Cloroquina ou tubaína?
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ARTIGO
Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade
Federal de Ouro Preto em Mariana*
Um perigoso processo de desmonte começou pela destruição da autoridade do professor, do historiador, do jornalista, e, agora, atinge a medicina e a saúde pública
Quarta-feira, 19, morreram mais de mil pessoas em decorrência da
covid-19. Uma verdadeira catástrofe! Indiferente, ou mesmo para ocultar aos fatos,
Bolsonaro atualizou a disputa entre coxinhas e mortadelas para cloroquinas e
tubaínas. A que ponto chegamos! Como entender o que está por trás dessa nova
agitação presidencial?
“Você não é obrigado a tomar cloroquina”. E, em seguida, lançou a seguinte piada:
“Quem é de esquerda deveria tomar tubaína e não cloroquina”. Nos últimos dias, os
bolsonaristas têm divulgado diversos vídeos sobre o sucesso do uso da
hidroxicloroquina em um hospital na cidade de Floriano, no Piauí. A ministra
Damares, por exemplo, foi à cidade, no último dia 14, para ver de perto “o milagre
da cloroquina”.
Acreditamos que compreender a fórmula de “sucesso” da Fox News e da
Jovem Pan News pode nos ajudar a entender o chão de realidade no qual está
assentado esse suposto “milagre”, principalmente se considerarmos as últimas
declarações de Trump de que está fazendo uso do medicamento de forma
preventiva contra a Covid-19, bem como o movimento de Bolsonaro para mudar o
protocolo de uso da cloroquina.
Tudo isso tem como uma das consequências o aumento da pressão sobre os
médicos da rede pública para prescrever o remédio. Ao mesmo tempo, ocorre em
um momento em que mais pesquisas demonstram a ineficácia e os riscos da
cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.
Mas, infelizmente, vivemos em um país em que, já faz algum tempo, as
“convicções” valem mais que as provas… Algumas mudanças no interior das mídias
nos ajudam a entender a questão: parte delas, das mídias conservadoras, vivem de
uma cortina de fumaça, do argumento de que tudo tem dois lados, de que basta
apresentar os dois lados para que não haja viés. Mas, ora, os lados podem ser
muito mais que dois e, além disso, nem todo lado tem razão.
É como um estúdio de TV discutir o uso da cloroquina e colocar de um lado
uma autoridade pública de saúde e, de outro, uma subcelebridade do Youtube. Não
é um cenário, digamos assim, que contribui para a formação de opinião, mas
apenas para que cada lado da polarização política reforce suas crenças e desejos.
É este tipo de lógica, cada vez mais hegemônica, que explica o fato, que tem
ficado cada vez mais claro, das autoridades de saúde estarem perdendo o debate
relativo ao uso da cloroquina, apesar de estarem com a razão.
O caso Fox News, com F de fake
A transformação da Fox News em uma máquina de propaganda conservadora, capaz de pautar inclusive o Partido Republicano, tem sido exaustivamente estudada nos Estados Unidos. David Brock, em livro publicado em 2012, já havia descrito com detalhes essa transformação, que na época ele chamou de efeito Fox. Brock estava à frente, na época, da Media Matters for America, instituição cujo objetivo é monitorar as notícias falsas promovidas pela imprensa conservadora. No dia 19, o site trazia uma matéria que constava que o programa predileto de Trump, o Fox & Friends, havia recebido 49 pessoas para discutir o coronavírus nos últimos quatro dias, e apenas um era especialista médico.
Em seu livro, Brock narra a participação de um dos grandes gerentes da Fox
em Washington, Bill Sammon, em seminário organizado em um cruzeiro seis estrelas
da Luxury Liner. Cada casal teria pago entre 50 e 150 mil reais, em valores de hoje,
para participar do evento com influenciadores da direita estadunidense, muitos deles
jornalistas. Em sua fala, o funcionário da Fox revelava como no contexto da eleição
de Barack Obama ele havia conscientemente distorcido um episódio da campanha
para promover a narrativa de que Obama seria um simpatizante do socialismo. Para
uma audiência conservadora, o jornalista admitia que a manipulação dos fatos era
uma atividade regular de seu trabalho na Fox News.
O que torna a questão ainda mais grave é o fato de que não se tratava de um
episódio isolado, mas uma ação coordenada por Roger Ailes, presidente e chefe do
canal Fox desde 1996. Ailes, falecido em 2017, foi uma personalidade do mundo da
comunicação que desde a polêmica eleição de Nixon, em 1968, trabalhou para
diversos presidentes e candidatos do partido republicano. Já nos anos 70 Ailes tinha
como estratégia a criação de falsas notícias ou de formatos de TV que simulavam
programas noticiosos como estratégia de marketing político.
Na última semana da eleição de 2008, Roger Ailes produziu um roteiro a
partir da leitura de uma autobiografia de Obama publicada em 1995. Usando
informações que já eram de conhecimento público, mas que descontextualizadas e
vendidas como furos jornalísticos, funcionavam como propaganda negativa para
atingir a campanha do candidato democrata. Que esse tipo de procedimento seja
feito por publicitários contratados por partidos é algo “normal”, que isso seja
produzido pelo chefe de jornalismo de um canal de TV especializado em jornalismo
indicava uma transformação substantiva nas fronteiras entre a produção da notícia e
a guerra política.
Quando questionada acerca da parcialidade de sua programação, a Fox
afirma que manteria separado o jornalismo dos programas de opinião e comentário.
Naturalmente essa separação não existe quando o próprio diretor geral do canal
coordena uma ação política direta a ser operada por sua equipe de jornalismo. A
vitória de Obama em 2008 foi recebida como um verdadeiro apocalipse por figuras
como Ailes, que a partir de então vão trabalhar para inviabilizar a agenda do
presidente democrata. Entre 2009 e 2011, a quantidade de notícias falsas cuja
origem poderia ser atribuída à Fox News passou de 33% para 54%.
Mesmo alguns republicanos moderados começaram a perceber, antes da
eleição de Trump, que o excesso de polarização que a Fox News produzia nos
eleitores dificultava a negociação no Congresso com os democratas, e se
perguntavam, então, se a Fox News trabalhava para o partido ou se era o partido
que trabalhava para ela. De algum modo, o autor não poderia antecipar a ascensão
de Trump, mas certamente essa autonomização da máquina de propaganda foi
fundamental para quebrar o establishment do partido republicano. No Brasil, o
mesmo poderia ser dito com relação ao PSDB e a direita tradicional com a eleição
de Bolsonaro.
A atualização da Jovem Pan
No contexto norte-americano, a ascensão da Fox News como principal canal de TV a cabo noticioso dos Estados Unidos é um bom exemplo de como um canal de notícias se tornou um partido político.
Como a Jovem Pan atualiza o projeto Fox no Brasil? Isto é, de ser o principal canal por onde as distorções e as mentiras conservadoras fluem para outras mídias? Ainda nos faltam pesquisas para responder ou mesmo dimensionar essa hipótese, mas temos alguns fortes indícios.
A revolução Fox News, que hoje ameaça destruir o jornalismo corporativo, omeçou com um conceito muito simples: o de construir uma rede, com base no sucesso de programas de rádio, com comentaristas conservadores sem nenhum escrúpulo em recorrer à violência e à mentira para atender aos seus objetivos políticos e comerciais. Assim, em primeiro lugar, podemos dizer que a Jovem Pan usou e abusou desse modelo, em especial, no contexto das eleições de 2014 e durante o golpe de 2016.
Em outras palavras, como todos estamos imersos no ambiente noticioso em fluxo, muito daquilo em que acreditamos depende de como esse ambiente tem sido constituído. Assim, se nos Estados Unidos a Fox News se constrói enquanto força política, reagindo ao governo de Barack Obama, no Brasil o fenômeno análogo pode ser identificado na ascensão da Jovem Pan a partir do governo Dilma.
Isso significa que a Jovem Pan transformou o noticiário em entretenimento,
incorporando à sua grade programas como o Pânico, cuja agenda conservadora é
disfarçada em elementos anti-sistêmicos. Compreender a ascensão da Jovem Pan
e o papel que ela tem hoje na produção do universo paralelo do bolsonarismo é
fundamental, ainda mais se considerarmos que ela é a rede de rádio mais ouvida no
Brasil, com maior capilaridade em diversas capitais e no interior, que acabou
promovendo e colocando em sua folha de pagamento jovens e não tão jovens
articulistas da reação conservadora brasileira. Hoje, talvez, seja na Jovem Pan que
os protagonistas do governo bolsonaro, inclusive a facção olavista, encontram a sua
maior válvula de comunicação, sem grande enfrentamento crítico ou qualquer
vestígio de boas práticas jornalísticas.
Em entrevista no portal Brazil Journal, de setembro de 2019, o Tutinha,
Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, que herdou a empresa (Jovem Pan) de
seu pai, declarava: “Jornalismo é commodity. O que viraliza e gera audiência é
opinião,” “E a gente adora um pauzinho, gente se pegando de porrada”. A matéria
afirma, ainda, que, naquele momento, a rádio era líder de audiência no segmento
matutino, com cerca de 200 mil ouvintes por minuto.
A virada do negócio começou quando introduziram as transmissões das gravações dos programas de rádio para o Youtube, prática que começou com o programa Pânico, em 2002, e depois se expandiu para o show de horrores que são os seus programas, verdadeiros simulacros do ambiente jornalístico com toques de machismo, homofobia e combate ao “politicamente correto”. Uma mistura de
entretenimento e propaganda em que o produto vendido pode ser tanto um
refrigerante quanto as ideias de um charlatão como Olavo de Carvalho.
Na folha de pagamento da Jovem Pan – seguindo o modelo Fox News – se
misturam políticos fantasiados de comentaristas e jornalistas fantasiados de
ideólogos. É considerando esse modelo que já trabalharam para a rádio Reinaldo Azevedo, Marco Antônio Villa, Joice Hasselmann, Rodrigo Constantino, Augusto Nunes, Samy Dana, Caio Coppola, Felipe Moura, dentre outros. Este último foi diretor de jornalismo e apresentador entre 2017 e 2020. O que todos têm em comum é serem ou terem sido ícones da virada conservadora que ajudou a destruir a hegemonia petista na política nacional.
Além disso, os seus programas se tornaram salas de estar para agitadores de direita, como Olavo de Carvalho e a juventude do MBL. Outro dado que os estudos têm mostrado é que a maioria dos “intelectuais de direita” atua muito nas redes sociais, especialmente no Twitter. No entanto, os que possuem mais seguidores são aqueles que também atuam em programas de rádio e/ou TV e, sem dúvida alguma, a Jovem Pan é uma das suas principais vitrines.
Naturalmente, a empresa mantém alguns comentaristas à esquerda do espectro político, como Thaís Oyama, para manter a retórica da imparcialidade e do “dois ladismo”, como se todo e qualquer fato pudesse ser reduzido a isso. Como
argumentamos acima, o “dois ladismo” é uma cortina de fumaça fundamental para
sustentar a credibilidade do universo simulado que ajudam a construir.
Ao apostar na retórica do confronto e da violência, a Jovem Pan segue a
mesma cartilha da Fox News. Claro que o cenário brasileiro de mídia é um pouco
mais pulverizado que o estadunidense, afinal temos a Globo, a Bandeirantes, a
Record e, agora, a CNN Brasil, todos canais com forte presença no noticiário
televisivo e que surfam na segmentação do mercado das notícias que produzem,
mercado esse que é produzido pela polarização política.
A Jovem Pan lançou, no dia 1º de maio, a plataforma de streaming Panflix, que oferece conteúdo novo e ao vivo todos os dias e que está disponível para download em diversas agregadoras de conteúdo. No último mês (provavelmente devido à pandemia), a audiência aumentou nas plataformas de vídeo: 57 milhões. Recentemente, o grupo fez uma parceria com a Google para veicular, diariamente, notícias sobre o novo coronavírus.
Embora a plataforma só tenha estreado em maio, em 27 de janeiro o
programa Pânico ressurgiu, já no estúdio novo da Jovem Pan, preparado para a
Panflix. O convidado especial não foi ninguém mais ninguém menos que o então
ministro da Justiça, Sérgio Moro. Inclusive, como era de se esperar, a possibilidade
de Moro ser eleito em 2022 foi comentada no programa, ao que Moro respondeu
que apoiaria Bolsonaro, pois, esse sim, tem pretensões à reeleição. Já ele, Moro, é
só um ministro do atual governo e que apoia o seu presidente. Um dos
apresentadores diz que há boatos de que há muitos atritos entre Moro e Bolsonaro, ao
que Moro diz que não, mas ninguém acredita – e, ao fim, Emílio Surita diz que,
independentemente do que cada um quer, “a voz do povo é a voz de Deus”.
O que a trajetória da Fox e da Jovem Pan pode ensinar ao campo progressista?
O que estamos assistindo é a criação de um novo tipo de “jornalismo”, que se alimenta de um discurso “antissistema”, ao denunciar o suposto viés progressista da grande imprensa, e se coloca, assim, como um contrapeso conservador. Mas o problema não é a existência em si de um viés, de certo modo inevitável, nas questões humanas, mas, sim, a licença que a ideia da compensação acaba dando para todo o tipo de falsificação e manipulação das notícias para que se encaixem no universo da polarização política.
A busca pela audiência (ou pelo aumento no númerode seguidores), agora, se sobrepõe à checagem dos fatos, às boas práticas jornalísticas e mesmo à responsabilidade que esses agentes deveriam ter ao propagar informações cujos efeitos massivos são sabidamente nocivos à coletividade. Em síntese, o que queremos dizer é que esse tipo de “jornalismo” abre portas perigosas, como as que estamos assistindo e pela qual passou a ideia de
que basta tomar cloroquina que a pandemia estaria resolvida.
Ao ceder à lógica do entretenimento, dos likes, e da polarização, os canais de
notícias 24 horas se tornaram um dos focos da grande bolha de ignorância
orgulhosa que não para de crescer. Você pode agora simplesmente escolher qual
noticiário, qual jornalista, qual jornal se enquadra no seu gosto pessoal e em suas
crenças, as empresas de jornalismo cedem cada vez mais ao seu desejo, afinal,
você quem as financia, direta ou indiretamente. São essas certezas, estimuladas
por esses noticiários, que alimentam as convicções que fazem com que até os
médicos sejam obrigados, como estão sendo, a receitar remédios sem eficácia para
as pessoas que chegam aos seus consultórios cheias de convicções e de achismos.
Um processo que começou pelo questionamento da autoridade do professor, do
historiador, do jornalista, e que, agora, atinge a medicina e a saúde pública. Talvez
agora a sociedade desperte para os riscos da ignorância e do achismo como
bandeiras políticas.
O que fazer?
Como temos destacado nos últimos artigos, é necessário combater a indústria da desinformação nos seus vários níveis e mídias. Sem dúvida, um dos caminhos passa por apoiar a PL 1429/2020, que pretende Instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Isso é urgente, pois do presidente aos nossos amigos, sabemos que muitos têm se formado pela internet e pelo show de “notícias” de canais como Fox e Jovem Pan e suas relações espúrias com plataformas e milícias digitais.
Enquanto isso, as redes sociais nos lembram uma fala de Bolsonaro de 2017.
O presidente teria dito a frase enquanto defendia o uso de uma possível “pílula do
câncer”, para a qual ainda não haviam estudos científicos que comprovassem sua
eficácia: “Estive à frente para aprovar a fosfoetanolamina. Cura ou não cura, não
sei. Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar
ninguém. Mas apresentei, junto com mais alguns colegas, e aprovamos.”.
Perguntamos ao nosso amigo bolsonarista se ele tomará a cloroquina.
Resposta: “Eu não entendo vocês não, seus malucos comunistas. No início do ano eles
já tinham mandado retirar todas as cloroquinas da farmácia. Eu não sei quantos
artigos existem falando que a cloroquina não dá resultado. Mas, o que eu tenho
visto aqui é que tem mais artigos falando que funciona do que não funciona. Se eu
tivesse doente eu tomaria. Com a maior certeza. Eu não entendo é se pode usar e
em alguns casos funcionaram, por que esses deputados não deixam? Porque a
cloroquina custa 9 reais. Você acha que as grandes empresas farmacêuticas que
estão ganhando com a covid só vão perder. Um remédio de 9 reais para curar uma
pandemia e vocês não querem! Vocês, todo mundo, é manipulado pelas grandes
empresas. Tem gente que sarou com isso. Não funciona para quem não toma. Se
seu filho precisasse você não usaria? Ainda mais que tem um artigo que mostra que
pode funcionar. Vai ficar esperando cair do céu uma coisa que não existe? Fica
esperto. Contra o quê vocês estão lutando?”
Ele mandou também um vídeo contra a indústria farmacêutica, estrelado por
uma ativista norte-americana anti-vacina, Judy Mikovitz. Ele ainda afirmou: “Você
sabe quantas pessoas estão morrendo de outras coisas e os hospitais falam que é
para ganhar dinheiro?”
Enfim, por que a cloroquina é tão importante para Trump e Bolsonaro?
Para começar, é preciso deixar registrado que eles são os líderes de dois dos
três países mais infectados do mundo. Parte da resposta passa por entender a
penetração de canais como Fox News e a Jovem Pan. Nestes dois grandes países
seus líderes divergiram da OMS e de suas próprias autoridades de saúde, ainda
assim continuam no poder de forma mais ou menos estável e, se não estáveis,
apoiados por pelo menos um terço de sua população.
É um escândalo, mas é a realidade. E sabemos, não podemos confundir o
desejo com o diagnóstico. Há interesses comerciais na questão da cloroquina, bem
como perversidade em fazer pessoas voltarem a trabalhar, seguras de que há uma
cura, e morrerem em casa para demorarem a entrar nas estatísticas (se entrarem).
O “milagre da cloroquina” é, antes de tudo, uma fake news, uma simulação eficaz da
realidade, mais do que uma simples mentira. Essas simulações atendem a diversas
demandas e desejos, afinal, quem não quer uma cura milagrosa? Mas sua
exploração política tem como objetivo manter o auditório agitado e ativo, isto é,
garantir que a “pequena maioria” que dá suporte a esses genocidas permaneça
entretida e consumindo. O filho mais novo de Bolsonaro aguarda a sua boquinha na
próxima eleição.
A cloroquina é, assim, uma triste metáfora de como o regime de verdade, que sustentava as democracias liberais, está profundamente comprometido em países como o Brasil e os Estados Unidos. E, certamente, a trajetória da Fox News e da Jovem Pan são parte desse processo de erosão, que é bem mais complexo, como temos explorado aqui neste espaço.
A produção incessante de notícias tornou-se a mais importante fonte de poder político, mais relevante que partidos e outros sujeitos tradicionais. E o universo paralelo da simulação da notícia, o que se tem chamado de modo um tanto simplista de fake news, como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos esse momento de pandemia que vivemos. Bolsonaro e Trump são os parasitas que em simbiose se alimentam e são alimentados por esses universos paralelos.
Ao reforçar a sensação de urgência, a pandemia acaba por aprofundar certos aspectos do atualismo, a pressa e a desconfiança com tudo e todos. Assim, por que confiar em seu médico ou nas autoridades de saúde? A verdade, como parece sugerir nosso amigo bolsonarista, agora só pode ser medida pela quantidade de atualização do artigos.
Ontem, dia 20, pela manhã, nos deparamos com uma grande reportagem do
The New York Times com o título “Como o filme Plandemic e suas falsificações se
espalharam on line amplamente”. Trata-se de uma bela investigação de como as
redes sociais e setores da mídia promoveram mais uma vez um ataque orquestrado
à verdade. A matéria registra o esforço de algumas plataformas para banir o vídeo
e de diversos grupos para produzir contra-vídeos refutando as mentiras exploradas
no falso documentário.
Mas como podemos constatar pelos comentários de ontem de nosso amigo
bolsonarista, Plandemic já está sendo tratado como a mais real das verdades nas
suas bolhas e sendo acoplado a novas narrativas que dão sentido aos multiversos
conspiracionais. Em uma pesquisa ontem cedo no Youtube, apesar de haver
realmente diversos vídeos refutando Plandemic, e de ele não estar mais disponível,
o primeiro vídeo que o Youtube nos mostrou foi a live de um youtuber inglês que
estava a caminho de uma entrevista com a controversa médica do documentário,
prometendo refutar todos os argumentos da mídia tradicional. Ou seja, hoje você
pode escolher viver no universo paralelo, agitado e divertido da cloroquina, ou
enfrentar a realidade dura e assustadora da tubaína. Qual pílula vai tomar? A
pergunta, inspirada no universo do filme Matrix, também já foi corroída pela
guerrilha digital. A Matrix é sempre a realidade do outro. Assim, na noite da selva
digital, todas as pílulas são cinzas.
Fonte: The New York Times
(*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o
século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando
Bolsonaro, com Bruna Klem.
Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em
História pela UFOP
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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
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5 anos atrásem
07/11/20
O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac
Por Dirce Waltrick do Amarante*
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
O show de Trump: renovação ou cancelamento?
A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista
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5 anos atrásem
06/11/20por
Aloisio Morais
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml
[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html
[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters
Feminismo
Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?
Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros
Publicadoo
5 anos atrásem
05/11/20
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
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Arnaldo
22/05/20 at 14:31
Excelente explanação, seria muito bom se mais pessoas tivessem acesso as informações e conhecimento de como desvendar as muitas fake news.