A perda dos líderes e entes queridos é trágica para qualquer povo, mas para uma cultura marcada pela ritualização da morte, não há nada mais devastador do que ser roubado do direito à vida e ao velório do corpo de um filho. Não há nada mais desesperador para o povo famoso em todo mundo pela celebração do seu Dia dos Mortos do que a espera eterna de familiares vítimas de desaparecimento político.
No Natal de 2015, ainda estudante do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a repórter Luara Wandelli Loth percorria as montanhas do Estado de Guerrero, no México, farejando com os buscadores das famílias dos desaparecidos, fossas clandestinas onde pudessem ter sido escondidos os cadáveres dos 43 jovens campesinos e de tantos outros milhares de trabalhadores e estudantes.
Quatro anos se passaram e nem Estado, nem narcotráfico, nem milícias policiais, nem o casal de políticos envolvidos no desaparecimento forçado mais cruel da história da América Latina recente deram conta do paradeiro dos seus corpos ou restos mortais. Um ano depois de retornar do México, a repórter, já formada, decidiu construir um túmulo simbólico para dar sentido a essa morte sem corpo na forma de narrativa. O lançamento oficial do livro Sepultura de Palavras para os desaparecidos, no dia 27 de setembro, a partir das 19 horas, na Fundação Cultural Badesc, em Florianópolis, marca os quatro anos do sequestro e desaparecimento forçado dos 43 estudantes da Escola Normal Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa, em Iguala, que ela qualifica como crime de Estado e de lesa-humanidade.
Mesmo sem resposta, a tragédia continua mobilizando famílias e movimentos sociais que, a partir desse crime criaram uma espécie de exército pelo resgate da vida e da morte dos mais de 30 mil desaparecidos no país. Hoje, se os normalistas estivessem vivos, já teriam recebido seus diplomas de maestros. As famílias fazem buscas movidas pela expectativa de encontrar os restos mortais, ao mesmo tempo em que o fracasso dessa esperança nutre a ilusão de que os desaparecidos estejam vivos, trabalhando como escravos do tráfico e que um dia voltarão para casa. Só fragmentos de dois dos 43 corpos foram localizados no caso de Iguala, mas sem levar ao paradeiro dos demais. Em outros dos mais de 30 mil de casos ocorridos no México, o achado de um osso, de um pedaço de crânio ou de um braço não paralisa a busca, como anota a jornalista. É só a sanha para que os abnegados cães humanos das montanhas se embrenhem ainda mais nos espinheiros para buscar as outras partes do seus mortos, sem paz e descanso, até recompor o corpo inteiro.
Publicado pela Editora Insular, o livro-reportagem conta as histórias dos que sobrevivem à dor da perda lutando por verdade e justiça. Num enfoque diferenciado de outras abordagens, narra o drama cotidiano das famílias dos desaparecidos na procura de fossas clandestinas. Os personagens são os obstinados integrantes dos grupos de buscadores de valas e fossas clandestinas em Guerrero, uma das regiões mais assoladas pela violência e pela pobreza na América. São homens e mulheres que deram um sentido heroico comovente a suas vidas, como Guadalupe Contreras, exímio buscador, que desenvolveu uma técnica para farejar o cheiro de morte nas montanhas, na esperança de encontrar o cadáver do filho desaparecido. Malhado pela miséria e pela violência, o sábio Dom Lupe tornou-se professor de buscas em outras paragens. A pedido de outros familiares, estendeu seus ensinamentos para estados como Veracruz, no Golfo do México, onde recentemente foram localizados mais de 160 corpos ocultados num terreno. Além do seu, passou a buscar os filhos dos outros.
O título é inspirado na obra da africana Mukasonta Scholastique, autora de A mulher de pés descalços, que também escreveu uma “sepultura de palavras” para homenagear a mãe e metaforicamente cobrir o seu corpo desnudo quando foi assassinada como uma “barata” no holocausto ruandense. Além das narrativas, Luara oferece um ensaio fotográfico para transmitir a dimensão da luta que as palavras não alcançam. “É preciso não deixar que esse crime seja esquecido para que essas mortes não tenham sido em vão”, acredita a autora, que recebeu menção honrosa em concurso nacional de fotografias dos grandes rituais funéreos do Dia dos Mortos no México no ano do sequestro dos estudantes. Imagens e narrativas devem ser, para a repórter, “uma arma contra a banalização dos desaparecimentos”. Até porque, mesmo depois da onda gigantesca de protestos contra o massacre de Iguala, a violência causada pela associação criminosa entre autoridades públicas, políticos, narcotraficantes e policiais manteve sua curva crescente.
Conforme revela o livro, os grupos de buscadores, ligados a diferentes correntes políticas, desafiam um Estado dominado pelo narcotráfico, onde polícia, políticos e organizações criminosas muitas vezes andam de mãos dadas ou atadas. A autora, na época estudante de Jornalismo da UFSC e intercambista da Universidade Autônoma do Estado do México (UAEMex), acompanhou de forma engajada as notícias sobre o desaparecimento dos estudantes e a onda de protestos que ficaram marcados pelo grito “Vivos os levaram, vivos os queremos”. Sob a égide do presidente neoliberal Enrique Peña Nieto, o Estado tentou impor o silêncio, mas a indignação tomou conta do México, causando uma repercussão internacional expressiva, embora menor do que o horror ensejava. Na época, por exemplo, a chacina dos 12 cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo recebeu uma atenção infinitamente maior da grande mídia na América Latina e na Europa do que o extermínio dos 43 normalistas, muitos deles apenas adolescentes.
De volta ao Brasil, Luara começou a desenvolver seu trabalho de conclusão de curso sobre os desaparecimentos no Estado de Guerrero e para ir mais longe na pesquisa e reportagem, retornou ao México em 2015, onde permaneceu até março de 2016 . Recebida e hospedada por familiares dos desaparecidos, exerceu perigosamente o jornalismo investigativo e arriscou-se, acompanhando pessoalmente o trabalho do grupo de buscadores. As imagens, narrativas e depoimentos desses inconformados herdeiros de uma morte imaterial são marcas lancinantes de um período de atrocidades vivido pelos mexicanos sob o comando do neoliberalismo que esmagou e derrotou a revolução mexicana e com ela a riqueza maior do país que são os povos indígenas.
CONFIANÇA NO VALOR DA VIDA RENASCE COM OBRADOR
Neste aniversário, reapresentantes do comitê dos pais dos meninos sequestrados, torturados e assassinados renovam as esperanças com a eleição do novo presidente Andres Manuel Lopez Obrador, que assumirá em dezembro deste ano, na contramão dos governos conservadores e entreguistas que tomaram o poder no continente americano. Acreditam que, seguindo as recomendações dos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, o líder de esquerda possa reabrir o caso e sepultar de vez a história oficial implantada pelo governo anterior. Numa conclusão julgada suspeita, improvável e manipuladora, a promotoria de Pieña Neto defendeu que os jovens morreram assassinados e que seus corpos foram queimados em um lixão e por isso desapareceram. Essa versão cômoda para o governo, encerraria a busca dos cadáveres, mas foi amplamente desmoralizada pela ausência de sinais de comprovação e por uma chuva torrencial no dia do massacre que desmente por si só a falaciosa incineração. Só agora a população atingida ou sensibilizada pelos desaparecimentos forçados recupera um pouco a confiança na dignidade e no valor da vida, com a expectativa da instalação de uma Comissão da Verdade e Justiça específica para o massacre anunciada pelo próximo governo.
Sepultura de palavras para os desaparecidos denuncia e reabre uma ferida que nunca vai cicatrizar e que exige da humanidade inteira uma tomada de posição. Até porque, como avisa a autora, o mundo não conseguirá dormir um “sono tranquilo” enquanto não devolver os corpos dos normalistas e dos outros milhares de desaparecidos. A grande reportagem que resultou em livro foi orientada pelo professor Carlos Locatelli, do curso de Jornalismo da UFSC e enriquecida pelas apresentações do historiador Waldir Rampinelli e da professora de Jornalismo Daisi Vogel. Integrante da direção dos Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC) e especialista na história política do México, Rampinelli sublinha que “o livro é uma leitura obrigatória para entender esta região marcada por grandes conflitos, desde que por aqui meteram os pés os conquistadores europeus”. A obra é resultado de um “trabalho duro, penoso, doloroso, talvez mais difícil do que cobrir as guerras do Iraque e da Síria”, acrescenta o historiador.
No contextualização desse crime em massa, Luara reconstitui a história e a importância das Escolas Normais Rurais, que são sinônimo de resistência política. Doutora em Literatura, Daisi Vogel aponta que “as imagens, palavras e estudos desta extraordinária reportagem se movem caudalosas e nos arrastam como águas de uma enchente.” Acompanhando a saga dos buscadores, o livro-reportagem, na opinião da jornalista, encontra o seu próprio sentido: “mostrar o rastro de destruição desses desaparecimentos para a população inteira do país, especialmente para os habitantes de Iguala, cuja população sobrevive ao efeito devastador do sequestro dos 43 estudantes de Ayotzinapa”.
O grande mérito dessa obra de jornalismo, literatura e história é mostrar que o horror dos desaparecimentos devastou as populações de origem indígena mais empobrecidas do México, mas não as calou, nem as paralisou. Na mesma medida em que sofre a opressão, o povo guerrerense reforça, há séculos, a escolha pelo caminho da rebeldia. Os que procuram pelas montanhas os restos mortais do filho, irmão, pai, mãe, esposa, companheiro, vizinho, amigo ou parente escolhem transformar corpos em sementes de transformação.
Depoimento da autora:
“O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Quero que esse livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. “
Sepultura de palavras é uma expressão que tomei emprestada da escritora de memórias ficcionadas, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente de sua família do genocídio em Ruanda. Uma das consequências da perversidade da política neocolonial é instituir o ódio ao outro como laço societário primário e aí instalar sua máquinas de morte.
Em A mulher dos pés descalços, Mukasonga propõe-se a resgatar simbolicamente sua mãe da vala-comum, com as únicas ferramentas que lhe restavam: palavras e papel. “Sepultura de palavras” se inscreve nessa perspectiva de jornalismo que resgata partes aterradas da memória e da carne dos povos da América.
Apesar das abundantes semelhanças com Brasil, que de alguma forma estão presentes em cada linha, o livro resulta de um olhar estrangeiro que, quando possível, distancia-se. Não é o meu povo, ao qual pertenço organicamente que quero tirar da vala e cobrir com suaves lençóis de memória, mas o nosso povo.
O desaparecimento forçado é uma espécie de auge da devastação social no nosso continente, um crime de lesa-humanidade. Não caberia impor impressões pessoais de jornalista, nem buscar explicações definitivas para um fenômeno tão complexo como a persistência do desaparecimento forçado no século XXI, em uma das regiões mais pobres e violentas do México. O trabalho identifica as contradições sociais sem a pretensão de explicar tudo ou oferecer uma conclusão última. Em vez disso, a pesquisa abre muitas outras hipóteses e questionamentos que continuam a me perturbar como autora. Durante os meses de investigação, busquei preservar o vínculo inevitável que leva as histórias singulares das pessoas atingidas pelo desaparecimento forçado às dimensões particulares e universais que conectam essas vidas ao contexto nacional e internacional dos crimes medievais do neoliberalismo. O todo é esburacado, mas segue sendo ligado por milhões de fatos que não cessam de intersectar a história dos povos violados pelo poder no Brasil, no México, na América e em todo o mundo.
Tento celebrar, como me foi possível, o ato de testemunhar uma realidade, de acompanhar as pessoas se transformando e transformando o mundo ao seu redor, aos pouquinhos. Nossos buscadores de Guerrero são pessoas que nunca traem a sua via desejante. Enquanto não temerem o cheiro de corpos em decomposição, nunca abandonarão a fome de vida. Recusam-se a oferecer aos mandantes dos desaparecimentos o controle sobre esse desejo. É porque talvez, sejam os únicos a dormirem sem culpa, no afã de continuar cumprindo sua louca missão de buscar. Dá medo que um dia esse trabalho ao mesmo tempo de negação e reconstrução do mundo seja esfacelado e desapareça do tempo e do motor da história.
É um livro sobre como se forjam lutadores sociais na difícil tarefa de perceber que sua dor não é um fator de isolamento, mas é algo, em certa medida, compartilhável, universalizável e, portanto, politizável. Quero que esse pequeno livro não seja apenas uma denúncia escandalosa e paralisante, mas que mostre também a força descomunal e violenta da resistência. Ela se apoia em comunidades gigantes no tamanho e na força que estão por trás das pequeninas vítimas que choram. Lutas sem povos são para o jornalismo inócuo e conformista de cada dia. Faz parte do encantamento da reportagem ver como a resistência em alguns momentos se equivale ao tamanho da opressão. Pude testemunhar como as pessoas redescobrem a vida em comunidade, os limites do individualismo, e como começam a lutar por si e pelos outros. Como elas se recusam a desaparecer, a se exilar em suas periferias, em seus quartinhos sem assoalho.
Devo confessar que senti nessas famílias a dor do processo de saída do estado de alienação para uma tomada de consciência. As pessoas precisam, por vezes, ceder à força do narcoestado periférico, categoria à qual se insere o estado mexicano na atualidade. O ganho de consciência transforma os olhares de forma definitiva, mas esse não é um movimento linear. É repleto de contradições, avanços e recuos que são, de certa forma justificáveis: as pessoas precisam sobreviver, dar leite às crianças, regar as flores e subir em vans apertadas.
As covas clandestinas reveladas após o caso Ayotzinapa, quando desapareceram 43 estudantes sonhadores e indômitos, são constrangedoras e emudecem os defensores da ideologia do “desenvolvimentismo” emblema maior do neoliberalismo. Parece que os vencidos da história se recusam a ser enterrados, provando mais uma vez que o osso é um herói de guerra. Ele emerge quando menos se espera no Atacama, no Acari, em Iguala. É como um cheiro de podridão que irrompe num salão luxuoso. Os representantes do poder e todos os seus cúmplices precisam de justificativas fáceis para explicar: “Eram todos narcos. É apenas mais uma matança entre ELES”. Duvidar da humanidade do outro é sempre um grande trunfo para espalhar o medo.
As ruínas são testemunhas desse estranho progresso, que traz barbárie, mas que traz sem querer sua semente de destruição. Não há como uma sociedade enterrar no esquecimento suas vítimas e não sofrer as consequências disso. Não adianta recalcar traumas. A luta, os esforços, por menores que sejam, serão redimidos por cada novo movimento social, levante, revolta. Surgirão novos significados. A cada levante, os vencidos são citados na ordem do dia. Eles vivem.
Serviço:
Lançamento de Sepultura de Palavras para os desaparecidos, de Luara Wandelli Loth,
Editora Insular.
Lançamento: 27 de setembro de 2018, das 19 às 22 horas.
Local: Fundação Cultural Badesc, rua Visconde de Ouro Preto, número 216 Centro de
Florianópolis.
Contatos com a Fundação: fone(48) 3224-8846, email:
[email protected]