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A Operação Lula ─ Três ‘erros’ da justiça e o imaculado Delcídio

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O Instituto Lula amanheceu cercado por homens em trajes camuflados. Fantasiaram-se, com trajes militares de guerra, policiais designados para exercer coação física sobre um ex-presidente pacífico e democraticamente eleito duas vezes. Onde já se viu isso? Quem assistiu aos golpes militares da década de 70 na América Latina, compreende o significado tétrico dessa indumentária. Ela foi escolhida para conferir certo simbolismo ao ato e intimidar qualquer resistência. Ou seja, para infundir terror psicológico e paralisar possíveis oponentes, em especial a militância do PT. E também para expressar a fantasia da parte fascista da classe média, com seus vivas à PM e seus pedidos histéricos de golpe militar.

Jornalistas LivresO uniforme camuflado é certamente um ultraje à democracia, mas em verdade um traje a rigor para o tão almejado grand finale, expressão adotada ontem em uma análise da Folha/UOL. Este grand finale seria o tiro de misericórdia na incipiente democracia social que o Brasil viveu na última década. Por isso, vale a pena ver como alguns “erros” da justiça e da polícia aplainaram o terreno para essa apoteose.

Foram três “erros” muito instrutivos sobre como se dá a investigação em torno de Lula e como se vem preparando isso que foi desencadeado agora, sua condução coercitiva para depor na PF. O primeiro desses ‘erros’, em 10 de fevereiro, foi a divulgação de um despacho sigiloso do juiz Sérgio Moro. Eis o resumo da ópera em matéria do UOL de 10 de fevereiro:

O despacho do juiz Sérgio Moro que autorizou a Polícia Federal (PF) a instaurar um inquérito para apurar se empresas investigadas na Operação Lava Jato pagaram por obras de melhorias em um sítio frequentado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi publicado ontem (9) “inadvertidamente” no site do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, por um equívoco do Poder Judiciário.

Pois bem. Pagamos o judiciário mais caro do mundo, para que em questões extremamente delicadas, que podem implicar sérias consequências para o país na avaliação internacional, se façam ações “inadvertidas” e se cometam “equívocos” –sempre em prejuízo de uma mesma parte?

O segundo erro foi grotesco, no nível mais policialesco que se possa conceber, e aconteceu em 1º de março. Foi a determinação do promotor Cássio Conserino, do MP de São Paulo, de que Lula e sua esposa deveriam depor e que

“em caso de não comparecimento importará na tomada de medidas legais cabíveis, inclusive condução coercitiva pela Polícia Civil e Militar nos termos das normas acima referidas”.

Logo em seguida, como se não fosse mais que um cisco nos olhos da Opinião Pública, como se esse carnaval não rebaixasse uma instituição essencial nos regimes democráticos, o Ministério Público, o promotor Cássio Conserino informou ao Jornal Nacional que cometera um erro. Um mero e banal erro. Que Lula e Marisa não seriam obrigados a depor. É evidente que, diante de um “erro” desse e da sua gravidade, em muitas partes do mundo, esse procurador seria afastado. Mas nada aconteceu, prova de que ele nada a favor de uma corrente de cumplicidade estabelecida no Judiciário brasileiro.

O uso de uma instituição judicial para fins que são alheios a ela, para autopromoção, para perseguição, para uma guerrilha que mancha a imagem do inimigo e serve à sua desmoralização, não pode ser conduta acertada.

Mas o que fez o Ministério Público Federal agora, quando, sem motivo algum que o justificasse, ordenou que Lula fosse conduzido à força para depor três dias depois, isto é, hoje? Esse gesto não guarda ares de uma vingança contra a afirmação de Lula, três dias atrás, quando disse que não deporia no MP de São Paulo? A proximidade temporal entre os dois eventos não deixa sérias dúvidas no ar?

O terceiro “erro” foi em relação ao Instituto Lula, que tem sido o porta-voz, o único, a rebater dia após dia, hora após hora, a enxurrada de calúnias que se derrama sobre o ex-presidente. A partir da “análise” de uma planilha feita por Marcelo Odebrecht chegava-se a curiosas “hipóteses investigativas”:

Entre os “usos” estão a anotação “Prédio (IL)” e o número 12.422.000, provável referência a R$ 12,4 milhões, segundo a PF. Os policiais apontaram que “não foram encontradas menções a tal sigla” no aparelho celular periciado de Marcelo Odebrecht, mas “pode ser uma alusão ao Instituto Lula”.

Pois bem. A dedução sherlockiana foi de que a Odebrecht poderia ter doado R$ 12,4 milhões para a construção do prédio em que funciona o Instituto Lula. Está na Operação Acarajé, de 23 de fevereiro. Ocorre, como veio a ser esclarecido, que se trata neste caso também de um erro. Que o Instituto Lula não ocupa um prédio, mas um casarão. E que este não foi construído agora, mas há muito tempo.

Cada um desses erros serviu a um belo carnaval na mídia, desorientou a opinião pública, e distribuiu interrogações levianas em torno da figura de Lula. O único traço real em tudo isso é a cumplicidade convergente das instituições da Justiça, da Polícia Federal e da mídia para produzirem os fatos. E, desses fatos que devem ser produzidos doa a quem doer, o mais importante, o que se consagrará como o grand finale, é a prisão de Lula.

A Operação Aletheia quer ser o grand finale da Lava Jato. Mas o surpreendente ainda é ver que a delação de Delcídio do Amaral, vazada ontem pela revista IstoÉ, é apresentada como o pivot da Operação, ao menos é o que nos conta o jornalista Leandro Mazzini em sua coluna ao tratar da “Operação Lula” (Janot faz reunião de emergência com núcleo da Lava Jato). Será que, por não ter encontrado nada consistente em 24 meses de investigações, o desespero levou a conceder crédito às revelações de um indivíduo que há poucas semanas era execrado pelo país inteiro? Estaremos diante de uma nova forma de vida híbrida, nascida da Lava Jato e dos laboratórios das delações premiadas, o “vilão imaculado”?

Ele foi chamado de delinquente, mentiroso, bandido, desclassificado, corrupto, chantagista etc., logo após a sua prisão em 25 de novembro. Hoje Delcídio se vê reabilitado, as homes voltam a estampar suas melhores fotos, com seus melhores ternos, como se um banho de Lava Jato pudesse deixar sua alma brilhante e engomada num piscar de olhos. Da mesma forma, como ontem o UOL jogou na home uma foto do vice-presidente Michel Temer, já em pose presidencial. Ora, mesmo num país habituado à cretinice, sabe-se que não se pode jogar baldes de excremento na cabeça de um Delcídio num dia e fazer dele testemunha limpa e confiável, no outro. Isso seria confessar que o desespero é quem dá as cartas agora.

Imagine-se que absurdo não seria se, algum dia, uma versão da história brasileira desse período começasse assim: “Quando ficou claro o ridículo das acusações sobre o barquinho que custou R$ R$ 4.126.00, adquirido em 24 prestações, sobre o tríplex de 200 m2, que nunca foi comprado, sobre o sítio de propriedade de terceiros, começou uma luta com regras inteiramente alheias à sensatez judicial. A questão não era mais ‘Lula é culpado ou não?’ mas sim outra bem diversa: ‘Lula pensa que pode ser mais esperto que a gente? Um torneiro mecânico? Ele vai ver só’. Parecia que algumas instituições do país, entre as quais a mídia, entendiam participar de uma briga de gangues. Nenhum golpe era tido por proibido ou impróprio ao decoro. Cometer erros, atos inadvertidos, inadvertências, equívocos, era só a ponta desse iceberg. Havia ainda os ‘vazamentos’.”

Pois é. Os vazamentos, que vieram crescendo em intensidade nos últimos dias, e ontem, com a delação escorrida nas páginas da revista IstoÉ, ultrapassaram todas as medidas. Este vazamento, pelo teor de sua fonte, as confissões da figura mais desonrada da República, o senador Delcídio do Amaral, era para ser objeto de gargalhadas. No entanto, como dizem duas notas do jornalista Leandro Mazzini em sua coluna no UOL, levou o Procurador Geral, Rodrigo Janot, a uma reunião noturna.

Janot tem em mãos há mais de uma semana o conteúdo bombástico da delação premiada do senador Delcídio do Amaral (PT-MS). O vazamento à imprensa ontem pode acelerar nova fase da operação.

Não é engraçado? O vazamento sai da justiça para a mídia, ou seja, de algum cano furado na PF ou no MPF para a torneira da revista IstoÉ. A mídia agradece e publica e, assim, “o vazamento à imprensa” acelera a nova fase da operação pelo MPF. Os dados sigilosos são ofertados graciosamente para serem violados. A violação do que deve ser preservado, ao invés de impugnar o conteúdo, faz acelerar o seu uso. Nunca ouvi falar de um inquérito administrativo (deve existir, mas nunca vi na imprensa suas conclusões e os nomes dos punidos) aberto para investigar vazamentos. Como é assunto que pode render muito dinheiro para quem sai na frente nas bancas, não é impossível que um vazamento seja bem remunerado. Razão a mais para ser investigado. Mas não. O vazamento se tornou estimulo para “acelerar” a tomada de decisões da justiça. Não é grotesco?

Globo

Nesse redemoinho de audácia crescente, nada é respeitado, nem os elementos culturais e étnicos, nem os riscos econômicos. Batizou-se a 23ª fase da operação como Acarajé. E acarajé, como informou uma matéria da Folha, passou a significar “dinheiro de propina”. Não importando se é um símbolo da cultura brasileira, reconhecido pela UNESCO, se é bem intangível ou patrimônio imaterial. Acarajé agora é crime. Nada é intangível. Também não importa o tamanho dos prejuízos econômicos que revelações fictícias, vazamentos oportunos e seletivos, venham a produzir.

Ao humilhar um ex-presidente humilha-se na verdade toda a instituição que tem em sua cúpula a presidência, isto é, um dos poderes inteiro, o Executivo. Se num país, um poder pretende se impor sobre todos os demais, o resultado é uma deformação. Desde que as deformidades passam a dar as cartas, todas as regras se decompõem. Um poder só é equilibrado dentro do equilíbrio de poderes. E isso calibra a visão internacional a respeito do país. Ou alguém pensa que enganar a China e os EUA é a mesma coisa que mistificar os setores menos esclarecidas da opinião brasileira? Os parceiros internacionais do Brasil hoje enxergam diante deles uma república desprezível.

Esse foi o ensaio geral para a prisão de Lula, que talvez seja o objeto da 25ª fase da Lava Jato. A alma desse golpe é menos consistente do que um sopro de apagar velinha de aniversário de criança. A situação não é mais nem menos do que as tantas situações de pré-golpe, ainda que com vestimenta mais camuflada, que o país viveu desde os anos 30.

(Acabei de assistir ao vídeo do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que afirma sobre a condução coercitiva de Lula: “Temos os favores feitos pelas empreiteiras, OAS e Odebrecht, um sítio, que nós estamos investigando a propriedade, mas acreditamos até o momento ser do senhor Luiz Inácio, e também temos bem claro que houve pagamentos de benfeitorias no triplex em Guarujá.” Se a motivação foi essa, é pior do que se tivesse sido pautada pela delação de Delcídio, já que essas hipóteses estão envelhecidas e não foram provadas. Se foi isso, foi pura demonstração de força. Ou seja, violência pura. É verdade que o Procurador diz que “Este é o momento de sermos republicanos, não há ninguém isento de investigação no país”. Ora, investigação é uma coisa, condução coercitiva sob constrangimento físico humilhante é outra completamente diferente. Nesse caso, trata-se de praticar uma humilhação ignóbil, não só a Lula e ao PT, mas também aos eleitores de Lula e, o que é pior, à instituição da Justiça, que não pode ser usada para fins que deixem qualquer margem de suspeita de que não são os seus.

O nome Operação Aletheia parece ter sido um perigoso e comprometedor erro. A palavra grega significa desvelamento, revelação, é a noção central do pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Ele a colocou em circulação e a tornou célebre. Como o mundo dá muitas voltas, uma das ironias da história é que a grande revelação (Aletheia) sobre a vida de Heidegger, foi justamente sobre sua íntima colaboração com o nazismo. Por isso, o gesto de colocar na testa de uma operação policial um nome tão suspeito, talvez diga mais do que era a intenção dos seus promotores. Talvez desvele mais do que esperavam. Ao menos se for verdade que, nas ações que estamos observando, se revela um desejo de destruição das instituições democráticas, engajando-as por uso abusivo numa caçada política sem precedentes.


 

Bajonas Teixeira de Brito Junior é doutor em Filosofia, professor universitário e escritor.

 

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4 Comments

4 Comments

  1. Duogenes, o grego

    05/03/16 at 20:51

    Parabenizo o comentarista. Considero extremamente importantes suas ponderações a colocações. Acho que está mais do que na hora de os jornalistas independentes, sejam eles jornalistas profissionais ou não, blogueiros, etc partirem para a divulgação desses gravíssimos acontecimentos também a nível internacional. E atuar também com objetivo investigativo, como os jornalistas do Washington Post fizeram no caso Watergate. Não quero comparar o que ocorre aqui com o famoso caso, mas sem dúvida há cheiro podre no ar. Sds

  2. Gabriel

    06/03/16 at 14:04

    MEU DEUS! Meus parabéns pela matéria! Creio haver muitas pessoas neste meio sendo guiadas por uma mídia mal-intencionada e a Jornalistas Livres traz uma releitura clara e verdadeira de fatos e nada mais. Essa matéria me fez enxergar a real situação do país que não conseguimos enxergar claramente hoje por conta do bombardeamento de informações falsas e injuriosas. Parabéns, parabéns e mais parabéns!

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  4. DANTAS FILHO

    08/03/16 at 17:52

    PROFESSOR O SR. LAVOU MINHA ALMA DE CIDADÃO. POIS NÃO SE TRATA DE DEFENDER OU ACUSAR NINGUEM, MAIS DE AMPARAR NOSSO BEM MAIOR QUE É O ESTADO DE DIREITO E ISONOMIA NA APLICAÇÃO DAS LEIS ONDE ARROGANCIA E INTERPRETAÇÕES PESSOAIS NUNCA DEVEM PREVALECER. AO LER SEU TEXTO, SENTI UMA INEXPLICAVÉL EMOÇÃO QUE ME LEVOU DE VOLTA AOS ANOS DE 1970 QUANDO AINDA MUITO JOVEM NÃO ENTENDIA MUITO BEM O QUE SE PASSAVA NA NOITE ESCURA DA DITADURA, PORÉM SABIA QUE ERA PRECISO MUDAR E MUDOU. HOJE, SINTO QUE NOVAMENTE A SOCIEDADE ORGANIZADA, LIDERADA POR GENTE CONSCIENTE DEVE ESTAR VIGILANTE PARA QUE JAMAIS SE REPITA POR AQUI 1964. ACREDITO QUE EM RELAÇÃO AO PASSADO JÁ NÃO HAVERIA MAIS CLIMA E LOGISTICA PARA UMA AVENTURA DE FARDA, PORÉM NOS PREOCUPA OUTRO TIPO DE DITADURA, NO CASO DO JUDICIÁRIO, MINISTERIO PUBLICO , POLICIA FEDERAL PARTIDÁRIA E A GRANDE MIDIA, ESSA COMO SEMPRE CUIDANDO DE SEUS INTERESSES. MAS TAMBÉM QUE FOI QUE MANDOU A PRESIDENTE DILMA, DAR UM MINISTÉRIO PARA A TURMA DA RECORD/UNIVERSAL ?

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#EleNão

Moradores da Maré são bailarinos em espetáculo com temporada na Suiça

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Foto: Andi Gantenbein, de Zurique, Suíça, para os Jornalistas Livres

Denúncias sobre os atuais tempos de antidemocracia, assassinatos da população preta, pobre e periférica e o da vereadora Marielle Franco aparecem em cartazes erguidos pelos bailarinos de “Fúria”, espetáculo de Lia Rodrigues, considerada uma das maiores coreógrafas brasileiras da atualidade e uma das mais engajadas na realidade política do país.

A foto é da noite deste sábado (16), durante apresentação do grupo brasileiro no ‘Zürcher Theaterspektakel’, em Zurique, Suíça.

No Brasil, Fúria estreou em Abril, no Festival de Curitiba. A montagem evidencia, de maneira crítica, relações de poder, desigualdades, e as interligações entre racismo e capitalismo.

O espetáculo foi concebido no Centro de Artes da Maré, na Maré, RJ. O local foi inaugurado em 2009, e o projeto nasceu do encontro de Lia Rodrigues Companhia de Danças com a Redes da Maré. Os bailarinos são moradores da favela e de periferias do RJ.

Fruto dessa mesma parceria é a Escola Livre de Dança da Maré que resiste, em meio ao caos do governo violento de Witzel contra as favelas do RJ.

 

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Temer/Kassab preparam ataque ao seu direito à Internet

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O método Temer de solapar direitos dos cidadãos brasileiros tem novo alvo: a Internet. Sem qualquer discussão prévia, os golpistas querem mudar a composição do Comitê Gestor da Internet.

A consulta pública determinada pelo governo, sem diálogo prévio com os membros do Comitê e com apenas 30 dias de duração, certamente pretende aumentar o poder e servir apenas aos interesses das empresas privadas. As operadoras de telefonia têm todo o interesse do mundo em abafar as vozes de técnicos, acadêmicos e ativistas que lutam pela neutralidade da rede, por uma Internet livre, plural e aberta.

Veja, abaixo, a nota de repúdio ao atropelo antidemocrático da consulta pública determinada por Temer/Kassab. A nota é da Coalizão Direitos na Rede que exige o cancelamento imediato desta consulta.

Nota de repúdio

Contra os ataques do governo Temer ao Comitê Gestor da Internet no Brasil

A Coalizão Direitos na Rede vem a público repudiar e denunciar a mais recente medida da gestão Temer contra os direitos dos internautas no Brasil. De forma unilateral, o Governo Federal publicou nesta terça-feira, 8 de agosto, no Diário Oficial da União (D.O.U.), uma consulta pública visando alterações na composição, no processo de eleição e nas atribuições do Comitê Gestor da Internet (CGI.br).

Composto por representantes do governo, do setor privado, da sociedade civil e por especialistas técnicos e acadêmicos, o CGI.br é, desde sua criação, em 1995, responsável por estabelecer as normas e procedimentos para o uso e desenvolvimento da rede no Brasil.

Referência internacional de governança multissetorial da Internet,

o Comitê teve seu papel fortalecido após a

promulgação do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014)

e de seu decreto regulamentador, que estabelece que cabe ao órgão definir as diretrizes para todos os temas relacionados ao setor. A partir de então, o CGI.br passou a ser alvo de disputa e grande interesse do setor privado.

Ao publicar uma consulta para alterar significativamente o modelo do Comitê Gestor de forma unilateral e sem qualquer diálogo prévio no interior do próprio CGI.br, o Governo passa por cima da lei e quebra com a multissetorialidade que marca os debates sobre a Internet e sua governança no Brasil.

A consulta não foi pauta da última reunião do CGI.br, realizada em maio, e nesta segunda-feira, véspera da publicação no D.O.U., o coordenador do Comitê, Maximiliano Martinhão, apenas enviou um e-mail à lista dos conselheiros relatando que o Governo Federal pretendia debater a questão – sem, no entanto, informar que tudo já estava pronto, em vias de publicação oficial. Vale registrar que, no próximo dia 18 de agosto, ocorre a primeira reunião da nova gestão do CGI.br, e o governo poderia ter aguardado para pautar o tema de forma democrática com os conselheiros/as.

Porém, preferiu agir de forma autocrática.

Desde sua posse à frente do CGI.br, no ano passado, Martinhão – que também é Secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – tem feito declarações públicas defendendo alterações no Comitê Gestor da Internet. Já em junho de 2016, na primeira reunião que presidiu no CGI.br, após a troca no comando do Governo Federal, ele declarou que estava “recebendo demandas de pequenos provedores, de provedores de conteúdos e de investidores” para alterar a composição do órgão.

A pressão para rever a força da sociedade civil no Comitê cresceu,

principalmente por parte das operadoras de telecomunicações,

apoiadoras do governo.

Em dezembro, durante o Fórum de Governança da Internet no México, organizado pelas Nações Unidas, um conjunto de entidades da sociedade civil de mais de 20 países manifestou preocupação e denunciou as tentativas de enfraquecimento do CGI.br por parte da gestão Temer. No primeiro semestre de 2017, o Governo manobrou para impor uma paralisação de atividades em nome de uma questionável “economia de recursos”.

Martinhão e outros integrantes da gestão Kassab/Temer também têm defendido publicamente que sejam revistas conquistas obtidas no Marco Civil da Internet, propondo a flexibilização da neutralidade de rede e criticando a necessidade de consentimento dos usuários para o tratamento de seus dados pessoais. Neste contexto, a composição multissetorial do CGI.br tem sido fundamental para a defesa dos postulados do MCI e de princípios basilares para a garantia de uma internet livre, aberta e plural.

Por isso, esta Coalizão – articulação que reúne pesquisadores, acadêmicos, desenvolvedores, ativistas e entidades de defesa do consumidor e da liberdade de expressão – lançou, durante o último processo eleitoral do CGI, uma plataforma pública que clamava pelo “fortalecimento do Comitê Gestor da Internet no Brasil, preservando suas atribuições e seu caráter multissetorial, como garantia da governança multiparticipativa e democrática da Internet” no país. Afinal, mudar o CGI é estratégico para os setores que querem alterar os rumos das políticas de internet até então em curso no país.

Nesse sentido, considerando o que estabelece o Marco Civil da Internet, o caráter multissetorial do CGI e também o momento político que o país atravessa – de um governo interino, de legitimidade questionável para empreender tais mudanças –

a Coalizão Direitos na Rede exige o cancelamento imediato desta consulta.

É repudiável que um processo diretamente relacionado à governança da Internet seja travestido de consulta pública sem que as linhas orientadoras para sua revisão tenham sido debatidas antes, internamente, pelo próprio CGI.br. É mais um exemplo do modus operandi da gestão que ocupa o Palácio do Planalto e que tem pouco apreço por processos democráticos.

Seguiremos denunciando tais ataques e buscando apoio de diferentes setores,

dentro e fora do Brasil,

contra o desmonte do Comitê Gestor da Internet.

 

8 de agosto de 2017, Coalizão Direitos na Rede

 

Notas

1 A Coalizão Direitos na Rede é uma rede independente de organizações da sociedade civil, ativistas e acadêmicos em defesa da Internet livre e aberta no Brasil. Formada em julho de 2016, busca contribuir para a conscientização sobre o direito ao acesso à Internet, a privacidade e a liberdade de expressão de maneira ampla. O coletivo atua em diferentes frentes por meio de suas organizações, de modo horizontal e colaborativo. A nota está em https://direitosnarede.org.br/c/governo-temer-ataca-CGI/ .

2 Para ouvir a entrevista, à Rádio Brasil Atual, de Flávia Lefévre, conselheira da Proteste e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet, que afirma que as mudanças visam a atender interesses do setor privado e ferem caráter multiparticipativo do Comitê: https://soundcloud.com/redebrasilatual/1008-enrevista-flavia-lefevre

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FRAGMENTO E SÍNTESE

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Ligar a tv logo cedo num pequeno quarto de hotel no interior do país é desentender-se dos fatos nos telejornais matutinos. Abre-se a janela e uma menina vai à escola à beira do rio, um menino faz gol de bicicleta entre guris e o homem ergue a parede de sua casa.  Tudo tão distinto das ruas em alvoroço de protestos urbanos ou políticos insanos.  No rincão o que se busca é continuar vivo entre chuvas e trovões, sem não ou talvez. Tudo é certo. Sem modernidades calam ou arremedam nossa urbanidade, gente que se defende com pimentas e ervas, oração e vizinhança. Voz sem boca, boca sem voz, essa gente não é parte nas notícias selvagens dos jornais distantes.  Se resolvem entre cozidos, arte, bola e santos. No país de tantos cantos, muitos voam fora da asa e sem golpes entre si vão tocando suas mazelas e graça.

Mas vivemos tempos obscuros, a noite persiste em nossos avançados quinhentos e tantos anos e muitos santos. Dizem que burro velho é difícil se corrigir nos hábitos. Em manhã chuvosa na grande São Paulo, ligo a tv e o notbook, as janelas se abrem antes que a cortina deixe entrar o novo dia. Surpreendente ver na tv o deputado Jair Bolsonaro afirmando em um clube israelita na cidade do Rio, que se presidente for, não teremos mais terras indígenas no país. Ao mesmo tempo o computador expõe na rede social a opinião de meu amigo Ianuculá Kaiabi Suiá, jovem liderança do Parque Indígena do Xingu, onde leio ao som do deputado que ladra:

Jair Bolsonaro, obrigado por você existir. Graças a você, hoje, temos noção de quanto a população brasileira carece de conhecimento, decência, consciência, juízo, amor e que carrega um imenso sentimento de ódio sem saber o porque. Sim, sim, não sabem. Um exemplo? Veja a bandeira de quem te aplaude, é de um povo que, assim como nós, sofreu as piores atrocidades cometidas pelas pessoas que pensavam como você. Enfim, eu não sei se essa parcela do povo brasileiro pode ser curada, mas vou pedir para um pajé fumar um charuto sagrado e revelar se o espírito maligno que se apossou da tua alma pode ser desfeita com uma grande pajelança.

Ianuculá sabe o que diz, sabe de todo martírio vivido pelos povos originários, e mesmo assim se propõe a consultar o mundo dos espíritos.

 

É deus e diabo na terra do sol, a mesma terra que ofende também abriga e anuncia uma mostra de cinema indígena nos próximos dias. Terra de etnias e corpos na terra, a cidade maravilhosa do Rio não se calará diante do fascismo desses tempos sombrios, acompanhe.

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