Por Roberto Corcioli, especial para Jornalistas Livres
Foto: Fernando Sato/Jornalistas Livres
Naquele abril de 2014, Carol (nome fictício, claro) foi abordada por guardas municipais. Estava com seu namorado, mais velho, e foram ambos levados à delegacia sob a acusação de que praticavam tráfico de drogas: portavam uma dúzia de porção disso, meia-dúzia de porção daquilo. Carol tinha 12 anos de idade.
Carol ficou 45 dias internada na Fundação Casa, tendo atingido o prazo máximo de permanência enquanto se aguarda a sentença. Esta veio semanas depois, e concluiu que a conduta da adolescente tinha sido absolutamente hedionda. Por isso, sua internação seria imprescindível e por prazo indeterminado.
O advogado nomeado para a defesa de Carol recorreu. Passei a atuar no juízo em que tramitou o processo e, então, recebi o recurso de Carol determinando que ela aguardasse em liberdade até que houvesse uma condenação definitiva.
É o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente. É o que está escrito na Constituição, que resguarda a presunção de inocência.
Quem recorreu, dessa vez, foi o Ministério Público. E o tribunal deu razão. Carol deveria ser internada imediatamente.
Recebi a ordem e determinei, então, seu cumprimento, anotando que Carol deveria ser trazida à minha presença assim que encontrada pela polícia – é o que manda o Pacto de São José da Costa Rica.
Hoje trouxeram Carol ao fórum.
Entrou na sala com ar despreocupado. Estava acompanhada de sua mãe – mulher já não muito jovem, rosto que não deixava dúvidas a respeito da vida sofrida que levava e barriga que evidenciava certamente mais de oito meses de gravidez.
Vim a saber depois o motivo da tranquilidade de Carol ao vir ao meu encontro. O policial que a acompanhava não escondera suas impressões acumuladas (e hiperbolizadas) após estar presente em tantas audiências comigo: “fique sossegada, esse juiz solta todo mundo”.
Audiência iniciada, expliquei para mãe e filha que ela fora procurada pela polícia porque havia uma determinação do tribunal para que Carol cumprisse imediatamente a condenação que sofrera há mais de ano, a respeito daqueles fatos ocorridos há dois.
Naquele instante, a mãe de Carol já percebeu a gravidade da situação: “não acredito, doutor. Internada? Mas ela não fez mais nada! Eu tô grávida, doutor. Preciso da ajuda dela. Ela já ficou 45 dias na Fundação… Mais quanto tempo ela ficará lá?”
“Não é possível saber, senhora, mas agora é para cumprir uma medida, e ela pode durar por volta de seis meses – algumas vezes menos, mas às vezes mais…”
“Seis meses!”
A mãe de Carol chorava copiosamente. E Carol? Ela, no alto de seus 14 anos, estava atônita.
O desespero de ambas não parava de aumentar e eu, que costumo enfrenta situações como tais, em meu ofício, com aquela convicção firme de que o trabalho precisa ser feito, passei, neste caso, a não apenas temer que algo mais grave acontecesse com aquela mulher, grávida a ponto quase de ter seu bebê, mas também a sentir um nó na garganta.
O que pude fazer foi explicar que passaríamos o endereço de onde mãe de Carol poderia obter o auxílio de um advogado custeado pelo Estado e que procuraria ajudar na situação.
Foi então que ouvi uma última pergunta. Na verdade, quase que uma afirmação:
“Mas, doutor, depende do senhor, não é?”
A vontade que sentia era dizer o quanto considero estúpida e cruel a chamada guerra às drogas (que é guerra contra uma parcela bem específica da população, como se sabe), minha discordância com aquela condenação, com a ordem de cumprimento imediato da internação… Mas apenas expliquei que a ordem era do tribunal, e que, portanto, eu não poderia nada decidir a respeito.
É provável que eu não tenha sido convincente – afinal, quem, diante de tal cena, teria a coragem de dizer, olhos nos olhos, que “sim, depende”?
Carol, sentada, envolvia a barriga da mãe – que permanecia chorando em pé – num abraço desesperado. Era um abraço a três. Mas Carol não verá seu irmão nascer.
Itapevi, 14 de abril de 2016.
Roberto Luiz Corcioli Filho, juiz de direito.
Para Alexandra Szafir.
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