“Sou a menina preta na fila do estádio”

Por: Rafaela Freitas
Jornalista e Maria do Podcast das Marias

Os gritos de “macaco” e “olha a sua cor!” ecoaram Mineirão afora, colocando novamente de forma fugaz o racismo no futebol na pauta da imprensa brasileira. O caso ganhou um reforço da Ucrânia: na mesma tarde, os brasileiros Taison e Dentinho foram vítimas de racismo num jogo entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev.  Era só mais um domingo normal de futebol ao redor do Planeta.  

Após essas ocorrências – registradas no mês da Consciência Negra –, a CBF e a maior parte dos clubes brasileiros seguem inertes no combate ao racismo – e a outros preconceitos e discriminações. Enquanto isso, assistem o Esporte Clube Bahia se tornar a maior referência em ações afirmativas no futebol brasileiro. Em outubro de 2019, Roger Machado, técnico do time baiano, e Marco Aurélio de Oliveira, comandante do Fluminense, os únicos treinadores negros da série A, participaram de uma ação promovida pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Na entrevista coletiva pós-jogo, Roger foi contundente ao explicar didaticamente sobre racismo estrutural e questionar a falta de negros em cargos de gestão do futebol e na imprensa. Na ocasião, o técnico ainda destacou a situação das mulheres negras como maioria nos casos de feminicídio e de suas ausências no jornalismo esportivo. 

Foto: Thiago Ribeiro / AGIF

Vistas como intrusas maculando o sagrado espaço masculino e machista, as mulheres encontram-se uma série de obstáculos para legitimar seu papel como coprotagonistas do futebol. O desafio é ainda maior para as torcedoras negras, como explicam a mestre em Comunicação Mayra Bernardes e a designer e estudante de Pedagogia Maíra dos Anjos. Convidadas nos episódios especiais sobre racismo do Podcast das Marias (produzido por torcedoras cruzeirenses e com pautas voltadas para a legitimação do papel da mulher no futebol), Maíra e Mayra revisitaram alguns pontos da fala do técnico Roger Machado, relacionando-as com suas experiências como mulheres negras num ambiente tão machista e racista. 

Mayra Bernardes destaca que o “racismo para as mulheres negras está muito relacionado à aparência” e à inadequação ao padrão de beleza imposto pela norma branca.  Maíra dos Anjos endossa trazendo esse ponto para o contexto do futebol. “É só ver nos desfiles de uniformes. Quantas modelos são negras? Você não vai encontrar aquele padrão com facilidade nas arquibancadas. É preciso fazer um esforço imenso para tentar se adequar à esta norma branca da beleza. Por mais que alisemos os cabelo ou façamos qualquer outro procedimento estético, sempre seremos mulheres negras”, exemplifica.

Mayra Bernardes destacou a fala do treinador Roger Machado sobre ser o único negro na faculdade de Educação Física e a falta de negros no jornalismo esportivo. Para o mestrado, Mayra – cuja dissertação discutiu a transição capilar na publicidade de cosméticos – foi a fundo nas pesquisas sobre a presença do negro na mídia. “Escrevi um artigo dizendo que quando uma pessoa preta aparece, ela sempre é a única. Num grupo de 10 repórteres de TV, um vai ser negro. Geralmente, para legitimar a emissora como “não racista”. Mas se ela não é racista, porque só dá espaço para um negro? Isso é péssimo, pois transforma pessoas em uma única referência dentro de um grupo que corresponde a 54% de toda a população brasileira. É impossível que uma pessoa possa representar uma população tão grande e complexa”, reforça.

Para Maíra dos Anjos, ser a única negra nos lugares é de uma responsabilidade muito grande.

Sobre ser “a única”, Maíra desabafa. “Na fila do Mineirão, sou sempre a menina preta. Sou um ponto de referência por conta da cor da minha pele. Minha mãe fez de tudo para eu estivesse nos melhores ambientes. Então, muitas vezes e em muitos lugares, fui e sou a única negra, e isso me faz carregar um fardo muito grande, porque todo e qualquer assunto sobre sobre cor de pele passa a ser minha responsabilidade”. 

Cruzeirenses frequentadoras de estádios, Mayra e Maíra destacaram no Podcast das Marias a falta do sentimento de pertencimento entre a torcida. “O futebol é um ambiente completamente hostil e permite que o ser humano exponha o pior de si. E quando você é uma mulher negra ou um homem negro, no contexto do futebol, a primeira coisa que vai ser motivo de chacota será a cor da sua pele. Se você for xingar um jogador branco, raramente vai ofendê-lo se referindo à cor da pele. Eu nunca vi isso. Mas ouvi, inúmeras vezes, chamarem jogadores e árbitros negros de ‘macaco’. Isso me faz pensar muito se quero continuar a ser uma torcedora assídua. A sensação que eu tenho é que a qualquer momento irei virar motivo de chacota e passar por alguma humilhação. E como ali estou numa minoria, prefiro me abster, o que é triste, pois o futebol deveria ser um ambiente de união, e não de afastamento”, lamenta Maíra. 

 Apesar dos reveses, resistir é a única opção para ela. “Eu não vou deixar de existir, mesmo que muitas pessoas queiram. Não vou voltar pro tronco, não vou deixar de frequentar os ambientes onde ficam incomodados com minha presença. Isso não é um problema meu, é um problema de quem é racista”, enfatiza. 

Paixão nacional para poucos

Historicamente, o esporte mais popular do Brasil nunca foi para todos. Criado em berço de ouro, no fim do século 19, o futebol foi, em suas primeiras décadas, uma atividade desportiva restrita à elite branca, dentro e fora dos campos. Ao mesmo tempo em que ganhava notoriedade nos clubes de regatas – dividindo as atenções aristocráticas com os esportes náuticos –, o futebol chegava clandestinamente às várzeas e se popularizava entre os pobres e negros. Com a profissionalização do esporte, em 1933, a barreira segregacionista no futebol parecia ter sido derrubada para sempre.  Mas era apenas impressão.

O decreto-lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941, proibiu a prática de modalidades esportivas “que não combinavam com a formação física do belo sexo”, entre elas o futebol. Regulamentado pelo Regime Militar, o decreto só fora revogado em 1979, graças à luta das jogadoras e relevância econômica mundial do futebol. 

De origem branca e aristocrática, e, por alguns anos, proibido para mulheres, o futebol só se tornou uma paixão das massas na segunda metade do século 20. No entanto, inclinou nos últimos anos para um novo processo de elitização com o fim das “gerais”, transformação dos estádios em arenas, criação de programas de sócio-torcedores e, consequentemente, aumento dos valores dos ingressos. 

“A partir do momento em que os clubes passaram  a comercializar camisas oficiais a mais de R$200, ingressos a R$100 e criar programas de sócio a preços elevados, eles deixaram claro não quer que a população preta faça parte. Quanto mais cifras são colocadas nesse orçamento para se legitimar como ‘torcedor de verdade’, mais o cenário se torna excludente para o negro, que é minoria nas classes A e B no Brasil”, pondera Maíra dos Anjos. 

Mayra Bernardes acredita que essa padronização não é por acaso. “Os clubes querem um torcedor da norma branca e burguesa”, dispara. 

Educação e formação humanizada 

Mayra Bernardes: “os clubes não estão nem aí para a formação humana de seus jogadores”. 

As frases dos Racionais MCs (“Amo minha raça, luto pela cor. O que quer que eu faça, é por nós, por amor”) e de Angela Davis (“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”) deram o tom no contundente desabafo que o jogador Taison fez em seu Instagram após os insultos racistas que ouviu no estádio. Apesar de episódios como este serem rotineiros no futebol mundial, ainda são poucos são os atletas negros que se manifestam sobre o assunto. No Podcast das Marias, foram questionados os motivos pelos quais ídolos do passado e do presente, como Pelé e Neymar, nunca se assumiram como “porta-vozes” da causa. Maíra acredita se tratar de um reflexo da falta de consciência social e racial da maioria dos atletas. 

“Seria muito importante que os atletas tivessem essa consciência para resistir ao racismo. Mas  quanto mais ele atinge certo status financeiro e social, vai se afastando dessa luta. No entanto, é preciso se lembrar que por mais dinheiro que possamos ganhar, seremos para sempre negros”, pondera. 

Mayra destaca que os jovens jogadores abandonam a escola muito cedo para se dedicarem integralmente ao futebol, e por isso, os clubes teriam de ter como missão auxiliá-los no desenvolvimento de suas consciência social e racial. “Seria uma ótima ação antirracista por parte dos clubes oferecer essa formação aos atletas mais novos. Mas só querem que eles façam gols. Não estão nem aí para a formação humana de uma pessoa que tem o poder de transformar essas relações tão desiguais dentro do futebol”, observa.

As entrevistadas, no entanto, acreditam não ser justo cobrar posicionamentos apenas dos atletas negros, afinal, o racismo é um problema, sobretudo, dos brancos. Voltando à frase da ativista do movimento negro e principal voz do feminismo negro, Angela Davis, ser antirracista é um papel que deve ser assumido por todos. 

Maíra relembra o episódio envolvendo Daniel Alves, quando era jogador do Barcelona, que comeu uma banana que fora arremessada em sua direção. No momento do ataque, nenhum companheiro branco manifestou indignação ou solidariedade ao brasileiro. “Sempre vai precisar de um negro para ser referência no assunto. Já foi o Daniel Alves, foi o Aranha, agora é o Roger Machado ou Taison. Os brancos também precisam se posicionar”, avalia. 

Impunidade e “desculpas esfarrapadas”

Não é justo culpar apenas o futebol pelo racismo, uma vez que os estádios são apenas uma pequena amostra da sociedade. Mas o que torna o local tão permissivo para essas agressões? Além do histórico aristocrático do esporte, Mayra inclui a impunidade. “Apesar de racismo e injúria racial serem crimes no Brasil, não vemos as punições serem aplicadas conforme a lei. Ou quando são, costumam ser medidas muito brandas”. 

Ela também cita a deslegitimação dos atos racistas. “Quando a gente comenta que sofreu racismo em algum lugar, as pessoas sempre nos cobram: ‘por que você não processa? Por que você não chamou a polícia’, como se fosse resolver o problema. Pelo contrário, isso gera mais problemas, uma vez que as instituições são racistas. E as pessoas que detêm o poder de fazer alguma coisa não conseguem enxergar o racismo e refutam dizendo que o agressor estava brincando, que a fala foi tirada do contexto, a banana escorregou da mão do torcedor…”. 

Os suspeitos de agressão contra o segurança do Mineirão usaram e abusaram desse tipo de “desculpa esfarrapada” para se defenderem das acusações. Não são racistas. Estavam bêbados. Têm irmãos negros. E um deles ainda destacou que corta cabelo com uma pessoa negra. Sobre esse caso, o inquérito policial segue aberto e em investigação. 

Após as agressões em Belo Horizonte e na Ucrânia, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol atualizou os números de casos de racismos registrados no ano: 42 no futebol brasileiro, 13 envolvendo brasileiros no exterior e 5 em torneios continentais na América do Sul. 

Árbitros podem encerrar partida após atos racistas

Em julho deste ano, entrou em vigor o novo Código Disciplinar da Fifa, entidade máxima do futebol mundial, que permite ao árbitro suspender a partida em casos de racismo dentro e fora de campo. No entanto, a decisão de encerrar ou não o jogo só deve ser tomada após outras medidas, como anúncios no alto-falante solicitando o fim das agressões, não surtirem efeito imediato. No jogo entre Shakhtar Donetsk e Dínamo de Kiev, os atletas solicitaram que a arbitragem desse fim à partida, mas seguindo o protocolo Fifa, aguardaram alguns minutos antes de decidirem pela continuidade do jogo, vencido pelo Shakhtar, time dos brasileiros que foram alvo de racismo.  As arbitragens em todo mundo são orientadas a relatar os casos de racismo na súmula da partida, que podem ser julgados pelos tribunais desportivos.


Rafaela é jornalista e integrante do Podcast das Marias, um podcast de quatro torcedoras cruzeirenses que compartilham o amor pelo Cruzeiro e pelo futebol.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Me declaro negra. Sou negra. Logo, olham pra mim e falam “mas vc é tão clarinha, vc não é negra, é cabocla”. Respondo “sou negra com muito orgulho”.
    O racismo existe e persiste ao nosso redor, é uma luta diária, exaustiva e cansativa.

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