De azul ou de rosa, crianças negras na linha de tiro do Estado genocida

Ilustração Joana Brasileiro
Qualquer pessoa que tenha perdido uma criança na família sabe que não existe nada comparável à dor dos pais. Nada que seja equivalente à dor sentida pela mãe, que pode também ser a tia, a avó que cria, quase sempre uma mulher. Por isso não vou falar de dor, reservo às mães e aos pais essa prerrogativa.
A gente sente ódio, impotência, medo, fracasso como ser humano. A gente pode chorar em solidariedade às mães e pais das crianças mortas na guerra às pessoas negras, faveladas e de periferia. A gente deve gritar porque a dor de perdas tão brutais cala a voz de quem gerou ou de quem cria essas crianças assassinadas. Por isso devoto tanto respeito e admiração às Mães de Maio e a outros coletivos de mães que, a despeito da dor imensurável da perda de filhos para a violência de Estado, conseguem erguer a voz para que não sejam esquecidos.
O que sinto é um torpor que de alguma forma venço pela escrita. À revelia da letargia, ligo o computador, mas ao invés de abrir um arquivo, clico no ícone que desliga a máquina. Mesmo que o inconsciente não queira, preciso me reconectar a mais uma das inumeráveis e imensuráveis perdas dessa gente miúda que não é morta por acidente, por incidente colateral da guerra, mas como alvo de guerra.
As mortes não doem igualmente, não repercutem da mesma forma e o assassinato de Ágatha Félix, uma menina de oito anos, no Complexo do Alemão, dentro do transporte da favela, acompanhada pela mãe, nos deixa em estado de desamparo absoluto. Ela estava protegida pela mãe – lembrem-se de que criamos a ilusão de que nos momentos que somos cuidados pela mãe, nada de mal nos acontecerá. Não foi assim, o tiro de fuzil do Estado não deu tempo para a mãe jogar-se sobre o corpo da filha e talvez receber o tiro em seu lugar.
Entendem porque não há nada que se aproxime da dor sentida pela mãe dessa criança?
Parece que a matança dos meninos negros já não nos sensibiliza tanto, talvez, naquele fundo da gente, bem escondido, procuremos explicações para o inexplicável, por exemplo, uma vida dupla, de manhã na escola e à tarde no tráfico; ou, más companhias; ou, o fascínio exercido pela figura do bandido todo-poderoso nos pequenos.
O certo é que nos acostumamos a ver meninos negros como miniaturas de homens negros, alvo prioritário da perseguição racista. Lembro-me de um cortejo de Congada que acompanhei em Belo Horizonte e um garotinho negro de quatro anos no máximo, evoluía graciosamente com chocalhos nos pés. Uma adolescente branca à minha frente o observava, tão encantada quanto eu, quando chamou a atenção da mãe para o menino, ouviu este comentário como resposta: “bonitinho mesmo, pena que cresce”.
Mas, dessa vez, mataram uma menina que “fazia inglês e balé”, como esbravejou o avô em desespero, acompanhada da mãe, dentro do transporte privado que serve à favela. Não dá para dizer que ela estava “solta” na rua, brincando. Não dá para criminaliza-la como suposta “amante” de traficante, como insinuam sobre as meninas de onze, doze anos, também assassinadas por balas de direção certa. Ágatha Félix era o ideal de criança de oito anos: saudável, bem cuidada e protegida pela família, estudiosa, alegre. Uma menina que se vestia de Mulher-maravilha, devia ter planos de poder e força.
Alguém disse que Ágatha não teve tempo de ser Marielle. O velho e bom Steve Biko nos lembra que estamos por nossa própria conta, como sempre estivemos.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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