LITERATURA MILITANTE: Maior evento literário do Brasil torna-se palco de protesto contra obscurantismo social do país

Na entrada da FLIP, protesto exige coerência da cultura brasileira com a história e a obra de autores como Lima Barreto

É verdade que o escritor negro Lima Barreto morreu pobre, doente, desprezado e enlouquecido, sem o reconhecimento que seu talento e sua inteligência mereciam. Mas sua luta por um lugar na literatura do Brasil racista do início da República está longe de ter sido em vão, temor que deixou registrado num de seus últimos escritos. A reverência a sua obra pela 15ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty foi suficiente para tirar o evento de qualquer lugar de culto elitista à erudição separada da cultura popular e da realidade nacional, o que seria contraditório com o legado do autor. Como um ciclone capaz de levar o Brasil a retornar-se sobre si mesmo, a homenagem fez da Feira um evento também caracterizado pela reflexão sobre o atravessamento da tragédia política e social do país na sua produção literária.

Única sobrevivente de sua família no genocídio de Ruanda, Scholastique representa a literatura do testemunho

Num clima de denúncia, protestos e diversidade, a Festa de Paraty ficou menos elitista e um pouco mais coerente com o autor que ela reverencia, o cultíssimo descendente de escravos que defendia a cultura popular e propunha o manifesto de uma literatura militante contra o racismo, o machismo e toda a forma de opressão. Com Lima feito uma espécie de guerreiro póstumo no front de um expressivo cordão de autores que rasgou o seu espaço na FLIP, o evento também se tornou uma feira militante da diversidade. Fazem parte desse cordão mulheres feministas, negros, quilombolas, indígenas, testemunhas de guerras de extermínio, como a escritora da etinia tutsi, Scholastique Mukasonga, única sobrevivente da família no genocídio de Ruanda, que lança sua literatura de testemunho na FLIP com Pés descalços. E ainda a angolana Djaimilia Pereira de Almeida, autora de Esse cabelo, uma ficção que traz para a narrativa a questão do corpo como identidade étnica. Na noite do dia 27, Mukasonga compartilhou com a brasileira Noemi Jaffe, cuja obra reverencia a mãe sobrevivente do holocausto nazista, um dos mais densos e tocantes painéis. A ruandense disse que escreve para suportar o horror que ela e sua família viveram e fazer valer o privilégio de ter escapado viva.

Desde a abertura na quarta-feira (26/7), a quinzenária FLIP promete não ser a mesma que reproduziu, na sua última edição, o modelo dominante de sociedade colonial, onde mulheres, índios, negros e pobres estão marginalizados do mundo da cultura. O reconhecimento público desses autores em nível nacional e internacional mostra que o boicote à “literatura militante” pelo cânone e pelo mercado não passa de preconceito. Mostra ainda que se o artista não se engaja às questões políticas que falam dos dramas humanitários do seu tempo, o seu tempo o engaja nessas tragédias. Nesse espírito de contraliteratura, a abertura e o primeiro dia da mostra foram marcados pela implicação do movimento político no estético que caracteriza as épocas sombrias.

Manifestações políticas marcam a 15ª edição da Festa de Paraty

Houve protesto, houve Fora Temer, Fora Pezão, manifestações efusivas durante o espetáculo de abertura que continuaram no dia seguinte. No recital que acompanhou a linha de tempo de sua dramática biografia, apresentada pela historiadora e professora de antropologia da USP Liliam Schwarz, a obra e a trajetória de Lima Barreto atingiram atualidade máxima. A leitura de Lázaro Ramos para os trechos mais primorosos de Lima acentuou a potência da retórica literária de Lima, que na mesma cena sintetiza um realismo cru com impagável humor popular, para em seguida alcançar o lirismo dos grandes clássicos. As passagens mostram a tragédia de personagens negros, negras e pobres idealistas que ousaram, como ele e seu Policaropo Quaresma, atravessar os territórios da cultura e da intelectualidade sob o domínio branco, masculino e burguês.

Um retumbante brado de Fora Temer foi a forma do público aplaudir e agradecer a dupla que  surpreendeu a plateia maior de não-pagantes, limitada à tenda de projeção em frente à Praça, para refazer ao vivo a leitura dramática de encerramento. Diante de cerca de mil pessoas, Lázaro deu vida à voz de um Lima Barreto de clareza e refinamento encantadores ao apresentar as bases do que considerava ser a tarefa da literatura e das artes. À diferença dos poderosos diletantes, que elitizam a literatura para aprofundar a diferença entre as classes, a literatura, segundo Lima, serve para derrubar os muros entre os homens. Serve para tornar a humanidade mais tolerante, fazendo-a conhecer melhor sua condição, entendendo suas virtudes e fraquezas. “A missão da literatura é fazer comunicar umas almas às outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando assim a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”.

Desde a abertura, as manifestações políticas marcam as conferências e debates, quando palestrantes são interrompidos para serem ovacionados cada vez que denunciam, através de Lima Barreto, o obscurantismo social que o Brasil vive hoje e a violência contra os que fogem aos padrões dominantes de subjetividade. Isso ocorreu muitas vezes quando o poeta e ensaísta negro Edmilson de Almeida Pereira, professor da Universidade de Juiz de Fora (MG), pesquisador das contribuições africanas na língua portuguesa, analisou o impacto da obra de Lima Barreto como a permanência de um passado que sabota as possibilidades de expressão artística para os marginalizados. Pereira dividiu o painel Arqueologia de um Autor, ocorrido na manhã do dia 27, com a professora Beatriz Resende (UFRJ), organizadora da obra principal de Lima Barreto, e o pesquisador Filipe Botelho Correa, professor do Kings´s College London, que recuperou textos inéditos de Lima Barreto. Beatriz foi igualmente ovacionada ao comentar a denúncia do autor carioca à corrupção sistêmica no Brasil republicano e lamentar a ausência de colegas da UERJ, como Ítalo Moriconi, entre outros, que não puderam vir à feira porque estão há quatro meses sem receber salário.

A leitura dramática de Lázaro Ramos funde-se com a escrita insurgente de Lima Barreto

Empobrecida pelo corte violento de recursos federais e estaduais, esta Feira se tornou ainda mais seletiva para os que foram convidados ou conseguiram comprar ingressos para as apresentações, palestras e mesas-redondas concentrados no auditório da Igreja da Matriz Nossa Senhora dos Remédios. Mas a curadoria sensível de Joselia Aguiar impediu que o evento assumisse os ares de festa de esnobes diletantistas. Além de criar a tenda de projeção como um espaço para a inclusão gratuita de todos os que conseguiram chegar à belíssima Paraty, criou um espaço para discussão de literatura não-canônica no painel Aldeia. Na manhã de quinta-feira (27), o painel reuniu escritores e educadores de povos tradicionais para discutir a literatura oral e escrita que está intrinsicamente conectada a suas lutas coletivos pelo direito à vida e à identidade. Participaram Ivanildes Kerexú Pereira da Silva, ativista feminista e professora na Escola Paraty Mirim, na aldeia Guarani Mbya Itaxi; Laura Maria dos Santos, arte-educadora e militante pela educação e pela cultura quilombola na região de Paraty e Álvaro Tukano, pensador indígena do Alto do Rio Negro, que lançou na feira O mundo Tukano Antes dos Brancos. Um dos precursores do movimento indígena brasileiro, Álvaro Tukano mobilizou a plateia ao afirmar que no Brasil se procura imitar os europeus, quando a maior parte dos autores e dos leitores ignora a literatura indígena que deveria fazer parte da formação de todos os brasileiros.

Pensador indígena Álvaro Tukano reclamou o lugar da literatura dos povos tradicionais na cultura brasileira

CONTRA O FIM DOS POLICARPOS

Antes mesmo da abertura, um manifesto liderado pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro quebrou a zona de conforto dos convidados e pagantes que avançavam na fila para a cerimônia de estreia no auditório da Igreja da Matriz. Empunhando faixas com dizeres irônicos, como “Triste fim para milhares de Policarpos Quaresmas”, professores, estudantes e servidores de escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro protestavam contra o fechamento de 300 escolas pelo governo do Rio de Janeiro e contra o atraso no pagamento dos educadores que, segundo eles, fará se repetir o destino de Policarpo Quaresma, condenando à morte cultural os estudantes das periferias. “Estamos aqui hoje abrindo a Flip para denunciar o descaso do governo do Estado com as escolas públicas do Rio de Janeiro, onde estudam a maioria dos filhos dos trabalhadores”, afirmou Clarice Ávila, diretora do SEPE e professora de Língua Portuguesa para mudos em Barra Mansa.  “Estamos aqui representando milhares de Limas Barretos que, na época do início da República também foi esquecido pelos cânones da literatura brasileira, que o acusavam de ser panfletário, simplesmente porque denunciava o racismo e toda a forma de opressão”.

Outros educadores se alternaram ao microfone, contando a vida de Lima e recomendando a leitura de seus livros para que sua tenha um impacto verdadeiro nas decisões políticas e no comportamento do povo brasileiro. “Os participantes da Festa de Paraty, um evento que discute as questões da cultura, precisam saber que este governo não está atento à educação de qualidade para a maioria que dela precisa”, acrescentou a professora Cecília de Araújo Brás, do Sepe de Barra Mansa. Usando alto-falante, os professores lembraram que Lima Barreto está sendo homenageando tardiamente e em nome dele é preciso denunciar  todas as injustiças de Pezão e seus aliados contra o Rio de Janeiro e contra a educação pública que só fortalecem a elitização do ensino. “Não basta homenagear: é preciso refletir sobre a história de lima Barreto, que é muito atual. Tudo que ele denunciava estamos vivendo no século XXI”, lembra Clarice. Além de Barra Mansa, estavam presente professores de Barra do Piraí, Volta Redonda e São Gonzalo.

Protesto na entrada do auditório da FLIP denunciou o fechamento de 300 escolas públicas

Ao fundo, Lima Barreto e esta paradigmática edição da Festa Literária de Paraty mostram que não há oposição entre o estético e o político, assim como não há separação entre erudição e cultura popular. O sociólogo Walter Benjamin nos permite definir erudição justamente como a capacidade dos grandes narradores de buscar a experiência coletiva da cultura, subindo e descendo os escalões dessa experiência com a facilidade de quem percorre nos dois sentidos os degraus de uma mesma escada. “O grande narrador está sempre enraizado no povo”, escreveu Benjamin. Ao mesmo tempo em que avança para baixo e afunda seus pés na terra, enraizando-se na cultura popular, ele se esgueira para cima, perdendo-se além das nuvens, em direção ao clássico.

A literatura moderna, em todas as suas formas de expressão, consiste, como defendeu Lima Barreto em seu manifesto por uma literatura militante, no talento de falar, em uma linguagem clara e capaz de mobilizar as massas sobre as estruturas de opressão invisíveis que só a arte pode fazer emergir de modo mais compungente. “A literatura trabalha pela união da espécie. Assim, trabalhando, concorre, portanto, para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade”, escreve o autor de uma das obras mais contundentes contra a soberba e a ignorância das elites brasileiras, excluído pela Academia Brasileira de Letras, morto aos 41 anos, mas imortalizado por sua literatura dos vencidos. O ilustradíssimo descendente de escravos continua botando o dedo na ferida da mentalidade colonialista.

Lázaro Ramos: o Brasil ainda ceifa a vida de talentos como Lima Barreto

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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