“O fogo”, por Dirce Waltrick do Amarante

Dois leões à espreita na Selva, de Henri Rousseau

Por Dirce Waltrick do Amarante*

Com este miniconto inédito, Jornalistas Livres começam a publicar, todos os domingos, uma série de contos tragicômicos da escritora que compõem uma espécie de literatura do absurdo da realidade

Dirce Waltrick do Amarante. Foto: Ângela do Amarante

O Brasil estava pegando fogo e ninguém podia fazer nada a respeito, pois os bombeiros haviam desaparecido inesperadamente. Na época, eu trabalhava no extinto Instituto Florestal Brasileiro (IFB), extinto porque, depois que as florestas sumiram, o IFB foi substituído pelo Instituto da Soja Brasileira (ISB).

Mas, antes de tudo pegar fogo de vez, empreendi esforços para encontrar pelo menos um bombeiro que desse fim àquele fogaréu. Foi quando me lembrei que o Sr. e a Sra. Smith, que moravam nos arredores de Londres, sempre recebiam a visita do bombeiro. Assim, tomei o primeiro avião e segui para o Reino Unido (que na época ainda era Unido, hoje nem Reino nem Unido, mas isso eu conto depois).

Chegando à casa dos Smith, bati três vezes à porta (no Reino Unido, só o bombeiro bate à porta quatro vezes). Eles me acolheram com muito carinho na sua residência. Naquela noite, além do bombeiro, jantava com eles um dramaturgo romeno, naturalizado francês, chamado Eugène Ionesco.

Foi um jantar maravilhoso e tipicamente inglês, com fish and chips e pudding, que estava meio duro, de forma que numa mordida descuidada quebrei um pedacinho do meu molar superior. Mas o que interessa é que, entre uma garfada e outra, contei o que estava acontecendo com as matas brasileiras. Eles ficaram estarrecidos e o bombeiro se dispôs imediatamente a vir ao Brasil apagar o incêndio.

Ocorre que quando o bombeiro, que era francês, chegou ao Brasil, foi proibido de atuar por causa de uma desavença entre a primeira-dama brasileira e a primeira-dama francesa. Parece que a primeira-dama francesa havia dito que o presidente do Brasil não tinha hombridade, no sentido de dignidade, mas a outra entendeu hombridade apenas no sentido de virilidade e a briga começou.

Bom, o bombeiro voltou para a França, e do Brasil sobrou apenas esse poema de minha autoria:

O Fogo

Os polycânderos brilhavam no bosque
Uma pedra pegou fogo
O castelo pegou fogo
A floresta pegou fogo
Os homens pegaram fogo
As mulheres pegaram fogo
Os passarinhos pegaram fogo
Os peixes pegaram fogo
A água pegou fogo
O céu pegou fogo
A cinza pegou fogo
A fumaça pegou fogo
O fogo pegou fogo
Tudo pegou fogo
Pegou fogo, pegou fogo.

 

*Tradutora de autores como James Joyce, Eugène Ionesco, Edward Lear; autora, entre outros, de Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), professora do Curso de Pós Graduação em Estudos da Tradução da UFSC.

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