Samba, agoniza mas não morre

Créditos: divulgação

Por Patrícia de Matos

Namur chegou com um pandeiro na mão e um cigarro na boca. Parecia se contentar com o cenário escolhido para a primeira entrevista desta reportagem: a escadaria situada na rua Treze de Maio, um dos lugares mais emblemáticos do tradicionalíssimo bairro do Bixiga, cravado no centro de São Paulo. Devagar, como quem comemora e, ao mesmo tempo, lamenta a rotina de quem tem horas de batuque pela frente, sobe os degraus para as primeiras fotos e se queixa: “o Bixiga mudou muito. Você saía aqui nas ruas e tinha casas noturnas, de samba tinham várias — Teleco-Teco, Igrejinha, Catedral do Samba, Boca da Noite. Cresci vendo Benito Di Paula iniciando carreira, trombando com Osvaldinho da Cuíca…”

Namur Scaldaferri, líder do grupo Madeira de Lei, na escadaria da Treze de Maio. Foto Patrícia de Matos

O saudoso é nada mais, nada menos, do que o responsável pela composição do samba-enredo que deu o primeiro título de escola campeã para a icônica Vai-Vai, em 1978. De lá para cá, foram 15 vitórias, das quais 7 são filhas diretas das inspirações musicais do filho de italianos. Os mais de 45 anos de samba de Namur Scaldaferri renderam um dos maiores suspiros boêmios e musicais da Bela Vista de hoje, o grupo Madeira de Lei. Formado por amigos que corriam pelas ruas quando meninos enquanto davam seus primeiros passos na música, o grupo realiza, há 11 anos, todas as sextas-feiras, o “Samba da Treze”, uma roda de samba de rua instalada na esquina da Conselheiro Carrão com a Treze de Maio.

O som toca com uma técnica precária, acompanhado por uma multidão que canta alto, mal distribuída de forma caótica em uma rua disputada palmo a palmo por pessoas e automóveis. Jovens de classe média sedentos por uma dose de tradição se misturam a frequentadores da Vai-Vai e personagens como o Sol, que tem uma canção só para ele. Do outro lado da rua, há uma loja com focaccias e o seu letreiro é escrito em italiano. Pode-se ver a igreja da Achiropita, também, cujo padre se tornou um dos protagonistas de uma briga pelo fim da festa.

 

 

 

Namur jovem na escadaria da Treze de Maio, o segundo da esquerda para a direita. Foto: arquivo pessoal

O SAMBA CONTINUA?

Foi de uns quatro anos para cá, segundo Carla Borges, a produtora do grupo, que o samba estremeceu. No dia 7 de julho de 2018, durante um dos inúmeros diálogos do Madeira de Lei com os órgãos públicos — no caso, a subprefeitura da Sé —, a organizadora conheceu um inquérito civil com reclamações sobre a atividade de todas as sextas. Nele, há denúncias de perturbação do sossego, uso de drogas, entre outras ocorrências.

Carla Borges, produtora do Samba da Treze, minutos antes do batuque começar. Créditos: Patrícia de Matos

A ação foi produto de um movimento composto pela igreja da Achiropita, a Associação Viva Treze e a Coordenadoria Estadual de Conselhos Comunitários (CONSEG). Esse foi o estopim de um embate de vários capítulos que envolvem o samba, o poder público e os comércios da região. Em um dos episódios, Carla chegou a ser multada em 20 mil reais pela realização do evento. Em outro, a Polícia Militar foi enviada para impedir a realização da festa que já tinha centenas de confirmados no Facebook.

Há cerca de dois anos, Flávia March, Comandante do 11º Batalhão da Política Militar, começou a participar das reuniões junto ao Ministério Público a fim de, segundo ela, “buscar solução para o conflito, discutir o tema de forma pacífica, pois o diálogo e a mediação são a melhor solução.”

Em uma das conversas com integrantes do Madeira de Lei, a policial teria advertido sobre “a necessidade de comunicação do organizador do evento junto aos órgãos públicos, no sentido de obter autorizações.” Alega, ainda, que o barulho se perpetua na rua após a apresentação do grupo, causando reclamações devido à “perturbação do sossego público (…), venda de bebidas alcoólicas a menores, uso de entorpecentes, golpes da máquina de cartão, furtos de celulares, entre outros.”

O Samba da Treze não é a única atividade realizada no famoso quarteirão do Bixiga. Há, também, a festa da paróquia italiana que tem, entre seus patrocinadores, a rede Globo. Durante os dias de festividade, dezenas de barracas se misturam ao público do samba. As ruas são fechadas e as músicas e orações podem ser ouvidas a certa distância através de caixas de som instaladas no alto dos postes de luz.

A presidente da coordenadoria, Patrícia Navarro, defende que “as duas festas (a da paróquia e a do samba) são distintas, mesmo porque a Achiropita acontece apenas uma vez no ano durante, aproximadamente, 10 dias.” A capitã Flávia diz que “não há qualquer distinção quanto ao tratamento, seja qual for o pleito junto à Polícia Militar. O que ocorre é que a Festa da Achiropita encontra-se no calendário da prefeitura.”

Descendente de italianos, Namur costumava, ao longo de seus 60 anos de vida, frequentar a igreja da Achiropita, onde também foi batizado. Declara-se favorável à festa, mas questiona que “as barracas ficam na rua o mês inteiro, fecha todo o quarteirão. Aí pode. Não sei se é porque é uma festa italiana e a nossa é negra. A gente começa a pensar, porque a nossa festa é popular, de origem negra e de participação dos menos favorecidos. Aqui não importa se você chega de Mercedes ou de chinelo de dedo.”

Músicos do grupo Madeira de Lei, no auge da apresentação. Créditos: Patrícia de Matos

ESCRAVIDÃO, SEDE E FOME NO DNA DO BIXIGA

Com 75 ruas — onde estão 860 imóveis tombados — e 1,5 quilômetros de diâmetro, o Bixiga é uma cidade interiorana, daquelas que você cruza de uma ponta a outra cumprimentando padeiros e vizinhos. Apesar da moda de prédios cada vez mais altos, uma parte do bairro parece ser uma fotografia de uma São Paulo que, no século 20, foi três — um vilarejo, uma grande cidade e uma metrópole.

Hoje, o Rio Saracura corre embaixo de uma importante avenida do bairro — a 9 de julho. Em uma de suas extremidades, onde atualmente fica o Anhangabaú, vendiam-se escravos. Apesar de não ver mais o céu, o rio é testemunha dos que fugiam seguindo sua margem até onde fica a região da 14 Bis e da Vai-Vai. O lugar se configurou em um quilombo, pólo da cultura africana que fez do Bixiga uma das poucas zonas da época em que se viam, mais livremente, jogos de capoeira, ritmos africanos e, claro, o samba.

Em uma São Paulo composta majoritariamente por negros — a cada três pessoas negras, uma era branca — o pano de fundo do projeto racista de branqueamento se conjugou com a nascente indústria que, por sua vez, provocou a substituição da força de trabalho escrava pela dos imigrantes italianos.

Quem revela essa história é Paulo Santiago, fotógrafo e fundador do Museu do Bixiga. Ele conta que “os italianos começaram a se misturar com os negros, tanto que dos quinze títulos que a Vai-Vai ganhou, sete foram de sambas-enredo compostos pelo Namur, líder do Madeira de Lei e filho de italianos. Essa ligação dos negros com os italianos se deu de cara. São grupos barulhentos, muito musicais, muita coisa de comida.” Depois, vieram os nordestinos, resultando na composição social do bairro que conhecemos hoje. “Os negros fugiam da escravidão, os italianos fugiam da fome e os nordestinos, da seca”, fundamenta.

Paulo Santiago, fundador do Museu do Bixiga. Créditos: Patrícia de Matos

Na visão de Santiago, o bairro precisa de união. “A sociedade brasileira está dividida. Qualquer coisa vira uma guerra. Aí entra o MP e piora tudo (…) não adianta criar rivalidades, que não vai levar a nada. Nessa guerra, todos perdem.”

SAMBA, O PATRIMÔNIO

Em defesa do Samba da Treze, Namur diz que a festa segue o que a lei manda. “Antes da meia noite,  o samba acaba”, afirma. Neste horário, já estão a postos dezenas de ambulantes, dispostos a saciar a sede de milhares de baladeiros sedentos por diversão. É aí que a festa continua.

Logo, outros bares, um do lado do outro, recebem o insaciável público do samba recém encerrado. Estes se somam aos que vão chegando de outros lugares e, de repente, a rua Treze de Maio vira um point mais parecido com a configuração de um bloco de carnaval.

Paulo concorda com Namur. “Esse é um problema do psiu (a lei que determina limite de decibéis de acordo com o horário). Disseram que o psiu só trabalha até 22h porque não tem verba. Bem, eu acho que se tem esse problema, ele é do psiu, não dá para jogar em cima do Madeira de Lei.”

Em meados de julho deste ano, o grupo deu um passo adiante na luta pela continuidade do show musical. Lançou um abaixo-assinado. Nele, dizem: “nós, moradores, comerciantes e frequentadores do Samba da Treze assinamos o presente abaixo-assinado no sentido de que a manifestação cultural praticada pelo Grupo Madeira de Lei (…) não oferece perturbação do sossego, degradação da rua (…) tão pouco algazarra e brigas, portanto, não nos opomos à continuidade do mesmo.”

A movimentação política rendeu, entre outras manifestações de apoio, um Projeto de Lei, já em fase final de tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, que torna o Samba da Treze Patrimônio Imaterial de capital paulistana. O projeto foi elaborado pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL-SP). Em suas palavras, as “manifestações contrárias à festa se demonstraram um tanto preconceituosas.” O parlamentar diz que foi à roda de samba e que vê “o contrário do que afirmam: ali as pessoas transitam. Quando mais gente ocupando os espaços públicos, melhor. Fica muito mais perigoso quando a zona fica morta. O esvaziamento da cidade cria um ambiente propício para o perigo.”

O vereador quer criar um ambiente de diálogo que estimule o consenso na região e enxerga na proposta, “além da garantia do reconhecimento de uma cultura do samba em São Paulo, que já é patrimônio imaterial do Brasil (…) o fomento ao turismo”. Ele acredita que a ação do Ministério Público foi autoritária, na medida em que “parece que, logo no começo, o MP já tomou um lado. O órgão poderia ser o espaço para esse diálogo, mas infelizmente não senti essa disposição deles.” Para ele, “falta a prefeitura assumir a sua responsabilidade em implementar políticas culturais voltadas para a região.”

Em um cenário que parece um retrato de um tempo que se foi, as inúmeras disputas a céu aberto na esquina da Treze de Maio com a Conselheiro Carrão não deixam a desejar a nenhum roteiro da mais dramática novela das oito. Uma vez, o padre da igreja, depois de se envolver em brigas com bares vizinhos, chegou a ser ferido com uma faca.

Ninguém parece querer falar baixo enquanto o samba toca, “sem arredar o pé”, como diz Namur. Camadas de história, afeto e ressentimento podem ser encontradas ali, na mesma esquina de sempre. A vida, naquele lugar, tem ritmo negro e cheiro de focaccia. Enquanto leis tramitam, cantineiros se revoltam e o poder público se contorce diante do nó cultural, oito cadeiras e um som precário são suficientes para puxar os milhares que, todas as sextas-feiras, esperam o início do primeiro batuque para espantar os fantasmas da semana. Namur profetiza: “É tradição, o samba continua.”

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. O samba da treze madeira de lei
    É tradição Cultura tem que continuar
    Não atrapalha ninguém pelo ao contrário
    Faz muita gente feliz que gosta de samba de raiz
    Faz a gente voltar no tempo
    Fora que eles são demais; arrastam multidão
    Não tenho nem o que falar ??????????

  2. Eu, Sandra Oliveira, me casei nesta esquina, com a benção dessa roda de samba, vestida num vestido de noiva vermelho. Exatamente como o Tinin nos orientou, a música começou qdo a missa acabou e terminou a meia noite. Acredito que o problema seja pq as pessoas não vão embora qdo os músicos se recolhem. Fico muito triste com tudo isso, pois hj sou viúva e esse casamento na 13 com a Roda de Samba do Namur foi é uma das lembranças mais alegre da minha vida.

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