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Carmen, mãe de Preta, líderes de sem-teto: por que nos querem presas

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Por Flávia Martinelli do Mulherias 

Carmen Silva comanda um dos maiores movimentos organizados de moradia urbana do Brasil, o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), de São Paulo. Ela teve a prisão provisória decretada na semana passada, junto com os filhos Sidney Silva e Preta Ferreira, que também fazem parte do movimento. Os irmãos foram detidos –juntamente com dois líderes de outras organizações de mesmo foco –e seguem em busca de habeas corpus para se defender em liberdade.

Os advogados de Carmen dizem aguardar o acesso ao inquérito investigativo para que ela apresente para esclarecimentos. Ela concedeu algumas entrevistas a Universa, todas há cerca de seis meses. Na época, respondia a um outro processo com  acusações semelhantes às de agora. Foi inocentada. Trechos das conversas estão publicados aqui.

Veja ainda a história dessa retirante baiana, que chegou a morar na rua em São Paulo e hoje está à frente de cinco ocupações. O MSTC, do qual é presidente, conta com 2 mil membros que já foram contemplados com casa própria e outros 5 mil associados. Juntos, todos fazem parte da Frente de Luta por Moradia, que reúne outros nove movimentos, e ao todo, se organiza em quase 30 mil pessoas.

Outra saga nordestina

Poderia ser mais uma história severina de moradora de rua: cansada de ser espancada por mais de uma década pelo marido alcoólatra e ciumento, mulher negra nordestina deixa os oito filhos com parentes e vai para São Paulo ganhar a vida. O sonho é trazer suas crianças para a metrópole, mas ela se vê desamparada, sem sequer ter lugar para morar.

O roteiro trágico e previsível, no entanto, teve uma virada quando Carmen Silva Ferreira participou da reunião de um grupo de defesa do direito à moradia. “Fui no encontro de um Fórum de Cortiços por insistência de uma senhora que conheci num albergue. Eu trabalhava de dia e ia dormir lá. Estava em situação de rua, como ela”, diz Carmen. Era 1996 e Carmen falava que “que aquele negócio de ocupação era tudo besteira e mentira”.

Carmen conversa com policial durante ocupação do prédio abandonado do INSS, no Centro (Foto: Jardiel Carvalho)

Mas a migrante, vinda da Cidade Baixa de Salvador aos 35 anos, viu gente como ela naquela reunião: mulheres pretas, mães solo, trabalhadores que tinham que escolher entre comer ou morar. “Eram famílias inteiras mostrando as cartas de ordem de despejo, contando que viviam em beira de córrego e lugar com risco de morte. Era todo mundo arrebentado como eu, sem saída.”

Enquanto isso, o centro velho de São Paulo estava despovoado, com centenas de edifícios abandonados e quase nenhuma política pública de moradia voltada para a população de baixa renda. “Por que o trabalhador não podia morar ali no centro, ué? Existiam centenas de prédios vazios e proprietários que tinham mais de 200 imóveis que não davam conta de cuidar e pagar imposto. Isso, fora os edifícios que eram do Estado por causa das dívidas que superavam os valores dos imóveis.”

Em reunião com sem teto durante ocupação no antigo Hotel Cambridge. Carmem é protagonista do filme que descreve a luta por moradia. (Foto: Jardiel Carvalho)

 

São Paulo possui 1.385 imóveis ociosos, que estão abandonados, sem função social, subtilizados ou terrenos sem edificações, de acordo com o último Plano Municipal de Habitação, de 2016. O déficit habitacional é de 358 mil novas moradias e a cidade ainda tem outros 830 mil domicílios localizados em assentamentos precários nas margens de córregos, palafitas e construídos por madeiras, por exemplo, que necessitam de regularização e melhorias.

Hoje, 23 anos depois da primeira reunião para discutir o direito à moradia, garantido pela Constituição de 1988, Carmen lamenta ser ainda chamada de “invasora ou vândala” por parte da sociedade. Aos 59 anos, a líder orgulha-se de ser a “Dona Carmen, entre autoridades, artistas, jornalistas independentes, cartórios de registro de imóveis e até policiais.”

Cena do estado de conservação do edifício abandonado do INSS no dia da segunda ocupação no local, há dois anos. Mais de 50 toneladas de lixo foram retiradas dessa vez (Foto: Jardiel Carvalho)

Na semana passada, ela recebeu ordem de prisão temporária em operação de buscas e apreensões em endereços de 17 dirigentes de diferentes movimentos de moradia. Todos, de acordo com a polícia, são suspeitos de associação criminosa e extorsão, por cobrarem “aluguéis” entre R$ 200 e R$ 400 nas ocupações que coordenam.

A investigação diz respeito à tragédia ocorrida no dia 1º de maio de 2018, quando o edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por sem-tetos, desabou depois de um incêndio que deixou nove mortos. O coordenador do prédio, Ananias Pereira dos Santos, alvo de mandado de prisão ainda não cumprido, comandava a ocupação no Wilton Paes, que, segundo Carmen, nada tem a ver com o seu movimento. “É uma arbitrariedade da justiça”, diz o advogado de defesa do MSTC, Ariel de Castro.

Carmen foi inocentada no início deste ano em outro processo baseado em acusações semelhantes. Na ocasião, o juiz Marcos Vieira de Morais, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, afirmou ausência de provas por parte dos acusadores e baseou o veredito na apresentação de notas fiscais e atas que a líder do movimento encaminhou. Segundo a sentença, elas comprovavam prestações de contas que colaboraram com a manutenção e restauro das ocupações. “A defesa anexou aos autos notas fiscais e atas de assembleias demonstrando a destinação das contribuições individuais que cada família deveria pagar para suportar as despesas mensais do edifício”, escreveu o juiz na decisão.

Carmen aguarda o desenrolar do processo atual. Em uma entrevista no Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC), o delegado André Figueiredo, responsável pelo inquérito, explicou que as prisões foram requisitadas pelo Ministério Público, e o juiz plantonista Marco Antônio Vargas, da 26ª Vara Criminal de São Paulo, entendeu que as detenções seriam necessárias.

Na porta da delegacia onde Preta e Sidney se apresentaram e foram presos, manifestações ocorreram ao longo de toda a semana. Nas redes sociais, o apoio de famosos se intensifica. Já se manifestaram sobre o caso dezenas de artistas, tais como  Caetano Veloso, Criolo, Mariana Aydar, Marcelo Janeci, Cleo Pires, Duda Beat, Leticia Letrux, Maria Gadú, Ana Cañas, Lua Leça, Spartakus, Mel Lisboa, Jean Wyllys, Mônica Benício, Chico César, Emicida, Bruno Gagliasso, Clara Averbuck, Maria Casadevall, Otto, Erica Malunguinho, Paulo Miklos, Preta Rara, Fioti, Karina Buhr, Bia Ferreira, Doralyce e Monique Evelle.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Reprodução Instagram/Facebook

Mumunhas do mercado

Carmen conhece o submundo do mercado imobiliário paulistano como poucos. Aprendeu a levantar o histórico de edifícios largados à fedentina com dívidas de IPTU que superam o valor dos imóveis. Descobriu o que dizem as papeladas que comprovam o abandono de prédios públicos.

“Já tiramos mais de 50 toneladas de lixo em uma única ocupação”, lembra, ao falar do antigo prédio do INSS na avenida Nove de Julho, há dois anos ocupado novamente. “Faço o serviço que a prefeitura não faz. Não só identifico imóveis sem função social como os transformo em moradia popular saudável e centro cultural para a cidade.”

Foi a terceira vez que o local foi ocupado. A primeira foi em 1997 e o edifício estava abandonado havia 20 anos. Foram refeitas as instalações elétricas e hoje o foco de cuidado é a hidráulica. Há laudos de segurança e vistoria do local, além da brigada de incêndio treinada. Vivem no prédio 123 famílias, cerca de 500 pessoas, entre 66 crianças, que contam com cursinho pré-vestibular, biblioteca, brinquedoteca, aula de música, terapia, dentista e visitas regulares de médicos de família e campanhas de vacinação própria.

Aqui, um pouco de sua trajetória, em vídeo do canal Mídia Ninja que a reportagem do UOL acompanhou na gravação:

 

O edifício já sediou três bienais de arquitetura: Amsterdã, São Paulo, Veneza e este ano terá a de Chicago. Um dos moradores foi eleito para o Conselho Tutelar da região. A professora e pesquisadora da Unesp, Cássia Felet, fez uma tese de mestrado que defende que a saúde mental das crianças da ocupação é melhor que a da média das crianças da cidade de São Paulo.

Carmen também se aprofundou na dinâmica de incorporadoras, milionários ou fundos de investimentos que lucram com a demolição ou com o abandono dos prédios do centro. “Sem gastar um tostão, eles aguardam incentivos fiscais e têm acesso privilegiado a projetos públicos de revitalização ou requalificação. O mercado imobiliário aquece e lucros de mais de 1000% borbulham nesses empreendimentos onde pobre não entra”, diz ela.

Bandeira da Frente de Luta por Moradia (FLM) na ocupação do prédio do antigo prédio do INSS (Foto: Jardiel Carvalho)

Ela enxerga a falta de moradia para pobres “como uma continuidade urbana do regime escravista”. “Abolição nunca existiu. Foi negado o acesso à moradia e à terra aos ex-escravizados. Também aconteceu com os índios e acontece hoje com todos os excluídos desse sistema que não quer perder sua mão-de-obra barata”, diz. E completa, com uma risada solta e sem meias-palavras: “O que querem de nós? Que a gente se contente com fome e favela? É ruim, hein!”.

Na esfera da administração pública, ela foi coordenadora do Conselho Participativo da região da Sé na cidade por dois biênios e hoje é conselheira municipal e estadual de Habitação e das políticas públicas para mulheres. Ainda coordena o conselho de gestão de duas quadras que ficam bem o meio da Cracolândia.

Em tempo: Carmen trouxe seus filhos para São Paulo ainda nos anos de 1990. Entre eles, Preta Ferreira e Sidney que seguem presos. Em São Paulo, além liderar o movimento de moradia, fez carreira por 20 anos na mesma empresa de corretagem de seguros. Foi seu primeiro emprego na cidade e ela segue como prestadora de serviços do empresário.  Palestrante em cursos de arquitetura e urbanismo, também é atriz. Interpretou a si mesma no filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé, que ficou 20 semanas em cartaz, foi assistido por mais de 30 mil espectadores.

Trailler oficial do filme em que Carmen interpretou a si mesma:

Abaixo, clipe de Preta Ferreira, que é cantora, atriz, publicitária e articuladora cultural:

 

A primeira ocupação hoje é referência cultural

Foi em em 1997 que Carmen participou da primeira ocupação ao lado de outras duas mil pessoas, no imponente prédio público do INSS no centro de São Paulo. O local estava imundo e sem utilidade havia 21 anos. Na época, foi considerada a maior ocupação da cidade. “Foi um estardalhaço. A imprensa nos chamava de vândalos, nem nos ouviam.”

Foi em em 1997 que Carmen participou da primeira ocupação ao lado de outras duas mil pessoas, no imponente prédio público do INSS no centro de São Paulo. O local estava imundo e sem utilidade havia 21 anos. Na época, foi considerada a maior ocupação da cidade. “Foi um estardalhaço. A imprensa nos chamava de vândalos, nem nos ouviam.”

Mas Carmen passou a ter CEP e comprovante de residência, ainda que provisório. “Faz muita diferença! Sem endereço você não é nada. Não consegue abrir conta no banco, mandar currículo, fazer uma prestação de geladeira, nada.” Sem a angústia de ter de decidir entre pagar o aluguel ou colocar comida no prato, é possível viver para além da sobrevivência. “Eu me lembro do horror que foi morar de favor. Quando cheguei, fiquei quase um ano procurando emprego. Quando arrumei, tava com tanta dívida que não dei conta nem do aluguei da pensãozinha do Pari. Quando vi, eu estava em situação de rua”, conta a líder que sempre ouve histórias parecidas nas ocupações.

“Me querem presa porque sou muitos”

Carmem lembra da vergonha, solidão e desespero de dormir ao relento. Como muitos, ela escondeu a condição da família porque não queria “retornar mais derrotada do que saí”. Na rua, descobriu que existia albergue e lá encontrou todo tipo de gente. “Gente boa e ruim. O que me salvou foi ter foco: eu tinha que buscar meus filhos. Aprendi também a outra lição importante: sozinho ninguém é ninguém.”

Foi no movimento por moradia que a Carmen individualista morreu. “Nunca mais pensei no meu emprego, minha casa, na minha vida e no eu, eu eu… Reaprendi a viver com o foco no coletivo. Sou muitos. Por isso me querem presa. Eu e todos que estão comigo.”

A ocupação que virou projeto de moradia Hoje, Carmen divide as contas entre cinco familiares. Eles pagam um aluguel de R$ 1800 num apartamento no centro. “Já não tenho mais necessidade de morar em ocupação e tirar lugar de quem precisa”, diz ela. Ela aguarda financiamento de uma moradia própria no antigo Hotel Cambridge, um dos prédios que ocupou e viveu em condições precárias por quatro anos.

Em 2015, o projeto de moradia feito pelos ocupantes com assessoria técnica da ONG Peabiru venceu o edital de chamamento do Programa Minha Casa, Minha Vida. O hotel vai virar moradia popular a ser financiada em banco, com escritura, documento habite-se e tudo regularizado pela prefeitura para 121 famílias que ocuparão os antigos quartos de 27,5 m² e 55m².

O sonho da casa própria, a ser realizado daqui a um ano de reformas (que eles chamam de retrofit, ou seja uma readequação completa), é resultado coletivo de centenas de embates nem sempre amigáveis com o poder público, incluindo reintegrações de posse com policiais e bombas de gás de pimenta e lacrimogênio, e preconceito da sociedade.

Não é fácil lidar com o povo nas ocupas

Carmen é famosa por ser durona em todos esses espaços. “Tenho que ser firme mesmo. Muita gente depende de mim.” Acontece de tudo numa ocupação. “Teve um que quis usar o espaço pra droga e foi corrido do movimento, outra se dizia funcionária da prefeitura e queria mesmo é guardar cigarro de contrabando no prédio.”

Existe um coordenador para cada andar do edifico e essa pessoa precisa até intermediar briga boba de vizinho. “Sabe por que eu sou grossa muitas vezes? Porque esse meu ouvido aqui é surdo pra fofoca. É tanta gente que eu esbarro que conheço as manhas e os oportunismos de uma pessoa. Tem de tudo nesse mundão. Mas aqui ter regra é essencial. Lá fora, podem fazer o que quiser mas dentro de ocupação não! Aqui homem não bate em mulher, criança tem que estudar e não fica sozinha em casa, não tem barulho depois das 22 horas e limpeza é assunto de todos”, delibera, serena, mas com sobrancelhas arqueadas.

“Jamais imaginei que uma mulher como eu, que chegou aqui estropiada, destruída de corpo e alma, estaria lutando pelo direito à moradia de tanta gente.” Gente com história severina como a dela: 60% das ocupações sob os olhos – sempre maquiados – de Carmen abrigam mães solteiras. O movimento, por sua vez, conta com 80% de força feminina, inclusive despontando como lideranças. É a tal da vida que, como no poema “Morte e Vida Severina” do nordestino João Cabral de Neto, “nela mesma, teimosamente, se fabrica”.

Esse texto foi publicado no blog Mulherias do UOL. Acesse a matéria na clicando nesse link: https://bit.ly/2Nsy2yN

 

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O caso Mariana Ferrer, por Honoré de Balzac

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

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O caso Mariana Ferrer por Honoré de Balzac

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.  

Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.

Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.

Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.

Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.

Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.

Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.  

*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina

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O show de Trump: renovação ou cancelamento?

A eleição nos EUA e o destino da democracia na condição atualista

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Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.

Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG

A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.

Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.

Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.

A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma  eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.

São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.

Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.

Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário. 

Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.

Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota  interesse a todos os democratas do mundo.

Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.

O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.

O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.

Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]

Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].

Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.

Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.

A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.

Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.

O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.

Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.

(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.


[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/thais-oyama/2020/11/04/o-eleitor-oculto-de-trump-e-o-novo-erro-dos-institutos-de-pesquisa.htm

[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).

[4] https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/07/20/trump-muda-discurso-e-agora-diz-que-usar-mascara-e-patriotico.htm

[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/quase-sete-em-cada-dez-americanos-relatam-transtorno-do-estresse-eleitoral.shtml

[7] https://br.noticias.yahoo.com/em-pronunciamentos-biden-prega-calma-e-trump-faz-acusacao-de-roubo-065922289.html

[8] https://www.aljazeera.com/news/2020/9/12/biden-battles-trump-lack-of-enthusiasm-among-black-voters

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Feminismo

Que tal ajudar Mariana Ferrer a obter Justiça?

Não basta lacrar. Um chamamento a todas as feministas e a todas as mulheres para que enfrentemos a misoginia dos tribunais brasileiros

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Mariana Ferrer chora durante julgamento em que foi humilhada o ofendida

A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.

Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.

Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:

“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”

O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.

É só ler o título indigitado de novo:

JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM

Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.

Uma pena.

Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.

Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.

Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.

E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.

Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.

A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.

Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.

Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?

Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?

Não, não é razoável.

Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.

A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!

Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.

Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!

É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…

Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.

Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.

É preciso atuar sobre esse front.

Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!

Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!

Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.

A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.

Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?

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