DANIEL HÖFLING: Manifesto anti-barbárie (remédios contra a crise)

Manifesto anti-barbárie: ampliar as transferências de renda direta contra o caos
Manifesto anti-barbárie: ampliar as transferências de renda direta contra o caos

A inadequação de Bolsonaro ao posto presidencial já era evidente muito antes das eleições. Entretanto, o advento do COVID-19 explicitou a total incapacidade do atual chefe de Estado para tomar as medidas necessárias ao combate diligente às agruras ainda em estágio embrionário, que avassalarão a economia e a sociedade brasileiras em breve. A barbárie está por vir e, dada a incompetência de Bolsonaro e de parte considerável de sua equipe, cabe à sociedade propor e exigir determinadas medidas antes que o caos se instale por completo em nosso país. A primeira medida é, obrigatoriamente, abandonar a obsessão da equipe econômica pela austeridade e injetar recursos na economia como vêm fazendo países mais ricos e mais pobres do que o Brasil.

É preciso ter ciência de que os efeitos deletérios do COVID-19 no Brasil serão muito maiores do que nas demais nações desenvolvidas. Tanto do ponto de vista econômico quanto social e político, nossas condições são muito piores do que as dos países desenvolvidos e mesmo da China. Nossa capacidade de enfrentamento do problema como um todo (econômico e sanitário) é muito mais limitada e frágil e,
portanto, precisamos urgentemente tomar atitudes com o objetivo de mitigar o porvir. Da mesma maneira que as autoridades acertaram ao antecipar medidas de isolamento e de fechamento de estabelecimentos não essenciais, as esferas governamentais precisam agora canalizar esforços para que o Brasil não se enterre economicamente. Porque, se isso acontecer, num país extremamente desigual e com elevado nível de pobreza como o nosso, estaremos a um passo da guerra de todos contra todos.

A economia brasileira está regredindo há cinco anos. Acrescido a isso, temos outros problemas estruturais:

1) Diminuta capacidade de coordenação entre as esferas governamentais (municipal, estadual e federal);

2) Insuficiente infraestrutura sanitária para atendimento e combate ao COVID-19;

3) Precárias condições de infraestrutura urbana (habitacionais, transporte, comunicação);

4) Mercado de trabalho altamente informal, com baixos salários e direitos trabalhistas em desconstrução permanente;

5) Ausência de um Estado de Bem-Estar Social. É importante frisar que os problemas supracitados não existem ou apresentam-se muito mais brandos nos países desenvolvidos e na China do que no Brasil. Nosso ponto de partida no enfrentamento da crise é muito pior. Somente duas coisas nos favorecem: o tempo e a experiência dos demais países.

O Parlamento Europeu anunciou a suspensão das regras de disciplina orçamentária na União Europeia para que seus países estimulem o “quanto for necessário” suas economias. Os Estados Unidos anunciaram que enviarão um cheque de US$ 3.000,00 aos necessitados. A Venezuela anunciou hoje que pagará salários aos trabalhadores por 6 meses para que fiquem em suas casas. El Salvador anunciou a
suspensão do pagamento das contas de energia, luz, telefone, internet, aluguel e um pacote de créditos subsidiados. Por sua vez, na completa contramão, o governo Bolsonaro toma medidas paliativas e ineficazes como a antecipação de 50% do 13º para aposentados e
pensionistas ou a natimorta MP 927. Simplesmente nosso governo faz o oposto dos demais. Todos estão tomando medidas emergenciais consubstanciadas na transferência direta de renda aos necessitados para que suas economias não mergulhem numa recessão de proporções inimagináveis. Já Bolsonaro e sua equipe tomam medidas para nos precipitar ao buraco. Nós somos hoje o (-1) do mundo. Não sem razão Ian Bremmer, presidente do Eurasia Group –consultoria especializada na análise de riscos políticos globais–, classificou Bolsonaro como o “líder mais ineficaz” do planeta no combate ao COVID-19.

Quando a crise econômica –fruto da regressão econômica anterior somada aos efeitos do COVID-19– realmente chegar, teremos milhões de pessoas jogadas na rua sem qualquer ocupação ou renda. Aos 13 milhões que estavam desocupados antes do COVID-19, acrescentar-se-ão muitos outros milhões. O número de desamparados será imensurável. Não adianta nem tentarmos quantificá-los. Entretanto, existem projeções que apontam para 50 milhões de desempregados nos próximos meses –quase metade da população economicamente ativa do país. Os efeitos no PIB e na renda serão desastrosos.

Parte considerável dos ocupados encontra-se na construção civil, no varejo, nos bares e restaurantes e no comércio ambulante. Todas estas atividades sofrerão um baque tremendo a partir desta semana quando se intensificarão, corretamente, as paralisações e fechamentos. Milhões de pessoas ficarão abandonadas. O impacto é inimaginável; suas consequências também. Saques, latrocínios, invasões e destruição estarão na ordem do dia! A ausência de recursos para o mínimo da sobrevivência em meio ao espraiamento viral e ao isolamento doméstico levará justificadamente qualquer mãe ou pai a ações
desesperadas. É bom lembrar que morrem mais de 60 mil pessoas por ano assassinadas no Brasil, sem o COVID-19. Esse número tornar-se-á irrisório quando o caos se instalar.

Há no horizonte a possibilidade real de uma desorganização social generalizada no Brasil, na qual ninguém ganhará e todos perderão! Neste sentido, este Manifesto exige medidas emergenciais concretas e factíveis por parte do governo para que uma guerra civil não se instale no país.

É preciso direcionar recursos, via transferência direta, para os mais afetados pela crise! Quem serão estes? Os pobres, os trabalhadores informais dos setores mais afetados e os donos dos pequenos negócios dos setores diretamente impactados, que não terão condições de sobreviver sem sua receita ordinária. O foco da ação deve ser esse grupo de indivíduos. Quatro medidas necessárias, ainda que insuficientes, devem ser tomadas:

1) Pagamento de 1 salário mínimo a todos os desempregados por seis meses;

2) Todos os desempregados e donos de pequenos negócios afetados não devem pagar contas de energia, telefone, luz e água até outubro de 2020. Após esta data, o acumulado destes 6 meses será diluído nas contas posteriores em 24 vezes sem juros;

3) Crédito direcionado, sem juros, com início de pagamento em outubro de 2020 e parcelado em 24 vezes para os pequenos negócios afetados;

4) Tabelamento do preço de custo para os produtos de primeira necessidade.

As medidas acima demandam, obviamente, o abandono da obsessão pelo teto de gastos. Outras ações são bem-vindas, como a elevação do imposto sobre grandes fortunas ou o incremento da taxação sobre os polpudos lucros bancários –bastante razoáveis quando constatamos que os milionários no Brasil são os que pagam menos impostos no mundo em sua categoria, ao passo que os lucros dos nossos bancos estão entre os mais elevados do planeta. É importante insistir: caso a austeridade não seja imediatamente rechaçada nos tornaremos o laboratório da luta pelas reformas em meio ao caos econômico e social. Seremos o único país na face da terra (redonda) a praticar tamanha
insensatez; a cobaia do corte de gastos públicos em meio à destruição social. E o resultado disso, num dos países mais desiguais do globo, com os maiores níveis de pobreza e riqueza existentes, será definitivamente violento. Como disse o presidente de El Salvador ao anunciar suas medidas emergenciais: “A única cura para essa crise é a solidariedade”.

Precisamos da “solidariedade” fiscal do Estado brasileiro e da “solidariedade” tributária dos ultra-ricos no Brasil. É verdade que isso nunca aconteceu antes. Mas uma crise profunda de consequências catastróficas como essa também não.

Daniel de Mattos Höfling

é doutor em Economia

pela Unicamp

(Universidade Estadual de Campinas)

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