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Saúde

Suspeitas de fraudes e ministro da Saúde põem em risco vidas indígenas

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por ANDRÉ BARROCA -Carta Capital 

 

 

CERIMÔNIA YANOMAMI EM RORAIMA, EM 2015. POVOS TRANSFRONTEIRIÇOS SEGUEM AMEAÇADOS

Uma história sobre municipalização de verbas, jatinhos em Roraima, inquérito da PF e Romero Jucá

Onze indígenas reuniram-se na quinta-feira 9 com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para reclamar de mortes ocorridas na comunidade deles, em Roraima, por falta de atendimento médico. Houve choro na sala. Não de Mandetta, deputado conservador que praticou seu esporte favorito no momento: condenar o gasto público com a saúde dos povos tradicionais.

O sonho do ministro é fechar a Secretaria de Saúde Indígena, criada em 2010. Ele diz que há muita corrupção na chamada Sesai, dona de 1,3 bilhão de reais por ano. De fato, fraude parece não faltar ali. Uma história que põe em risco a vida de indígenas. Resvala perigosamente na escolhida por Mandetta para comandar a Sesai. E tem lugar de honra para o presidente do MDB, Romero Jucá.

 

A Polícia Federal (PF) requereu à Sesai nos últimos dias cópias de 15 contratos. Abriu inquérito após receber uma denúncia de desvio de verbas. Uma das citadas pelo denunciante como participante de falcatruas é Verbena Lúcia Melo Gonçalves. Funcionária pública licenciada, Verbena foi chefe de gabinete da secretaria de 2011 a 2016. E voltará a ser, se depender da nova secretária, Silvia Nobre Waiãpi.

BOLSONARO ANUNCIA SEU MINISTRO DA SAÚDE, LUIZ HENRIQUE MANDETTA (FOTO: DIVULGAÇÃO

Empossada em 24 de abril, Silvia mandou o nome de Verbena à Casa Civil da Presidência, para análise. No inquérito em curso, a PF talvez comprove algo dito por quem conhece a Sesai por dentro. Verbena teria sido capturada no passado por interesses escusos. E teria se aproximado de Silvia para dar-lhe apoio político em troca de que tudo fique como está.

Em 3 de maio, Verbena foi com Silvia ao Pará visitar uma unidade de saúde para indígenas. Viajou sem ter sido nomeada e, segundo o ministério da Saúde, teve as despesas pagas por uma entidade privada, o Instituto Espinhaço. Ali, Silvia cobrou os indígenas por problemas de gestão e financeiros. Ouviu que o governo em Brasília tinha culpa também. Verbena foi apontada com o dedo pelo acusador.

 

Durante a viagem, Silvia autorizou, à distância, pagar 4,9 milhões a uma empresa que tinha cobrado a Sesai por transporte aéreo. Em regiões isoladas como a Amazônia, não é raro um paciente ser levado de avião e helicóptero. A cobrança partiu da Voare Táxi Aéreo, por um trabalho no distrito sanitário dos Yanomami, na divisa de Roraima com o Amazonas.

O contrato da Voare com a Sesai estava vencido, mas a empresa diz ter trabalhado de 10 de janeiro a 31 de março de 2019, razão da fatura enviada à administração do distrito, que por sua vez teve de prestar contas a Brasília. No ministério, o diretor do Departamento de Gestão da Saúde Indígena, Marcelo Alves Miranda, era contra pagar. Botou isso em um ofício enviado a Silvia em 26 de abril.

Silvia reconheceu os problemas, como o valor da hora de vôo cobrada pela Voare, de 2 mil reais —na vigência do contrato, custava 1,8 mil. Em nota a CartaCapital, o ministério diz haver um parecer de 16 de abril da Advocacia Geral da União (AGU) que respaldou o pagamento autorizado por Silvia.

 

Uma esquadrilha de suspeitas

 

A Voare é citada em outra denúncia de irregularidades no distrito sanitário Yanomami, que possui administração local e reporta-se à Sesai em Brasília. Um dos citados é o ex-senador Romero Jucá, ex-chefe da Funai nos anos 80 que sabe muito dos intestinos federais na área indígena. Essa queixa, feita em 8 de outubro do ano passado ao Tribunal de Contas da União, levou o tribunal a ordenar, no mês seguinte, uma auditoria em contratos de transporte aéreo da Sesai. O material foi enviado à PF e ao Ministério Público.

Segundo o denunciante, cujo nome é mantido em segredo, o distrito contrata transporte aéreo sem licitação e aeronaves em mau estado. Põe os aviões a serviço de garimpos, para levar trabalhadores e mantimentos. E trata os garimpeiros nos locais de saúde indígenas, um risco à vida dos nativos, sem imunidade para enfrentar doenças trazida pelos “brancos”. Também pagou por um helicóptero sem necessidade (em áreas não isoladas, o avião resolve).

Tudo foi feito, diz a denúncia, com o conhecimento e a benção do diretor do distrito sanitário Yanomami, Rousicler Jesus de Oliveira, que tinha casa com poço de água cavado enquanto falta água para indígenas. Em Brasília, comenta-se que Rousicler é um apadrinhado de Jucá. Mas o ex-senador, via assessoria de imprensa, nega tê-lo indicado.

É a repetição, segundo o denunciante, de um velho esquema com transporte aéreo em saúde indígena descoberto em Roraima e que terminou a prisões durante a Operação Metástase, em 2007. Na época não havia Sesai: a saúde indígena era obrigação da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O chefe da Funasa em Roraima era um indicado de Jucá, Ramiro Teixeira e Silva. Foi um dos 32 presos.

Um exemplo de irregularidade mencionada na denúncia ao TCU é de 14 de agosto de 2018. Como publicado no Diário Oficial da União, Oliveira autorizou contratar sem licitação a Icarai Turismo Táxi Aéreo. Motivo: necessidade emergencial no distrito sanitário Yanomami. Valor a ser pago à empresa: 6,3 milhões de reais.

A Icaraí tem sede em Araucária, cidade do Paraná. Foi aberta em 1992. No papel, seus sócios e administradores são Rodrigo Martins Mello e Paulo Brittes Martins. Fora do papel, pertenceria aos empresários Hissam Hussein Dehaini e Rihad Hissam Dehaini, segundo a denúncia ao TCU. Hissam foi um dos presos na Operação Metástase, há 12 anos.

Uma das origens daquela operação foi uma investigação sobre o envolvimento de Hissam com tráfico de drogas. Em 2000, o empresário foi preso durante uma diligência em Araucária feita pela CPI do Narcotráfico que acontecia no Congresso. Será que o transporte aéreo que deveria ser usado para tratar indígenas doentes se presta a levar drogas?

A Icaraí, sediada no Paraná, tem algo em comum com aquela empresa que Silvia Nobre mandou pagar recentemente, a Voare, sediada em Boa Vista, a capital de Roraima. As duas empresas atualizaram pela última vez seus dados cadastrais perante a Receita Federal no mesmo dia: 3 de novembro de 2005.

 

É a mesma data da última atualização feita por outra empresa de táxi aéreo, a Seta Norte. Esta empresa é do Amazonas, onde há uma parte territorial do distrito sanitário Yanomami. Pertence a Milton Carlos Veloso, um piloto. Veloso foi funcionário de Jucá no Senado e no escritório político do emedebista em Roraima. Costumava pilotar aviões usados pelo ex-senador.

Segundo uma notícia de 2012, Veloso e Jucá aproximaram-se em 2006. Ano posterior aos últimos arranjos cadastrais de Icaraí, Voare e Seta Norte. E anterior ao estouro da Operação Metástase. Não surpreende que, em Roraima e em Brasília, muita gente diga que o verdadeiro dono dessas empresas seria Jucá, ocultado por laranjas. “O ex-senador não tem empresa. Somente agora tem uma consultoria, após o término do mandato”, diz a assessoria de imprensa do emedebista.

Em maio de 2016, Neudo Campos, ex-governador de Roraima, entregou-se à polícia, para cumprir pena por corrupção no escândalo conhecido como “gafanhotos”, e declarou que Jucá era dono de um jato de uma outra empresa de táxi aéreo, a Rico. “Ele é tão vaidoso que até o prefixo do avião é PRJ. Esse jatinho está alugado para a Rico Táxi Aéreo, que aluga eventualmente lá para o governo do estado do Amazonas. Tem jato, tá riquíssimo, Romero Jucá é a maior fortuna do estado de Roraima. E ganhou isso de onde? Do erário público. E nas vistas de todo mundo.”

No papel, a Rico tem como sócios administradores os irmãos Átila e Metin Yurtsever. A exemplo de Icaraí, Seta Norte e Voare, foi em 2005 que atualizou pela última vez seus dados informados à Receita Federal, em 7 de maio.

A Voare tinha outro nome até 2017: Paramazonia. Mudou após uma sequência de notícias ruins. Um avião seu caiu e causou quatro mortes (piloto e três fiscais do Ibama). Um outro caiu em terra Yanomami com o piloto e um técnico em enfermagem. Ambos sobreviveram, mas um helicóptero da empresa foi resgatá-los e deixou cair no rio um deles, que desapareceu. O piloto do helicóptero era diretor da empresa e foi condenado logo em seguida por fraudes em contratos públicos.

 

Saúde indígena em risco

 

A grana embolsada pelas empresas de táxi aéreo com serviços aos indígenas engordou desde a criação da Secretaria de Saúde Indígena, em 2010. A verba da Sesai saiu de 360 milhões em 2011 para 1,3 bilhão em 2019. Os dois maiores aumentos de um ano para o outro se deram justamente quando Jucá foi o relator do orçamento. Em 2013 (245 milhões a mais) e 2015 (300 milhões).

O ministro da Saúde acha que é dinheiro de mais e põe na mesa as suspeitas de corrupção como argumento. Para ele, os recursos deveriam ser dados às prefeituras, para elas tratarem dos indígenas. Mandetta propôs publicamente a municipalização em março, mas foi pressionado por movimentos indígenas e, por ora recuou.

 

“O governo fala que existe corrupção, mas nós também queremos saber se tem“

 

 

 

Movimentos e especialistas não querem ouvir falar em municipalização. E nem no fim de um sistema de de saúde próprio para os indígenas. “A cidade é o lugar onde a gente sofre mais discriminação. Nossos povos são sempre os últimos nas filas [do SUS], diz Valéria Paye Pereira, uma das coordenadoras das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

“O governo fala que existe corrupção, mas nós também queremos saber se tem. A gente não está contente com a saúde indígena, na minha região há mais de um ano não tem profissional de saúde”, completa. Kaxuyana, a região dela, fica entre Amazonas e Pará.

A população indígena tem hoje cerca de 770 mil indivíduos, distribuídos por 5,3 mil aldeias e que falam umas 270 línguas. Talvez fossem mais, não houvesse tido 8,3 mil mortes entre eles por perseguição na ditadura, segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Há três razões básicas para manter um sistema específico para os indígenas, diz o médico Douglas Rodrigues, professor da Unifesp, pioneira em curso de especialização em saúde indígena. Uma é a territorialidade. Os povos tradicionais não se organizam com a mesma geografia das cidades. Há parte de uma aldeia ou reserva num município, parte em outro. O Parque do Xingu, por exemplo, espalha-se por nove cidades do Mato Grosso.

o médico Douglas Rodrigues, professor da Unifesp, em atendimento na aldeia Samaúma, na Terra Indígena do Xingu.

Outra razão é que os indígenas têm estruturas medicinais próprias, com raízes, plantas, pajelança. A medicina convencional, via SUS, não pode ser aplicada a eles como a pacientes “brancos”. “Tem de oferecer serviços que sejam complementares e adequados ao sistema deles”, afirma Rodrigues.

Por fim, é preciso levar em conta as diferenças entre indígenas e brancos. Entre os primeiros, a mortalidade infantil, por exemplo, é maior — morre-se muito por diarreia, em virtude de uma questão de hábitos tradicionais, por falta de saneamento.

No Xingu, área acompanhada mais de perto por Rodrigues, cresceu o número de casos de obesidade e de diabetes, graças a mudanças de hábitos alimentares trazidas pelo contato maior com os “brancos”. “Eles não têm a mesma informação, acham que ser gordo é bom.”

O ministro Mandetta acha que tirar dinheiro da saúde indígena também é bom.

 

 

 

 

 

 

Saúde

SUS pode ser privatizado com publicação de novo decreto de Bolsonaro

Conselho Nacional de Saúde rechaça a iniciativa, que pode dar os primeiros passos para jogar a saúde pública nas mãos da iniciativa privada e das operadoras de planos de saúde estrangeiras

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Em plena pandemia, ou talvez por isso mesmo, o presidente Jair Bolsonaro lançou o Decreto 10.530, publicado nesta terça-feira, 27, que pretende dar os primeiros passos para a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS), para quem as operadoras de planos de saúde norte-americanas têm os olhos voltados. A iniciativa foi rechaçada desde já pelo presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, que chama de “arbitrariedade” a intenção do governo federal de privatizar as Unidades Básicas de Saúde (UBS) de todo o país.

“Vamos tomar as medidas cabíveis. Precisamos fortalecer o SUS contra qualquer tipo de privatização e retirada de direitos”, disse Pigatto.

Assinado ontem, 26, o decreto presidencial já está em vigor e institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil para o período de 2020 a 2031 e baseado na visão neoliberal e privatista do governo Bolsonaro.

O decreto de Bolsonaro traz diretrizes econômicas, institucionais, de infraestrutura, ambiental e sociais – na qual estão eixos específicos sobre a saúde. Entre eles, “aprimorar a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), avançando na articulação entre os setores público e privado (complementar e suplementar)”. Conforme o documento, o avanço na articulação com o sistema privado de saúde vai aperfeiçoar o setor, “aumentando a eficiência e a equidade do gasto com adequação do financiamento às necessidades da população.”

Após tomar conhecimento do teor do decreto, Fernando Pigatto distribuiu a seguinte nota:

“Nós, do Conselho Nacional de Saúde, não aceitaremos a arbitrariedade do presidente da República, que no dia 26 editou um decreto publicado no dia 27, com a intenção de privatizar as unidades básicas de saúde em todo o Brasil. Nossa Câmara Técnica de Atenção Básica vai fazer uma avaliação mais aprofundada e tomar as medidas cabíveis em um momento em que precisamos fortalecer o SUS, que tem salvado vidas. Estamos nos posicionando perante toda a sociedade brasileira como sempre nos posicionamos contra qualquer tipo de privatização, de retirada de direitos e de fragilização do SUS. Continuaremos defendendo a vida, defendendo o SUS, defendendo a democracia.”

Notícia escondida

Em Porto Alegre, o jornalista Moisés Mendes tratou a questão em seu blog, observando que “os jornais esconderam a notícia sobre o decreto de Bolsonaro que abre a porteira para a privatização das Unidades Básicas de Saúde. Arranjaram um jeito de entregar um serviço essencial do SUS aos amigos de Paulo Guedes”, observou.

“A grande imprensa decidiu esconder a informação. O governo vai arranjar um jeito de transferir recursos públicos para quem atua como ‘operador’ privado na área da saúde. Vão depreciar ainda mais o serviço público e os quadros de servidores para contratar a parceirada da direita. O dinheiro que não existe hoje vai aparecer para construir unidades e remunerar parceiros. Que farão o quê?”, pergunta Moisés.

Segundo ele, o governo poderá até dizer que o sistema continuará público e universal, como manda a Constituição. “Mas a que custo? Quem pagará por essas parcerias é o setor público. Os parceiros vão entrar no negócio da saúde pública por desprendimento, para não ganhar nada?”, indaga o jornalista. “É preciso ver o que está camuflado nesse decreto que abre os estudos para a privatização do SUS, apenas começando pelas unidades básicas”, alertou.

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Saúde

A vulnerabilidade da população negra escancarada pela Covid-19

Sociedade Civil pressiona Congresso para discutir a situação

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Vulnerabilidade pelo Covid-19

Entidades apontam ainda que entre a população negra, quilombolas, mulheres, pessoas presas e moradores de favelas são os mais afetados

Por Alane Reis e Naiara Leite

No último sábado (8) o Brasil alcançou a marca de 100 mil mortes em decorrência do coronavírus. De acordo com a 11ª Nota Técnica divulgada pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da PUC-RJ, entre o número de óbitos, negros são 55% dos vitimados, contra 38% dos brancos. A mesma pesquisa aponta que as pessoas que não concluíram o ensino básico apresentam taxas três vezes maiores de letalidade (71%) ao adquirirem a doença do que pacientes com nível superior (22,5%).

A pandemia tem escancarado as violências do racismo na vida da população negra, das periferias e favelas, dos quilombos e comunidades rurais de todo país. Condições de moradia, saneamento básico, uso de transporte público, ocupações em postos de serviços essenciais fazem com que negros se exponham mais ao risco de adquirirem a doença. Mas além disso, as vulnerabilidades sociais têm agravado a situação da população negra no contexto atual: aumento do índice de pessoas convivendo com a fome e o não acesso a renda básica para suprir as necessidades fundamentais; o desemprego ou o dia a dia dos trabalhos informais; o não acesso a manutenção da educação em método home office; o crescimento das violências do Estado e doméstica; entre outros fatores, expõem as pessoas negras a diversas ameaças à vida e ao bem estar. 

Como forma de enfrentar esta realidade a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos apresentou no dia 13 de julho um requerimento, para realização de audiência pública junto a Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 (CEXCORVI) com o objetivo de discutir e incidir nos impactos do coronavírus nas populações negras e quilombolas. 

A Frente Parlamentar é presidida pelo deputado Marcelo Freixo (PSOL – RJ) e é formada por representantes da Câmara, do Senado e da sociedade civil. De acordo com Paola Gersztein, assessora do Instituto de Estudos Sócio-econômicos (INESC) na coordenação do GT de Direitos Humanos da Rede de Advocacy Colaborativo (RAC), o objetivo da audiência é a escuta de especialistas que representam a população negra acerca dos impactos da pandemia e a urgente visibilização que o tema merece, para que assim sejam tomadas medidas necessárias para a proteção e a garantia de direitos. “Nosso objetivo é denunciar, visibilizar e exigir providências do Estado que sempre tratou essas vidas como supérfluas, em um genocídio que se perpetua desde que a primeira pessoa negra foi violentamente arrancada de seu território e escravizada nessas terras”, afirma.

Paola Gersztein destaca que além da formalização do requerimento, as organizações da sociedade civil que compõem a Frente tem buscado apoio junto aos gabinetes dos deputados que fazem parte da CEXCORVI para que a realização da reunião técnica não tarde ainda mais. “Nesse processo, algo já ficou claro: a demora na concretização deste pedido é uma inequívoca expressão de racismo institucional”, enfatizou.

Vulnerabilidade pelo Covid-19
Ação comunitária feita por moradores do Complexo do Alemão (RJ)

O “Novo Normal” do Congresso

Desde o início da pandemia os trabalhos do Congresso Nacional têm sido realizados de maneira virtual. A sociedade civil, por meio da Frente Parlamentar, lançou um manifesto pressionando a garantia de sua participação no processo legislativo e a transparência das decisões tomadas pelo parlamento. Nenhuma medida proposta no manifesto foi acatada pelo presidente da câmara Rodrigo Maia (DEM – RJ). E neste cenário, parlamentares demoram para votar pautas essenciais como PLs de proteção às mulheres, indígenas e quilombolas; e ainda tentam pautar retrocessos de direitos, como foi o caso do “PL da grilagem”.

A Emenda Constitucional (EC 95), chamada da EC do Teto de Gastos, aprovada em 2016 pelo Congresso, resultou na perda de 20 bilhões de reais entre 2018 e 2020 para a saúde pública no Brasil. Os cortes limitaram a capacidade de uma resposta rápida e eficiente à pandemia da Covid-19, prejudicando principalmente as populações mais vulneráveis – ou seja, negras –, que dependem exclusivamente do SUS.

Ainda assim, o Congresso Nacional autorizou desde 20 de março, R$ 500 bilhões de reais para enfrentamento a Covid-19 no Brasil, não só para a saúde, mas diversas ações. Deste montante, apenas 54% já foram executados, o que é insuficiente considerando que é recurso específico para o enfrentamento da crise sanitária, já contamos com quatro meses do decreto de calamidade.

Carmela Zigoni, representante do Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR) na Frente Parlamentar, destaca que ao analisarmos as ações específicas do governo em enfrentamento à pandemia, a melhor execução é a do Auxílio Emergencial, pois trata-se de transferência direta da Caixa Econômica Federal para as contas dos beneficiários. “Do recurso geral destinado ao enfrentamento à pandemia, R$ 254,2 bilhões são reservados ao pagamento do auxílio, e 65,7% deste recurso já foram executados. No entanto, outras ações estão com execução aquém do necessário para a sociedade, como auxílio financeiro aos estados e municípios, com 50,4%; e o benefício emergencial para manutenção do emprego e renda, com execução de apenas 37,4%.  A ação específica de enfrentamento da Covid executou somente 47% do recurso disponível, após 4 meses de crise sanitária”, informa Zigoni, que também é assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e atua no monitoramento do orçamento público.

Os impactos da baixa execução orçamentária é um dos fatores responsáveis para que alcançássemos a triste marca de 100 mil mortos em quatro meses de pandemia. Ainda segundo Zigoni, “se a política fosse feita de maneira responsável, certamente o número de vitimas letais da covid-19 seria menor, principalmente entre negros e quilombolas, cujos territórios não acessam as políticas públicas necessárias”.

Ressalta-se que a política de promoção da igualdade racial e enfrentamento ao racismo foi completamente desmontada após a publicação da EC 95. O Programa 2034: Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo sofreu uma queda de 80% de seus gastos entre 2014 e 2019, passando de R$ 80,4 milhões para R$ 15,3 milhões no período; quando comparamos 2019 e 2018, a queda foi de 45,7%. A despeito de todas as legislações, conferências nacionais e estruturação da política de igualdade racial desde 1988, o PPA 2020-2023 do Governo Bolsonaro extinguiu o Programa de Promoção da Igualdade Racial e Enfrentamento ao Racismo, bem como qualquer menção às palavras racismo e quilombolas.

Situação da população negra dos Quilombos

Organizações da sociedade civil desde o início da pandemia denunciam que os povos tradicionais, incluindo as comunidades quilombolas, seriam os mais afetados com o contexto, justamente pelo não acesso a direitos fundamentais anteriores. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), até o dia 11 de agosto, foram 4.102 casos e 151 óbitos nas comunidades quilombolas. Um destaque revelador da negligência do governo com esta população, é que estes números estão sendo coletados pela própria CONAQ.

“Desde o primeiro óbito, no estado de Goiás, a CONAQ começou o monitoramento diretamente com as lideranças porque o acesso aos dados pelas secretarias de saúde e Ministério é muito complicado. A gente sabe que o número é muito maior do que isso, mas da nossa forma é como estamos conseguindo dialogar com a sociedade sobre a Covid nos quilombos”, afirma Selma Dealdina, quilombola que integra a secretaria da CONAQ. 

Dealdina destaca que até o acesso a informação sobre a situação real do contágio e prevenção ao covid é um desafio enfrentado pelos quilombolas. Realidade vivenciada em muitas comunidades sem o mínimo de acesso a internet e a radiodifusão. “A gente teve várias situações de praticamente linchamento dentro dos quilombos porque muitas pessoas não entenderam que pacientes quilombolas que contraíram o covid estavam curados. O que demonstra o alto nível de violação do direito à informação nos quilombos”. A liderança quilombola denuncia que antes da pandemia a saúde sempre foi um problema sério nos quilombos. “As comunidades não têm acesso a posto de saúde, a médico da família, então, nessa época, também não temos nada garantido”. 

Vulnerabilidade pelo Covid-19
Quilombo de Alcântara, no Maranhão

As Mulheres negras

É um grupo destacado no texto do requerimento apresentado pela Frente Parlamentar como vulnerável neste contexto. Um exemplo disso diz respeito a situação das trabalhadoras domésticas no período da pandemia. Como herança e manutenção da cultura escravocrata (racista e sexista), a maioria dos trabalhadores domésticos no Brasil (62,5%) são mulheres negras, de acordo com dados publicados pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos).

A Deputada Federal Áurea Carolina (PSOL – MG), autora do Projeto de Lei (PL 2477/2020), que propõe a garantia da integridade do salário para trabalhadoras domésticas e a manutenção de todos os direitos trabalhistas durante o estado de calamidade pública, comenta a importância de construir uma política que defenda essas trabalhadoras.

“As terríveis mortes de Cleonice, infectada com covid-19 pela patroa que voltou da Itália, e Miguel Otávio, que há dois meses caiu do prédio onde sua mãe trabalhava, foram causadas por negligência e desumanização, decorrências diretas do racismo estrutural. Esses casos reforçam a urgência pela aprovação do projeto de lei 2477/20, para proteger as trabalhadoras domésticas durante a pandemia e garantir a elas o direito ao isolamento”, comenta a deputada.

Outro projeto de lei sobre o trabalho doméstico no período da pandemia que merece destaque é o PL 3977/2020, de autoria dos deputados federais Benedita da Silva (PT – RJ) e Helder Salomão (PT – ES). O projeto propõe que os empregadores domésticos que liberaram as trabalhadoras para o isolamento social mantendo a remuneração tenham desconto de abatimento equivalente no pagamento do Imposto de Renda.

O trabalho doméstico já foi pauta em destaque na agenda pública brasileira no contexto da pandemia algumas vezes. A morte de Cleonice, a primeira vítima letal da Covid-19 no Brasil, foi uma delas. Outra situação emblemática foi quando o governador do estado do Pará, Helder Barbalho (MDB), decretou que entre as medidas de prevenção e contenção da pandemia no estado, o trabalho doméstico deveria ser considerado como atividade essencial.

Enquanto isso, após cinco anos de cortes de recursos na política de mulheres, em 2020 o Ministério de Direitos Humanos (MDH) teve 425 milhões em recursos autorizados, porém, menos de 3% tinha sido gasto até maio deste ano. Carmela Zigoni destaca que “as mulheres negras periféricas e quilombolas são as mais vulneráveis no contexto da Covid-19, e é urgente que a ministra Damares Alves realize políticas com estes recursos para aliviar a violência e insegurança destas mulheres”.

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Mulher Quilombola

População negra encarcerada

As prisões brasileiras registraram no início de junho um aumento de 800% nos casos de infecção pelo novo coronavírus em relação a maio, segundo balanço divulgado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). A situação da população carcerária no Brasil é outro contexto explícito do funcionamento do racismo institucional. O país possui a terceira maior população carcerária do mundo, com quase 800 mil pessoas presas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Deste total, 65% são negros. A superlotação e as condições de baixa higienização nos presídios preocupam especialistas, ativistas e familiares de presos desde o início da pandemia.

Leonardo Santana, assessor de advocacy da Rede de Justiça Criminal, comenta que a pandemia do coronavírus ao atingir o sistema prisional, expos pessoas presas e trabalhadores à morte. “A superlotação torna impossível o distanciamento exigido para conter a propagação do vírus. Além disso, a ausência de equipes de saúde, água e itens de higiene contribui para que os números sobre a doença nas unidades prisionais sejam proporcionalmente superiores ao da população em liberdade. A visita de familiares foi suspensa em todo o Brasil e com ela a assistência material que supre em parte a omissão estatal, agravando o quadro de desespero intra e extramuros”, comenta Santana.

De acordo com as informações do Depen até o dia 3 de julho apenas 2,18% dos mais de 748 mil presos no país foram testados. O Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação 62, listou orientações ao Judiciário para evitar contaminações em massa da Covid-19 no sistema prisional e socioeducativo. A Recomendação vem sendo ignorada pelo sistema de Justiça. No Legislativo, os projetos de lei 978/2020 e 2468/2020 construídos em conjunto pela sociedade civil e parlamentares pretendem dar uma resposta para o problema. 

Diante deste contexto as organizações da sociedade civil que compõem a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e pelos Direitos Humanos tem pressionado o Congresso Nacional para cobrar dos poderes executivos a realização de ações que protejam a população negra no Brasil. A sociedade civil segue pressionando o Congresso para agendamento da audiência, onde os parlamentares poderão ouvir especialistas nos temas da saúde e do orçamento, além de organismos internacionais e movimentos negros. Os poderes executivos seguem dando sinais do afrouxamento das medidas de isolamento, mas os números de contágio e morte continuam crescendo a cada dia. “O vírus é invisível, mas as ações do governo de descaso com nossas vidas são bastante visíveis. Somos nós que estamos morrendo e o cenário é desolador”, reafirmou Selma Dealdina, liderança quilombola da CONAQ. 


(1) https://reformapolitica.org.br/2020/03/25/organizacoes-da-sociedade-civil-pedem-transparencia-e-garantia-de-participacao-nos-trabalhos-do-congresso-durante-pandemia-de-coronavirus/

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Saúde

Boca de Rango. Um grito sobre as nossas urgências

Minidoc mostra as ações sociais colaborativas na região da Luz

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Boca de Rango

Boca de Rango é um mini-documentário que mostra a realidade de quem está vivendo essa pandemia na linha da necessidade e do medo. Um documento audiovisual do tempo de agora. Um grito sobre as nossas urgências.

O Teatro de Contêiner Mungunzá tornou-se, neste momento, um importante ponto de assistência social e defesa dos diretos humanos do centro de São Paulo, no bairro de Santa Ifigênia.

Boa de Rango. 600 pessoas são atendidas diariamente com entregas de refeições, kits de higiene, cobertores, águas, roupas, cestas básicas e máscaras, movimentando também uma rede de, aproximadamente, 40 trabalhadores(as) ativistas no território.

Boca de Rango
Boca de Rango
Boca de Rango

Cuidar, denunciar e sonhar.

Realização: https://www.instagram.com/ciamungunza / @teatrodeconteiner / #mungunzadigital

Produção: https://www.instagram.com/mangueio_

Rede de afeto

https://www.instagram.com/coletivo_temsentimento
https://www.instagram.com/pagodenalata
https://www.instagram.com/paulestinos
https://www.instagram.com/ccedelei
https://www.instagram.com/cracoresiste
https://www.instagram.com/_casadopovo
https://www.instagram.com/cpt_ofc
https://www.instagram.com/smculturasp
https://www.instagram.com/smdhc_sp
https://www.instagram.com/eduardosuplicy
https://www.instagram.com/soninhafrancine_oficiale

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