Jornal da Record em SC cria Fake News para promover porte de armas

Com base na opinião de proprietários e frequentadores de Clubes de Caça e Tiro, jornal bolsonarista espalha que Santa Catarina reduziu criminalidade com registro de armas
Jornal faz apologia ao uso de armas com base em relação improvável entre facilidade para o porte de armas e diminuição da criminalidade

Santa Catarina prova com seu exemplo que quanto maior facilidade para o porte e posse de armas de fogo menor é o índice de criminalidade e violência. Essa é a criminosa mentira veiculada pelo jornal Notícias do Dia, do Grupo RIC/Record em Florianópolis (SC), para pressionar o Congresso a aprovar o decreto presidencial que facilita a liberação do uso de armas para a população. A falta de escrúpulos crescente da publicação tornou-se objeto de denúncia nacional sobre a ética jornalística. Na manchete de capa da terça-feira (28/5), intitulada “SC tem mais armas e menos violência“, o ND reproduz uma fake news já denunciada por sites de verificação de notícias a fim de incutir na opinião pública a relação de causa e efeito estapafúrdia entre  o armamentismo e a paz social. A reportagem apresenta o estado de Santa Catarina como um exemplo de que o elevado número de registro de armas explicaria a redução nos índices de criminalidade, apresentados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública como os mais baixos do país.

Essa mentira criminosa, considerando que o jornalismo tem o dever de contribuir com a cultura da paz, foi inicialmente veiculada pelo Jornal da Cidade Online, de extrema direita, e multiplicada nas redes sociais com 71,9 mil compartilhamentos. Há uma semana, no dia 23 de maio, precisamente, o Instituto Verificador de Notícias, o Lupa, da Revista Piauí (Grupo Folha), já havia mostrado que a relação infundada entre armamento da população e paz social se baseia em dois dados falaciosos: o de que Santa Catarina tem o maior registro de armas de fogo e o mais baixo índice de criminalidade do país. Na quarta-feira mesmo (29/5), a Objethos, uma revista de análise crítica da mídia ligada ao Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, publicou artigo denunciando as distorções éticas de toda a edição do ND, que dedica, além da capa, duas páginas à defesa unilateral das investidas armamentistas do presidente. Sobre a manchete, a analista aponta: “A frase projeta uma relação de causa e efeito capaz de estimular uma população a viver em guerra, já que indica que o volume de armas está estatisticamente relacionado aos índices de contenção da violência”.
No afã de defender as teses armamentistas, o jornal sucumbe de vez à mentira e à deturpação dos panfletos bolsonaristas mais inescrupulosos, desrespeitando o dever jornalístico ao contraditório e à defesa da Declaração dos Direitos Humanos. Em duas páginas, desconhece as análises dos criminalistas que comparecem à mídia nacional e internacional demonstrando o aumento da violência nos países permissivos ao consumo bélico. Finge ignorar as críticas de que por trás do decreto está o interesse de promover o mercado de armas no Brasil, privatizar a segurança pública e legalizar o abuso de poder policial, franqueando o extermínio de pobres e negros sob a alegação de legítima defesa. A própria reportagem enaltece as previsíveis vantagens para os clubes de Tiro, já abundantes no estado, que devem experimentar uma grande expansão, segundo projetam os proprietários desse comércio.

Matérias, entrevistas, artigos e editoriais cercam a reportagem intitulada “Decreto das armas é direito de defesa”, assinada por Cristiano Rigo Dalcin, como um verdadeiro campo de bombardeio ideológico. Todos os intertítulos tratam como se fosse um consenso absoluto, uma via de mão única essa polêmica explosiva, amplamente contestada por setores representativos da sociedade (judiciário, OAB, acadêmico, parlamentar, organizações em defesa dos direitos humanos, entidades pacifistas). O exemplo “mágico” de Santa Catarina para encorajar a disseminação do uso de armas no Brasil se baseia em correspondências forjadas entre segurança e armamento da população, sem nenhum fundamento científico. Apoia-se unicamente na interpretação forçada de informações dos aparatos de repressão e na opinião viciada de agentes diretamente interessadas no decreto, como os militares que atuam na área de segurança, os propagandistas da indústria bélica e os donos das casas de tiro.

Benê Barbosa, ardoroso lobista do decreto do armamento no Congresso Nacional. Foto: arquivo pessoal

É o caso do militante ultradireitista do DEM, Benê Barbosa, presidente da ONG Viva Brasil, ativista que faz lobby no Congresso Nacional e no Senado pelo direito ao acesso a armas de fogo, identificado pelo jornal como “especialista em segurança”, entrevistado pela reportagem. Entusiasta do decreto, coautor do livro Mentiram para mim sobre o desarmamento, o professor de tiro Benê Barbosa afirma que o recente decreto assinado pelo presidente representa um “avanço gigantesco no respeito ao direito de defesa do cidadão”. Em sua página do Facebook, ele comemora a publicação de matérias e editoriais pró-armamentismo pelo ND. A postagem elogiando a matéria do dia 28/5 obteve 3,4 mil engajamentos e 1,4 mil compartilhamentos. Seguidores fazem comentários debochando dos possíveis argumentos de estudantes, sociólogos e esquerdopatas:  “Aposto que as ruas são mais iluminadas, diz o estudante de sociologia da UFSC kkkkk”, ironiza Wiliam Lopes de Oliveira.

Sócio de Clube de Caça e Tiro, Carlos Vitorino projeta a expansão do ramo em SC com aprovação do decreto armamentista. Foto: arquivo pessoal

Outro entrevistado de isenção zero e suspeição máxima é Carlos Vitorino, sócio proprietário do Combat de Biguaçu, que pertence a uma rede de Clube e Escola de Caça e Tiro da Grande Florianópolis. Instrutor de tiro que posa para fotos do seu perfil no Facebook portando armamentos e munição pesada, Vitorino se diz “ansioso com a regulamentação do novo decreto”. Depois de afirmar que “quem procura uma arma lícita é o cidadão de bem”, faz apologia aos clubes de tiro como aqueles que capacitam esses cidadãos de bem. O Combat é vizinho do Clube de Tiro.38, de São José, também na grande Florianópolis, frequentado por Carlos e Eduardo Bolsonaro e o esfaqueador de seu pai, ainda candidato a presidente, Adélio Bispo dos Santos. E, como foi revelado no dia 14 de maio pelo DCM, os três eram colegas de tiro de Nilton César Souza Júnior, o ilustre Nilton Dog, assassino do delegado da PF De Angra dos Reis, Adriano Antônio Soares, que investigava a morte do ministro Teori Zavaski. Tudo gente boa.

Entre os militares entrevistados pela reportagem estão o coronel Araújo Gomes, secretário de Estado de Segurança Pública do governo bolsonarista do comandante Carlos Moisés (PSL), surpreende com uma opinião ambígua sobre as vantagens e desvantagens da liberação das verbas, pontuando que o porte e posse de armas traz “mais responsabilidade para as forças de segurança, que precisam evitar que as armas caiam nas mãos de criminosos”. O mais importante da sua declaração fica obliterado pela edição geral: o coronel desautoriza claramente a hipótese proposta pelo jornal de que a redução da criminalidade seja determinada pelo alto índice de registros de armas. Embora esta afirmação derrube a manchete, a opinião do secretário Araújo fica isolada numa retranca à parte, intitulada: “Mais responsabilidade para as polícias”:
– A criminalidade está menos relacionada à disponibilidade promovida pela legalização das armas do que a outros fatores, como questões sociais e econômicas ou mesmo o tráfico de drogas, por exemplo. Essa é a opinião do comandante da PMSC (Polícia Militar de Santa Catarina) e chefe do Colegiado Superior de Segurança Pública do Estado, coronel Araújo Gomes. “Há países que são bastante flexíveis e tem altas taxas de criminalidade e há países flexíveis que têm baixos índices de criminalidade, indicando que esse talvez não seja o principal fator”, argumenta.

Como não podia faltar a relação de superioridade do Sul sobre o Nordeste, que marca esse pensamento de supremacia racial, conforme outro instrutor, Marcos Marçal, do mesmo Combat Clube e Escola de Caça e Tiro Esportivo, ao contrário do modelo de Santa Catarina: “o Nordeste tem os menores números de armas e as maiores taxas de homicídios”. O bombardeio do jornal Notícias do Dia, pertencente ao empresário Mario Petrelli, do Paraná, desdobra-se no quadro didático “Como obter armas de fogo”. E culmina com o editorial “O direito às armas”, endossado pela assinatura do grupo RIC, sem ouvir uma única voz contestando os dados e suas interpretações a favor da indústria bélica.Operando como um observatório de mídia voltado à análise da conduta ética dos veículos, o Objethos mostra que o jornal não ouve posicionamentos contraditórios. Nega, assim, ao leitor, o direito de conhecer pesquisas, dados e pontos de vista que refutam ou relativizam a tese dogmática em defesa do decreto presidencial que libera a posse de armas para amplos setores da população. “Os índices de criminalidade em Santa Catarina não estão relacionados ao porte de arma – e, ainda que estivessem, seria impossível comprovar este argumento. Ao investir nesta relação de causa e efeito, o jornal Notícias do Dia mentiu aos seus leitores, afastando-se do seu compromisso de informar e contribuir com o debate público e transformando-se em um panfleto de propaganda política pró Bolsonaro”, finaliza a jornalista Amanda Miranda, doutora em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pós-doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) no site Objethos.

Adélio Bispo de Oliveira frequentou o Clube de Tiro .38 na mesma época que Carlos Bolsonaro

Entre os maiores beneficiados estão os clubes de tiro, aos quais os cidadãos de bem (como Adélio Bispo, Carlos e Eduardo Bolsonaro e Nilton Dog), precisam estar obrigatoriamente filiados para terem autorizado o porte de armas, segundo o decreto.  Se o decreto for aprovado, redes de comunicação de Santa Catarina, estado com a maior concentração desse tipo de clube no país, expandirão seus lucros e poderão, quiçá, assumir de forma aberta o patrocínio de reportagens como essa do ND, veiculando anúncios de página inteira sobre o novo lançamento de espingarda da Taurus, ou de outra empresa estrangeira, para matar agricultores sem-terra, nas versões azul e cor de rosa, pra continuar no campo do “cidadão de bem”.

Também serão beneficiados pelo decreto armamentista e pelo pacote anticrime do ministro Sérgio Moro os policiais do bordão “atira e mata primeiro, pergunta depois”, como os que assassinaram à queima-roupa o adolescente negro Victor Henrique Xavier dos Santos no Feriado de Páscoa, no bairro dos Ingleses, em Florianópolis, no dia 18 de abril, enquanto brincava no quintal de casa mirando contra latinhas de refrigerante com um revólver de pressão. Passados 42 dias, nada se sabe a respeito do inquérito policial prometido pelo coronel Araújo para apurar se houve abuso de poder por parte dos dois policiais que invadiram a casa da família mascarados, sem mandado judicial e já disparando, enquanto a mãe trabalhava como cozinheira. Depois de executar o garoto com cinco tiros e deixá-lo sangrar até morrer sem socorro médico, a PM alegou ter agido em legítima defesa. Segundo a versão repassada pela Segurança Pública, Vitor teria apontado contra os policiais o seu revólver de brinquedo que eles confundiram com uma arma de verdade. Fake News da campanha armamentista: nem toda criança pode fazer arminha ou brincar com revólveres, como aquelas dos comícios de Bolsonaro. Negras e pobres não vale…

Protesto em Florianópolis contra o assassinato do menino negro e inocente Vitor Xavier por dois policiais que invadiram sua casa e o executaram com cinco tiros à queima-roupa. Passados 42 dias, nada se sabe a respeito do inquérito prometido pela Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina. Fotos: Thyago Bregeiron da Silva

#Verificamos: É falso que Santa Catarina tenha mais armas e a menor taxa de homicídios do país

 

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