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Futebol

Pela liberdade dos jovens meninos da favela São Remo

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Por Lucas Martins, Katia Passos e Emílio Lopez, dos Jornalistas Livres 

Na última terça-feira, 16/07, Y e A, dois adolescentes de 16 e 17 anos, respectivamente, foram presos em São Paulo, acusados de roubar um carro, na Praça General Porto Carrero, bairro do Jaguaré, zona oeste. Mas a história não é tão simples e clara assim. Os garotos e suas famílias negam veementemente a autoria do crime. Será mais um capítulo de injustiça contra pobres?

Por isso, na segunda (22), moradores, professores, familiares dos meninos, amigos e o coletivo Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio organizaram um ato nas ruas da favela São Remo, local onde os jovens nasceram e cresceram. O objetivo da manifestação foi denunciar mais essas duas prisões, sem crimes, sem provas, de pessoas pobres que não têm e nunca tiveram envolvimento com nenhum ato ilícito em suas vidas. Pelo contrário, um dos meninos é inclusive um atleta participante da Taça das Favelas e foi recentemente entrevistado na televisão, pela rede Globo. Mas, infelizmente, histórias com esse enredo não causam o mesmo interesses aos veículos da mídia tradicional. Por isso, coletivos organizados por equipes voluntárias e a sociedade civil, têm importância fundamental na visibilidade de situações de genocídio, violência e de injustiça como é o caso dessa. A Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, presente nesses territórios, consegue ter uma importantíssima atuação contra o silenciamento de diversos casos, no apoio às famílias vítimas e claramente apavoradas com essas atrocidades, temendo retaliação por parte da própria Polícia dos territórios onde habitam, e sobretudo, no acompanhamento diário, do começo ao fim da história, até o desfecho e in loco.

Marisa Fefferman, da Rede pontua: “a insegurança e o medo perpassam essas comunidades e isso aumenta cada vez mais. Existe sim um alvo. A metodologia da rede de proteção é andar pela favela, ver quem são os parceiros, é mostrar uma mãe falando pela comunidade que isso não acontece só com o filho dela”. Ainda sobre a institucionalização dessas histórias de injustiça e violência, Marisa explica: “a Rede tem um grupo de trabalho com o Ministério Público para discutir o controle interno das Polícias, com representantes da Secretaria de Segurança Pública, da Ouvidoria e da Defensoria. É um canal aberto e o nosso caminho para a tratativa desses casos é formaliza-los no MP.”

 

Manifestantes carregam flores durante ato, na comunidade São Remo, na zona oeste de São
Foto de Lucas Martins / Jornalistas Livres

Sobre o destino atual de Y e A, a rede tem acompanhado, junto com as meninas, a internação dos meninos na Fundação Casa, unidade Brás, na capital paulista. O caso foi apresentado ao Ministério Público na última quinta (18) e a partir dessa data, o órgão tem até 45 dias para apresentar o caso a um juiz.

Entenda os detalhes do caso

Em depoimento ao advogado de defesa, os jovens saíram de casa para encontrar a namorada de um deles. A moça também reside na região.

Em mensagens trocadas entre o casal, pelo aplicativo Whatsapp, a moça justifica o pedido para que o amigo do namorado o acompanhasse:

20h35 – “se ele tiver pede pra ele vim com vc amor, pra minha amiga da uns bjs nele pra ele dá uma atenção pra ela ela ta mal”.

Na continuação:

20h44 – mensagem do namorado, um dos jovens apreendidos:  –  “veremos isso na hora que eu chegar ai”.

Chegaram. Segundo depoimento ao advogado que os defende, em frente a casa da jovem, por volta das 21h38. Dois minutos depois foram apreendidos pela polícia.

Os adolescentes A e Y se declaram inocentes e apresentam outra versão que contradiz completamente o texto do Boletim de Ocorrência (BO) realizado pela vítima por detalhes importantes de logística, temporalidade e um aparelho celular. Segundo o documento, a vítima, uma Policial Militar, estacionou o carro na Praça, e logo após descer foi “abordada por dois indivíduos” que a colocaram no carro e partiram. É relatado, ainda, que, na Av. Presidente Altino uma viatura perseguiu o carro, mas não conseguiu alcançá-lo, perdendo-o na Av. Dracena. Segundo a vítima ela conseguiu fugir do carro após um dos assaltantes, que estava no banco traseiro, sair do veículo.

Ainda no Boletim de Ocorrência, consta que, após sair do veículo, “correu em direção a um carro da Yellow, pedindo auxílio, sendo que neste momento o motorista do carro da Yellow abriu a porta e a vítima entrou”. No documento está registrado, também, que na “Rua Onófrio Mileno, Jaguaré, localizaram o veículo parado e próximo havia três indivíduos (…) que saíram correndo empreendendo fuga, sendo dois dos indivíduos alcançados”, isso teria ocorrido, segundo o BO, às 21:40h.

Já na 91° DP a vítima reconheceu A e Y e recuperou o carro. Consta no relato que foi encontrada a chave do veículo com o jovem de 16 anos, mas não o celular, que também foi roubado.

A defesa

O advogado dos jovens confronta a versão policial com a geolocalização dos dois quando foram abordados.

Segundo o registro do celular eles estariam na Rua Três, há mais de 200 metros de onde a versão policial os coloca e também questiona o paradeiro do celular da vítima, que, até agora, não foi localizado. Segundo a defesa, a pesquisa em imagens de câmeras existentes pelo trajeto pelo qual os jovens passaram, será realizada, ação que poderá elucidar e trazer liberdade aos meninos.

A mobilização

Logo após a prisão, as famílias e conhecidos começaram a se mobilizar para provar a inocência dos jovens. O professor de futebol Lula Santos, do Projeto Social Escolinha de Futebol do Catumbi, e que mora na São Remo junto com as famílias e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que atua em casos de violação de Direitos Humanos em São Paulo, organizaram um ato nesta segunda, 22, que circulou pelas ruas onde os dois jovens moram.

O professor deixa claro o que acha que motivou a prisão “estamos sem voz e estão prendendo pessoas inocentes pelo tom da pele”. Y, o jovem de 16 anos, também é negro.

O professor Lula Santos
Foto de Lucas Martins / Jornalistas Livres

Y e A nasceram na favela São Remo, que fica ao lado da Cidade Universitária, em uma região valorizada da capital. Mesmo estando ao lado da Universidade de São Paulo, a USP, maior do país, as condições da comunidade são precárias.

A manifestação

O ato começou em frente à casa do jovem Y, por volta das 10h30. Um dos presentes foi Marcelo Dias também preso injustamente ano passado. Emocionado, chorou e contou brevemente sua história: “acordei cedo para vim, em solidariedade a essa família, essas duas famílias. Minha mãe também passou por isso e eu sei a dor que a família está passando nesse momento. A importância, gente, de nos estarmos aqui é muito grande. Essa comunidade precisa sair daí. Precisa vir para a luta junto com essa família”.

Uma luta que não se restringe ao tema do encarceramento em massa no país. A luta de quem vive em territórios hostis como o da favela São Remo é dura, é preciso apelar, gritar e apelar muito por direitos básicos, para se ter uma vida minimamente decente.

Antes do ato caminhar pelas ruas da favela, Iracema, mãe de A, mostrou a casa onde mora com o marido e o filho. Três cômodos: um quarto, um banheiro e a sala que também é cozinha. Separados do filho por oito dias, contam como era a vida como educam A, a partir da própria realidade de suas vidas. Arlindo, pai de A, sofreu um AVC e tem mobilidade reduzida, por isso, o filho sempre está presente para ajuda-lo:  “nunca é fácil, mas agora tá pior. Acordar e não ver ele. Quem fazia comida para mim, esquentava. Agora não faz mais. Sempre foi caseiro”.

Iracema, veio de Pernambuco para São Paulo com 14 anos. Trabalha desde os 16 anos na mesma casa, como empregada doméstica: “trabalho em casa de família. Não deixo faltar nada, dentro das minhas condições. Tudo vem do suor do trabalho de diarista, e falo para ele: seja assim igual a sua mãe”. Enquanto conta sua história, Iracema mostra a chave da casa dos patrões como símbolo da confiança.

Quando as pessoas começaram a caminhar no ato quem puxava as palavras de ordem era o professor Lula, que convidava as pessoas para se somarem à passeata.

Depois de alguns minutos de trajeto as pessoas pararam de andar para que discursos em tom de denúncia pudessem ser feitos. Lula explicou a situação “não é justo o que estão fazendo com os nossos meninos. No geral, com todas a comunidades. Todas as comunidades, o que estão fazendo? Oprimindo todas as comunidades, as favelas ao nosso redor. Peço um minutinho de vocês, de atenção. Venham um pouquinho para a rua. Vamos somar aqui, mostrar para as pessoas que temos voz. A favela tem voz”.

Em seguida Leandro, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Butantã alertou:  “nos vemos casos como esse em todas as periferias, pessoas sendo presas injustamente e hoje a AOB e a comissão de direitos humanos se solidarizam com esses meninos que foram presos injustamente. Vemos que o processo hoje não tem as duas versões, só existe a versão da polícia”.

O ato seguiu até o campo de futebol da comunidade. Uma escolha simbólica para contrastar os sonhos dos meninos com o pesadelo que vivem.

Os dois jogam e amam por futebol. Iracema conta, enquanto mostra as chuteiras furadas de tanto uso, que o filho, além de ser um Santista roxo, tem o futebol como sua maior paixão.

Y e A treinam com Lula no campo da comunidade. Ali o menino Y tornou possível um dos seus maiores desejos, jogar no Pacaembu. Os dois participaram de testes para jogar na Taça das Favelas São Paulo, torneio que reuniu 32 times masculinos e 16 femininos de várias favelas da cidade. A não conseguiu jogar por questões médicas, mas Y passou e realizou o sonho de entrar no estádio, não como torcedor, mas como atacante.

Iracema, mãe de A mostras as chuterias do filho
Foto de Lucas Martins / Jornalistas Livres

Maria Ivone entrou em campo, como o filho, mas para defendê-lo: “tem muito jovem injustiçado, somente porque mora em comunidade. Somente porque não tiveram a oportunidade estar fora deste lugar. Mas também quero pedir que as mães, os pais que estiverem vendo essa passeata se comovam. Botem a mão no coração, porque hoje sou eu, mãe, que estou aqui, hoje, clamando e pedindo ajuda. Amanhã pode ser você, nenhum dos nossos filhos estão sendo respeitados. Nós não estamos aqui somente para chamar atenção porque é meu filho. É porque são da comunidade São Remo”.

Manifestantes no campo
Foto de Lucas Martins / Jornalistas Livres

O ato seguiu para a área externa do campo e prosseguiu entre as palavras de ordem e uma trilha sonora que também servia como apelo por justiça: Racistas Otários, dos Racionais MC’s, e Eu só quero é ser feliz, de Cidinho E Doca.

A manifestação foi encerrada em frente a porta da casa de A. Aluta pela liberdade dos meninos não para por aqui, por isso, uma reunião que discutirá os próximos passos, já está agendada para a próxima sexta (26/07) e terá a presença de membros da comunidade, advogados e coletivos contra o genocídio da população pobre preta e periférica.

 

 

#EleNão

Nota da torcida organizada Bahia Antifascista contra Bolsonaro

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No dia em que, infelizmente, o Brasil confirmou mais de 10 mil mortes e 155.939 casos de Coronavírus e a Bahia registrou 196 mortes e 5.174 casos confirmados, Bolsonaro passeia de Jet Ski em mais um episódio lamentável de desrespeito a vida.
Nos chamou a atenção, o fato dele, inoportunamente, utilizar a camisa do Esporte Clube Bahia durante o passeio da morte.

É comum ver o protofascista do Bolsonaro vestir diversas camisas de clubes populares. Ele já havia vestido a camisa do Esquadrão durante a sua última visita a Bahia.

Não podemos deixar de registrar o nosso repúdio quando o oportunismo se faz presente com Bolsonaro vestindo o nosso manto sagrado em um ato de desrespeito a memória dos mais de 10 mil brasileiros e brasileiras que perderam as suas vidas, d@s profissionais da saúde que lutam contra a pandemia do Covid19 e dos milhões de homens e mulheres que sofrem com os descasos do governo federal com o povo.

Bolsonaro representa tudo que o Esporte Clube Bahia e a sua torcida repudia com veemência. Ele reverencia a ditadura, enquanto o Bahia e a sua Torcida lutaram e lutam pela democracia. Ele reverencia o racismo, o machismo e a homofobia, enquanto o Bahia e a sua Torcida são exemplos internacionais de combate a todas as formas de opressão.

Bolsonaro tem lado e não é o da defesa da vida do povo. Nós tricolores temos lado e estamos somando esforços para que o nosso povo sobreviva a essa Pandemia realizando atos de solidariedade de classe nesse momento tão difícil.

Nosso povo é de resistência e luta e por tudo isso, a Torcida Bahia Antifascista registra o mais profundo repúdio ao fato dele vestir nossas cores.

Bolsonaro não é digno de vestir o manto do clube do povo!

Fora Bolsonaro e Mourão!

Torcida Bahia Antifascista

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América Latina e Mundo

ARGENTINA: Futebol popular ajudou a expulsar o neoliberalismo de Macri

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Mauricio Macri, presidente da Argentina na época, tentou passar um projeto no início de 2018 que tinha como objetivo fazer os clubes de futebol do país se tornarem Sociedades Anônimas, transformando-os em empresas e abrindo suas ações para investidores. O modelo, que permite a venda de ações e o controle para investidores, é adotado na Europa e muito criticado por afastar os sócios e torcedores das decisões que envolvem os clubes.

Após o anuncio, a sociedade civil e os pequenos clubes se uniram em uma campanha para barrar o projeto neoliberal de Macri. Hoje Mauricio Macri deixou a presidência da Argentina sem conseguir aprovar o projeto. Ignacio Etchart, do Club Atlético Ituzaingó de Buenos Aires, explicou um pouco do panorama vivido nestes últimos dois anos na Argentina.

“Eu sou Ignacio Etchart, encarregado da comunicação do Club Atlético Ituzaingó, em Buenos Aires, Argentina, em ascensão no futebol argentino, e entendemos esses últimos tempos como uma resistência nos times de futebol.

Os times na Argentina têm uma importância muito grande. Temos um vínculo entre o bairro e o time e isso é uma forma muito potente para enfrentar os embates do governo de Mauricio Macri, que tentou privatizar os clubes.

Os clubes da Argentina só podem funcionar e competir se forem associações civis sem fins lucrativos. Porém, Mauricio Macri, que foi presidente do Boca Júniors, e agora presidente da República Argentina — por sorte de saída —, tentou, através de diversas formas, instaurar as sociedades anônimas esportivas.

Isso significa que as empresas podem controlar os clubes e, dessa maneira, se perde o espírito social que têm os times da Argentina. Por sorte, os torcedores se organizaram e formaram grupos que se abriram ao debate para resistir.

Desta maneira, se constatou que Mauricio Macri, embora ele pudesse avançar em diversos ajustes sobre a sociedade trabalhadora, com os clubes não pode. Os clubes seguem sendo associações civis sem fins lucrativos, e assim seguirá sendo.

Porque entendemos que os clubes, principalmente os de futebol, têm uma função social muito importante, em uma sociedade que têm muitas demandas.”

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Direitos Sociais

“Sou a menina preta na fila do estádio”

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Por: Rafaela Freitas
Jornalista e Maria do Podcast das Marias

Os gritos de “macaco” e “olha a sua cor!” ecoaram Mineirão afora, colocando novamente de forma fugaz o racismo no futebol na pauta da imprensa brasileira. O caso ganhou um reforço da Ucrânia: na mesma tarde, os brasileiros Taison e Dentinho foram vítimas de racismo num jogo entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev.  Era só mais um domingo normal de futebol ao redor do Planeta.  

Após essas ocorrências – registradas no mês da Consciência Negra –, a CBF e a maior parte dos clubes brasileiros seguem inertes no combate ao racismo – e a outros preconceitos e discriminações. Enquanto isso, assistem o Esporte Clube Bahia se tornar a maior referência em ações afirmativas no futebol brasileiro. Em outubro de 2019, Roger Machado, técnico do time baiano, e Marco Aurélio de Oliveira, comandante do Fluminense, os únicos treinadores negros da série A, participaram de uma ação promovida pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Na entrevista coletiva pós-jogo, Roger foi contundente ao explicar didaticamente sobre racismo estrutural e questionar a falta de negros em cargos de gestão do futebol e na imprensa. Na ocasião, o técnico ainda destacou a situação das mulheres negras como maioria nos casos de feminicídio e de suas ausências no jornalismo esportivo. 

Foto: Thiago Ribeiro / AGIF

Vistas como intrusas maculando o sagrado espaço masculino e machista, as mulheres encontram-se uma série de obstáculos para legitimar seu papel como coprotagonistas do futebol. O desafio é ainda maior para as torcedoras negras, como explicam a mestre em Comunicação Mayra Bernardes e a designer e estudante de Pedagogia Maíra dos Anjos. Convidadas nos episódios especiais sobre racismo do Podcast das Marias (produzido por torcedoras cruzeirenses e com pautas voltadas para a legitimação do papel da mulher no futebol), Maíra e Mayra revisitaram alguns pontos da fala do técnico Roger Machado, relacionando-as com suas experiências como mulheres negras num ambiente tão machista e racista. 

Mayra Bernardes destaca que o “racismo para as mulheres negras está muito relacionado à aparência” e à inadequação ao padrão de beleza imposto pela norma branca.  Maíra dos Anjos endossa trazendo esse ponto para o contexto do futebol. “É só ver nos desfiles de uniformes. Quantas modelos são negras? Você não vai encontrar aquele padrão com facilidade nas arquibancadas. É preciso fazer um esforço imenso para tentar se adequar à esta norma branca da beleza. Por mais que alisemos os cabelo ou façamos qualquer outro procedimento estético, sempre seremos mulheres negras”, exemplifica.

Mayra Bernardes destacou a fala do treinador Roger Machado sobre ser o único negro na faculdade de Educação Física e a falta de negros no jornalismo esportivo. Para o mestrado, Mayra – cuja dissertação discutiu a transição capilar na publicidade de cosméticos – foi a fundo nas pesquisas sobre a presença do negro na mídia. “Escrevi um artigo dizendo que quando uma pessoa preta aparece, ela sempre é a única. Num grupo de 10 repórteres de TV, um vai ser negro. Geralmente, para legitimar a emissora como “não racista”. Mas se ela não é racista, porque só dá espaço para um negro? Isso é péssimo, pois transforma pessoas em uma única referência dentro de um grupo que corresponde a 54% de toda a população brasileira. É impossível que uma pessoa possa representar uma população tão grande e complexa”, reforça.

Para Maíra dos Anjos, ser a única negra nos lugares é de uma responsabilidade muito grande.

Sobre ser “a única”, Maíra desabafa. “Na fila do Mineirão, sou sempre a menina preta. Sou um ponto de referência por conta da cor da minha pele. Minha mãe fez de tudo para eu estivesse nos melhores ambientes. Então, muitas vezes e em muitos lugares, fui e sou a única negra, e isso me faz carregar um fardo muito grande, porque todo e qualquer assunto sobre sobre cor de pele passa a ser minha responsabilidade”. 

Cruzeirenses frequentadoras de estádios, Mayra e Maíra destacaram no Podcast das Marias a falta do sentimento de pertencimento entre a torcida. “O futebol é um ambiente completamente hostil e permite que o ser humano exponha o pior de si. E quando você é uma mulher negra ou um homem negro, no contexto do futebol, a primeira coisa que vai ser motivo de chacota será a cor da sua pele. Se você for xingar um jogador branco, raramente vai ofendê-lo se referindo à cor da pele. Eu nunca vi isso. Mas ouvi, inúmeras vezes, chamarem jogadores e árbitros negros de ‘macaco’. Isso me faz pensar muito se quero continuar a ser uma torcedora assídua. A sensação que eu tenho é que a qualquer momento irei virar motivo de chacota e passar por alguma humilhação. E como ali estou numa minoria, prefiro me abster, o que é triste, pois o futebol deveria ser um ambiente de união, e não de afastamento”, lamenta Maíra. 

 Apesar dos reveses, resistir é a única opção para ela. “Eu não vou deixar de existir, mesmo que muitas pessoas queiram. Não vou voltar pro tronco, não vou deixar de frequentar os ambientes onde ficam incomodados com minha presença. Isso não é um problema meu, é um problema de quem é racista”, enfatiza. 

Paixão nacional para poucos

Historicamente, o esporte mais popular do Brasil nunca foi para todos. Criado em berço de ouro, no fim do século 19, o futebol foi, em suas primeiras décadas, uma atividade desportiva restrita à elite branca, dentro e fora dos campos. Ao mesmo tempo em que ganhava notoriedade nos clubes de regatas – dividindo as atenções aristocráticas com os esportes náuticos –, o futebol chegava clandestinamente às várzeas e se popularizava entre os pobres e negros. Com a profissionalização do esporte, em 1933, a barreira segregacionista no futebol parecia ter sido derrubada para sempre.  Mas era apenas impressão.

O decreto-lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941, proibiu a prática de modalidades esportivas “que não combinavam com a formação física do belo sexo”, entre elas o futebol. Regulamentado pelo Regime Militar, o decreto só fora revogado em 1979, graças à luta das jogadoras e relevância econômica mundial do futebol. 

De origem branca e aristocrática, e, por alguns anos, proibido para mulheres, o futebol só se tornou uma paixão das massas na segunda metade do século 20. No entanto, inclinou nos últimos anos para um novo processo de elitização com o fim das “gerais”, transformação dos estádios em arenas, criação de programas de sócio-torcedores e, consequentemente, aumento dos valores dos ingressos. 

“A partir do momento em que os clubes passaram  a comercializar camisas oficiais a mais de R$200, ingressos a R$100 e criar programas de sócio a preços elevados, eles deixaram claro não quer que a população preta faça parte. Quanto mais cifras são colocadas nesse orçamento para se legitimar como ‘torcedor de verdade’, mais o cenário se torna excludente para o negro, que é minoria nas classes A e B no Brasil”, pondera Maíra dos Anjos. 

Mayra Bernardes acredita que essa padronização não é por acaso. “Os clubes querem um torcedor da norma branca e burguesa”, dispara. 

Educação e formação humanizada 

Mayra Bernardes: “os clubes não estão nem aí para a formação humana de seus jogadores”. 

As frases dos Racionais MCs (“Amo minha raça, luto pela cor. O que quer que eu faça, é por nós, por amor”) e de Angela Davis (“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”) deram o tom no contundente desabafo que o jogador Taison fez em seu Instagram após os insultos racistas que ouviu no estádio. Apesar de episódios como este serem rotineiros no futebol mundial, ainda são poucos são os atletas negros que se manifestam sobre o assunto. No Podcast das Marias, foram questionados os motivos pelos quais ídolos do passado e do presente, como Pelé e Neymar, nunca se assumiram como “porta-vozes” da causa. Maíra acredita se tratar de um reflexo da falta de consciência social e racial da maioria dos atletas. 

“Seria muito importante que os atletas tivessem essa consciência para resistir ao racismo. Mas  quanto mais ele atinge certo status financeiro e social, vai se afastando dessa luta. No entanto, é preciso se lembrar que por mais dinheiro que possamos ganhar, seremos para sempre negros”, pondera. 

Mayra destaca que os jovens jogadores abandonam a escola muito cedo para se dedicarem integralmente ao futebol, e por isso, os clubes teriam de ter como missão auxiliá-los no desenvolvimento de suas consciência social e racial. “Seria uma ótima ação antirracista por parte dos clubes oferecer essa formação aos atletas mais novos. Mas só querem que eles façam gols. Não estão nem aí para a formação humana de uma pessoa que tem o poder de transformar essas relações tão desiguais dentro do futebol”, observa.

As entrevistadas, no entanto, acreditam não ser justo cobrar posicionamentos apenas dos atletas negros, afinal, o racismo é um problema, sobretudo, dos brancos. Voltando à frase da ativista do movimento negro e principal voz do feminismo negro, Angela Davis, ser antirracista é um papel que deve ser assumido por todos. 

Maíra relembra o episódio envolvendo Daniel Alves, quando era jogador do Barcelona, que comeu uma banana que fora arremessada em sua direção. No momento do ataque, nenhum companheiro branco manifestou indignação ou solidariedade ao brasileiro. “Sempre vai precisar de um negro para ser referência no assunto. Já foi o Daniel Alves, foi o Aranha, agora é o Roger Machado ou Taison. Os brancos também precisam se posicionar”, avalia. 

Impunidade e “desculpas esfarrapadas”

Não é justo culpar apenas o futebol pelo racismo, uma vez que os estádios são apenas uma pequena amostra da sociedade. Mas o que torna o local tão permissivo para essas agressões? Além do histórico aristocrático do esporte, Mayra inclui a impunidade. “Apesar de racismo e injúria racial serem crimes no Brasil, não vemos as punições serem aplicadas conforme a lei. Ou quando são, costumam ser medidas muito brandas”. 

Ela também cita a deslegitimação dos atos racistas. “Quando a gente comenta que sofreu racismo em algum lugar, as pessoas sempre nos cobram: ‘por que você não processa? Por que você não chamou a polícia’, como se fosse resolver o problema. Pelo contrário, isso gera mais problemas, uma vez que as instituições são racistas. E as pessoas que detêm o poder de fazer alguma coisa não conseguem enxergar o racismo e refutam dizendo que o agressor estava brincando, que a fala foi tirada do contexto, a banana escorregou da mão do torcedor…”. 

Os suspeitos de agressão contra o segurança do Mineirão usaram e abusaram desse tipo de “desculpa esfarrapada” para se defenderem das acusações. Não são racistas. Estavam bêbados. Têm irmãos negros. E um deles ainda destacou que corta cabelo com uma pessoa negra. Sobre esse caso, o inquérito policial segue aberto e em investigação. 

Após as agressões em Belo Horizonte e na Ucrânia, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol atualizou os números de casos de racismos registrados no ano: 42 no futebol brasileiro, 13 envolvendo brasileiros no exterior e 5 em torneios continentais na América do Sul. 

Árbitros podem encerrar partida após atos racistas

Em julho deste ano, entrou em vigor o novo Código Disciplinar da Fifa, entidade máxima do futebol mundial, que permite ao árbitro suspender a partida em casos de racismo dentro e fora de campo. No entanto, a decisão de encerrar ou não o jogo só deve ser tomada após outras medidas, como anúncios no alto-falante solicitando o fim das agressões, não surtirem efeito imediato. No jogo entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev, os atletas solicitaram que a arbitragem desse fim à partida, mas seguindo o protocolo Fifa, aguardaram alguns minutos antes de decidirem pela continuidade do jogo, vencido pelo Shakhtar, time dos brasileiros que foram alvo de racismo.  As arbitragens em todo mundo são orientadas a relatar os casos de racismo na súmula da partida, que podem ser julgados pelos tribunais desportivos.


Rafaela é jornalista e integrante do Podcast das Marias, um podcast de quatro torcedoras cruzeirenses que compartilham o amor pelo Cruzeiro e pelo futebol.

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