao campo progressista, ao campo dos Direitos Humanos. Se querem discutir Direitos Humanos no Brasil não podem ficar no marcador da branquitude, não podem reproduzir a ideia, de que, historicamente no Brasil, seres humanos são as pessoas brancas. E sempre foi esse o marcador no que diz respeito a direitos gerais. Os partidos reproduzem isso. Historicamente há negação, boicote e sabotagem de candidaturas negras, nos partidos de esquerda há muitos anos. Abadia, Gonzales, Hélio Santos sofreram com isso. Uma boa pergunta a ser feita é quanto o Brasil perdeu pelo fato de lideranças do movimento negro, das organizações de base do movimento negro, não terem ocupado espaço na política nacional? São pessoas muito capazes, brilhantes e negras que não tiveram espaço para exercer o seu potencial e contribuir para o seu próprio país. O PSOL é mais um partido que reproduziu isso, que continua reproduzindo, inclusive, contestando candidaturas negras de base, como acontece no Rio de Janeiro com a Taís. Pelo que eu soube, o diretório nacional que acabou garantindo a candidatura dela. Mas o fato do PSOL ter polemizado e impedido, denuncia a característica burguesa, pequeno burguesa, elitista de um partido de esquerda que traz as características que são próprias da esquerda brasileira, majoritariamente masculina e elitista, preconceituosa e racista. Esses elementos atravessam, inclusive o campo dos Direitos Humanos, instituições do campo da esquerda e partidos e esses devem receber a crítica com tranquilidade e atuar para corrigir erros e não criminalizar aqueles que denunciam, como foi o que aconteceu comigo em São Paulo”.
REFERÊNCIAS NEGRAS NA POLÍTICA
Mesmo antes dessa decisão já ocuparam ou ocupam espaços de poder na política, algumas poucas lideranças negras: a vereadora executada em 2018, no RJ, Marielle Franco ou a deputada Erica Malunguinho (PSOL-SP), são algumas referências importantes, mas ainda temos uma história muito insuficiente quanto o tema é a ocupação dos parlamentos por negros no país. “Mas, a partir de nossas referências, quando a gente ‘se vê’ em algum espaço, passamos a saber que não só podemos ocupa-lo como devemos ocupá-lo e transformá-lo. A Benedita da Silva, Vincentinho, Orlando Silva e a Leci Brandao, por exemplo, são outras grandes referências de parlamentares negros e negras que fazem parte de um processo de transformação e que abrirá caminho para que eu e muitas pessoas negras possam também ocupar tudo” lembra Tamires.
E mesmo em um cenário com mais candidaturas negras é importante que elas sejam bem trabalhadas, explica Douglas
“queremos que essa política beneficie e fortaleça candidaturas orgânicas do movimento negro, candidaturas que têm compromisso com a luta histórica do movimento negro e reivindicações de luta contra o racismo e luta por reparação histórica. Ou seja, nós vamos trabalhar e queremos que os partidos, sobretudo os partidos progressistas, fortaleçam lideranças orgânicas forjadas e comprometidas com o movimento negro, ou seja, a nossa luta não é por uma representação vazia. A luta é por uma real e verdadeira democracia racial que a gente nunca viveu. E na esquerda, que as candidaturas do campo não sejam meros representantes do interesse dos grupos que são hegemônicos, da branquitude. Já sabemos que a grande parte das candidaturas e os partidos que vão lançar candidaturas negras tem muito mais compromisso com grupos partidários de direção e hegemonia branca, do que o movimento negro. Nosso trabalho vai ser pra energizar candidaturas negras comprometidas”
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PARA SABER MAIS
O ministro e presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, afirmou em seu voto “hoje, afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo e que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”. Barroso, que foi o relator da matéria votada no plenário reconheceu que essa medida veio com “atraso”.
Segundo estudo do IBGE (Instituto Brasileira de Geografia e Estatística) a relação entre candidatos e candidaturas, na ultima eleição (2018), e a proporção de negros ou pardos nos estados acaba por ser afetada pela renda dos candidatos.
No estudo é afirmado que “há uma proporção maior de candidaturas de pessoas pretas ou pardas para os cargos de deputado federal (41,8%), deputado estadual (49,6%) e vereadores (48,7%) do que candidatos com esse perfil efetivamente eleitos” ou seja, mesmo quando se tem candidaturas de pessoas negras ou pardas ainda é difícil a eleição. Isso, explica o estudo, pode ser afetado, entre outras coisas, pela “discrepância entre a receita das candidaturas de pessoas brancas e a de pessoas pretas ou pardas. Com efeito, enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal dispuseram de receita igual ou superior a R$ 1 milhão, entre as candidaturas de pessoas pretas ou pardas, apenas 2,7% contaram com pelo menos esse valor. Visto de outra forma, entre as candidaturas que dispuseram de receita igual ou superior a R$ 1 milhão, apenas 16,2% eram de pessoas pretas ou pardas”.
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