O que mais me preocupa nessas eleições é o domínio da irracionalidade diante de uma escolha tão importante. E para que essa irracionalidade se concretizasse, o ódio foi vendido em massa na cara da população, que consome todos os dias um excesso de espelho do modelo americano imperialista, que há muito nos subjuga.
Vivemos no país da melhor música do mundo, onde se ouve de norte a sul música americana em todas as lojas. Nas boates, nas salas de espera, nas festas. Uma chatice. Uma espécie de estrangeirisse em todos os lugares. É a trilha oficial da academia, quem aguenta? E junto com isso vem o lixo dos games de guerra, a indução à violência em todos os canais abertos a toda pobre inocente criancinha brasileira.
A educação pela superação para vencer o outro, ser melhor do que o outro, ser o único, avança a cada dia. “Colégio São Sicrano, seu filho em primeiro lugar no vestibular!” Acontece que esse vencedor terá 799 inimigos ali, porque são 800 alunos. O que é isso, o tempo inteiro melhor do que o outro? A cultura da vantagem: pessoas compram o que não querem por causa da vantagem e começam a consumir o que escolheram só por causa da vantagem. “Comprei cinco latas de salsicha, estava na promoção”. Mas você gosta? “Agora eu gosto, né? Saio ganhando”. É tudo meio torto.
O desprezo por si, pelo que se come, o desprezo pelo outro que é potencialmente aquele que eu vou vencer, e por isso é que se vende nos EUA armamento a todo momento e o povo dispõe de balas, de armas de fogo expostas e vendidas ao lado das balas de chupar no cinema. Socorro! Não se pode vender arma sem vender o ódio. Estamos experimentando uma civilidade que não quer pensar além da capa, e tudo que lhe é contrário não existe, é mentira, é fake news. Um mundo irreal, onde é preciso criar uma paranoia para justificá-lo.
Estamos experimentando o resultado de uma negligência e uma irresponsabilidade que o nosso jornalismo sofreu nos últimos tempos. Em especial na história mais recente do país, onde há omissão dos muitos dos que narram a informação e deixaram-se contaminar pela teoria e prática da polarização política do país, pela uniformidade da informação, e de nos deixar ausentes de uma avaliação crítica do nosso tempo com mais independência.
Parece que a população está com raiva, parece que fomos mordidos por uns cachorros bravos. Peraí, mas ao mesmo tempo, as mulheres se reuniram em 37 cidades brasileiras e não se registrou nenhuma briga. Não estou puxando sardinha para o nosso lado não, meninas. Mas pode fazer sentido: à mulher foi dada uma educação onde a sensibilidade, o gosto pelas coisas pequenas e delicadas e, principalmente, pelas tarefas de doação, como amamentar, carregar criança dentro da barriga, cozinhar com ela no colo, cuidar do outro, coisa que toda mulher aprende e o homem não. Talvez culturalmente tenhamos mesmo a boa possibilidade de produzir a paz.
Por isso também agora pulsa em mim uma certeza de que, ainda que a critiquemos, a democracia ainda é o melhor sistema político encontrado para respeitar a diversidade dos seres e a liberdade do pensamento. É ela que quero garantir nesse primeiro turno. É ela que está ameaçada. O projeto de país que me atrai não pode ser mais excludente do que esse já é, nem mais homicida e violento. A cidadania avançou, nós caminhamos para respeitar o jeito de ser de cada um, sem racismo, sem homofobia, sem tudo o que não presta, tudo que vem pela via da intolerância.
No país que eu quero o Estado não é grande nem pequeno. É do tamanho do seu povo. Estado mínimo para mim é povo mínimo. Eu pago meus impostos e quero receber por ele: saúde, segurança, educação e cultura. Simples assim. E mais, no meu sonho, os bens de um tempo devem pertencer a todos daquela comunidade, no caso a grande comunidade brasileira. Não quero mais do só olhar para o MEU próprio umbigo, a segurança do MEU condomínio, do colégio do MEU filho, o seguro do MEU carro. Esse negócio de pouca gente ter tudo e muita gente ter pouco ou nada não parece que nos levará a alguma espécie de paz.
Fui criada na ditadura, a infância passei sob ela. E não era bonito ser criança e ver a tensão dos pais com seus filhos estudantes adolescentes em perigo, cantores sendo presos, intelectuais silenciados. A impressão que se tinha, mais tarde confirmei, era de que os presos eram inocentes. Muita gente morreu, muita gente foi torturada. E o Brasil paga até hoje um custo alto por esta interrupção muito violenta num país de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, para citar dois. A ditadura não foi uma revolução, nem um movimento. A ditadura foi, sobretudo, um misto de ignorância e covardia. Foi sério. As cabeças cortadas, os exílios que foram impostos a inteligentes brasileiros, tudo isso faz falta no país que hoje somos.