Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • Parangolé da serpente

    Parangolé da serpente

    Domingo passado entrei rapidamente na avenida, pensando que era dia de jogo, torcidas comemorando. Tudo em vão, minha bandeira linda  tremulava absorta ao movimento de indecentes, império das barbáries, falsas paixões. Piso no solo olhando para o céu, com todo cuidado, temo os répteis.

     

    Não é explícito, irrompe sutilmente o inimigo dentro de cada um em si, dentro de tudo, a história como peneira e a chapa quente como o tempo, tal fazer farinha, se alimentar e prosseguir…

     

    Me envolve recordação artística, polêmicas de ventos, formas em tecidos de Hélio Oiticica e seus parangolés, e, como observara Waly Salomão, parangolé é gíria de morro, com uma multiplicidade imensa de significações, variando, dançando conforme os conformes.

     

    Tecido sem pé nem cabeça, o parangolé da besta fera, o ovo da serpente eclodido, revolta da bandeira após o fim do mundo, em movimento sobre o caminhão de som dos algozes. 

    Há um efeito rebote do vírus, não mais entre a terceira idade, mas que invade os jovens agora, suas roupas pretas, as torcidas caladas no isolamento, jovens que demonstram um basta aos antigos vícios do atraso, em franca invasão.

     

    Estamos fogo, há encaixe entre tanta chama, apesar dos mortos, um mundo que acaba enfim num incêndio que água não apaga.

     

    Reflexo,  espelho côncavo, a imagem virtual dialética da matéria humana, em punho cerrada, invertida ou direita na célula da gente. 

     

    A solução aquecida nos sais do fotógrafo Daguerre,  a fixação,  a anti-obra de Oiticica cunha fissuras na memória das ruas. Querem impor um medo, seus exércitos, grande malandragem das velhas políticas nas trincheiras das covas.

     

    Nada será como antes.

    parangolé

     

    imagens por helio carlos mello©

  • Por que orelhas brancas não ouvem os povos?

    Por que orelhas brancas não ouvem os povos?

    Povos, imagem do acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru
    Fotografia em preto e branco revelada em papel fotográfico com brilho, com imagem de um homem indígena Kaingang com vestes típicas de homem branco ( calças compridas, camisa e cinto) ainda que descalço, segurando uma flecha e posando para o registro fotográfico / acervo Museu Ferroviário Regional de Bauru

    Tudo maltrata o coração nesse momento, os povos que pulsam. Nem mesmo o ar mais limpo, sem carros nas vias ou aviões no céu, me anima a crer que chegou um tempo de razão, o tempo da educação . Tudo carrega um pouco do pecado, digitais ou não, de mãos alheias ou incongruências tão íntimas. De repente ouço palavra estranha, esquisita mesmo, Weintraub, ecoar em todas frequências.

     

    A dúvida infame que reverbera agora, entre o ódio , revela o manto da  insciência sobre o povos em nós, sua incidência no DNA brasileiro, pois não somos mesmo uma mistura, metamorfose, mutação, fusão e tolerância de tantos que em nós habitam?  Esses povos pretos, esses povos indígenas, esses povos ciganos que juntos comigo, com você, ele, convivem, não existem povos na Terra plana?  A dúvida infame que ocorre na cabeça do ministro e soberba de presidente, avilta. Revela o manto da ausência, do poder absurdo sobre nós, dos brasileiros que vivem na redonda Terra azul. 

     

    Quando nasci, recordo, já estava tudo dominado em meu estado, São Paulo, pois entre os rios do Peixe e Aguapeí ou Feio, os indígenas perderam as últimas terras indígenas para os imigrantes, contavam minhas avós italianas misturadas  com meus avôs caboclos. Na imensidão das terras do interior do estado sobrou só um pouquinho para os indígenas, bem próximo de minha cidade natal.

    Cresci ouvindo comentários de índios entre os descendentes das famílias que ocuparam as florestas de minha terra; via seus troncos retorcidos, antigos, tão velhos, entre os cafezais e as lavouras de amora para o bicho da seda, no horizonte de minha infância. No oeste paulista, a linha da  Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, hoje sem grande importância, é o traço de sangue imposto aos povos massacrados na história de São Paulo, os índios Kaingang e Coroados, que no século XIX eram conhecidos também como índios Bauruz. Dos Oti nenhum sobrou.

    A peste desse momento de pandemia, seus escárnios ministeriais e as dívidas impagáveis de nossas volúpias, os desaforamentos monstruosos desses governantes, apenas persistem. Após mais de cem anos, insistem, atuais, trechos de uma carta enviada ao Marechal Cândido Rondon, militar indigenista, em 1910: … as relações entre o civilizado usurpador e o índio espoliado, caracterizam-se, da parte daquele, por uma longa série de abusos e de crimes, carregados aqui e ali de cenas tais de revoltante ferocidade e da mais repugnante vileza, que a pena mal se atreve a relatá-las com todas as negruras do quadro retraçado ao pensamento pela narrativa. 

    O índio, na legítima e heróica defesa de seu patrimônio, dia a dia mais desfalcado pela insaciável cobiça do civilizado, apertado dentro de um círculo de ferro e fogo que se estreita progressivamente de todos os lados, da ‘Noroeste’ à Campos Novos do Paranapanema, dispondo-se, em desespero de causa, a vender caro a vida …

    Povos, imagem do acervo Museu Índia Vanuíre
    Acervo Museu Índia Vanuíre – Tupã, SP

    Saiba mais em : https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/145521/000022454.pdf?sequence=1

    Anexo 2 – Relato de um massacre de indígenas em São Paulo, por um bugreiro (dentre outras informações úteis). Pesquisado e transcrito (primeiro manuscrito, depois datilografado e posteriormente digitado)por Niminon Suzel Pinheiro do Filme 379. RELATÓRIO ENVIADO A RONDON SOBRE O HISTÓRICO DA CONSTRUÇÃO DA EFNB, EM TERRAS DOS ÍNDIOS KAINGANG (22/11/1910) Filme 379 Fotograma 1854-1892 Doc 00 Terra, EFNB, SPI

  • Resistência da flor

    Resistência da flor

     

    As marés andam incertas. O mar lamenta, move letras na palavra amar, armar, arma.

     

    Como tiro na fronte já não me distraio diante da televisão. Durante noites de pandemia e seus dígitos há xingamentos e baixo calão. Nestes momentos falta ar, o pulso.

     

    Coração e pulmão das águas definem a vida em minhas margens, dançam, batem ondas, vai ou não vai, coisas que desassossegam o cérebro da nação em nós.

     

    Cairá como uma sombra exemplar, pífia, vácua, a imagem do mestre caduco que alucina a seita no poder desse momento. Para quê usar de tanta educação entre inimigos, beija-flor, diz a canção. Mal educada é a dor que não dói. 

     

    Quão tempo passageiro, tal tempestade que invade, ventania.  Voraz acidente deixa mortos, arremedos, falsas respostas e cruel impressão. Vejo um céu de urubus em sábados de recesso, nevoeiro no elo do horizonte para poesia ou filosofia.  É tempo de cabeças fora do lugar, tempo de injúrias,  perfídia, maledicências.

    Vôo de ave negra.

     

    As coisas são assim. Mesmo que raro ouro na areia, digo, amar é como  flor em  favela ou num canto de aldeia. Não desiluda-se, brota, resiste, há abrigo, dá sempre semente a planta e vai como reza ao vento. 

     

    Todo dia, nessas manhãs, bate em meu coração pensamento são e espinha ereta, por mais que doa e fique borocochô meu lado cidadão, em dias assim.

     

    Deus encarnado e ciência, pura Constituição, ilumina, artesã. Juram mentiras, não creia, mais vale o verso.

     

  • Até tu, Cabral?

    Até tu, Cabral?

    prevenção do coronavírus
    Do artista Luis Morrone, o monumento a Pedro Álvares Cabral, em comemoração aos 500 anos do Descobrimento, localizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, traz a máscara para não contaminar os habitantes da metrópole / imagens por helio carlos mello©

     

    Colocaram máscara no fidalgo durante a madrugada, o navegante agora demonstra que não quer contaminar os nativos. Estátua fria aponta que é necessário cuidar da vida, abrindo os braços sobre a avenida, onde a lua míngua num ar sem aviões. Tão limpo está o azul do céu .

     

    Também vestiram os índios, pedra dura moldada no trabalho do artista, grita também o domínio do vírus. Mulheres nuas, criança de colo, escravos tão quietos estão em suas máscaras, em seu martírio, puxando a canoa da conquista.

    prevenção do coronavírus
    O Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, seus portugueses barbados, os negros e os índios em pedras imensas , eternamente puxando a canoa do invasor.

     

    prevenção do coronavírus

     

    prevenção do coronavírus

    Irá o vírus invadir a rocha, o gesto reto dos corpos, o isolamento estéril de nossos erros? Passarinhos voam calmos no Ibirapuera, desentendem porque as pessoas estão a vestir a arte, assim ausentes,  o rio do trânsito tão terno.

    Desentendem-se ministros, prefeitos, presidente e governadores, mas a cidade ainda vive, protesto ou propaganda, comunica, digladia-se, espera obtusa sua cura, reside na paciência da rocha e no vil metal.

     

     

     

     

  • Acampamento Terra Livre

    Acampamento Terra Livre

     

    Devassou a alma, sem marcar hora, a era nova que domina os ouvidos, mudou todo hábito e rumo. Até o grande encontro dos indígenas, de forma encantada, se dá online, o grande acampamento numa terra livre em monitores conectados, nos cinco cantos do país.

     

     Abracadabra,  dúvidas a pino tememos magoarem a fonte, secar sem certeza a sensatez dos seres em frenético e silencioso apartheid, mas não, reúne em grande praça digital a fuga da peste. Pacífica dor sangra a mente dos povos, morde pelas costas, sufoca pulmão e coração, e os indígenas reinventam-se.

     

     Respire, é imprescindível marcar presença, bater ponto na ausência de entendimentos, parar o consumo nesse momento. Há estranha normalidade na anomalia dos ares nas grandes cidades, a atmosfera sai da UTI, selvagens animais povoam a via, e os seres humanos dialogam com um click.

     

     Se há futuro agora, nunca houve, então, o que via meus olhos, de repente enxuto na peste, silenciando o frenesi das calçadas, o rio do tráfego?

     

     Se cuide, diz a mensagem, lave as mãos. Tão simples evadir-se da revolução, tirar os sapatos, lavar as cuecas. Mesmo que volte, agora uma quarentena terá seu lugar entre nossas camas, nossos leitos e largos. As praças de nosso espírito não serão deveras, um cachorro ou outro talvez urine aqui e ali.

     

     Valas comuns ajeitam-se para os corpos que espalham o dissenso do capitão. Entre a gente, no desejo, erguem-se muros invisíveis. Estamos refugiados, isolados, mas poucas vezes nos vimos tanto numa linha.

     Em nosso lugar de trabalho, agora, há uma porta, janelas em todas paredes. Se um presidente raso acampar em seu quintal, não desista,  o mundo continua cheio de caducos, fritos. 

     

     As bobagens que pensávamos, falsas cartas e tratados, unhas negras, filmes piratas… agora nada servem. Cunha-me a visão, feminina senha, tudo pede agora mais higiene, limpeza geral nas atitudes. 

     

     Não sei se creio numa nova era, ou se afunda mais minha senda, mas sigo entre aqueles que querem  a espinha ereta, tatuagem na pele e a saúde dos povos.

     

    *imagens por Helio Carlos Mello

  • Deu bicho na banana e o banqueiro é anarquista

    Deu bicho na banana e o banqueiro é anarquista

    Lembro-me que estava dormindo em um simples hotel de Goiânia, pela primeira vez, quando meu antigo notebook de muitas viagens queimou durante um raio, uma forte chuva que invadiu a capital de Goiás.  Fiquei triste, pois editava as fotos de minha ida à rua do acidente radioativo com o Césio 137, vira a casa do catador de sucatas, que era apenas um terreno de ensurdecedor silêncio. Perderam-se os arquivos, como as almas naquela noite.

     

    Na manhã seguinte, entendi que o raio havia atingido também Marielle Franco, em outra capital, sendo ela vereadora do Rio de Janeiro, muitos tiros em dois corpos.

     

    Parece que faz dez anos, sendo tão próximos os eventos.

     

    Hoje, dia de São Jorge, os dragões são outros. O gato do vizinho me acordou cedo, entre miados da ausência de seu dono, isolado em outro canto, ligo o rádio no computador, leio que Rita Lee anuncia que nada será como antes. Será novo tempo?  Caraminholo, gasto um tempo vão nesses dias com possíveis  delírios, inventando alternativas no pouco espaço durante o isolamento. Como me disse um amigo que trabalha com indígenas, nos sentimos como os índios em isolamento voluntário, recusamos o mal, vamos nos escondendo em nossos interiores.

    Estamos atentos a pequenos sons,  enquadramentos nunca percebidos dentro de casa, aquela porta, aquela janela no horizonte visível.

     

    Reflito sobre os mascarados que via antes nas ruas, eram tão diferentes, corriam da polícia.

    Agora foi o vírus que quebrou o tamborim, bem vejo, a revolução foi tão instantânea, sem quebra-quebras, na maior tranquilidade de uma ordem, fique em casa irradiou-se.

    Tudo anda diferente, desde o raio naquele dia e a morte de Marielle, até passeata há diante do quartel general. Como amor de índio, a canção, tudo que move é sagrado, arco de promessa.

     

    A platéia quer ser feliz e a palavra sente frio.