Nhanderuvuçu veio à terra e falou a Guayraypoty: “Procurem dançar, a terra vai ficar mal…” (citação da narrativa de Criação e Destruição do Mundo, dos índios Apopokuva — Nhandeva)
Nossa Terra, como a conhecemos hoje, já foi destruída várias vezes, em algumas destas, sem a nossa ajuda. É o que dizem dezenas ou até centenas de narrativas, histórias sagradas de nossos ancestrais. Olhando bem de perto, notamos que alguma pequena ajuda sempre foi dada por alguns de nossos antepassados, quando contrariaram uma lei ou norma de conduta que dava segurança ao frágil equilíbrio de nossa instável relação com todos os seres da criação que fazem a teia da Vida neste planeta que chamamos Terra.
O sábio Davi Kopenawa Yanomami, no livro recém-publicado “A Queda do Céu”, nos reporta algumas destas rupturas. Quando o mundo que Omami criou pela primeira vez para seu povo desabou de seus esteios, foi grande a destruição daquele mundo primevo. Outro Céu e Terra foram criados…novos mandamentos foram passados para seu povo, que deve respeitar as regras de bem viver com todos, todos os seres da criação. Não somente aqueles que reconhecemos como nossa espécie, mas todos. Os seres visíveis a nossos olhos e sentidos, mas também os que não tocamos ou nem atinamos as suas existências, devem estar nesta indescritível lista aqueles que os cientistas citam como elementos da biodiversidade dos ecossistemas, biomas das mais diversas latitudes do Planeta Terra.
Nossos rios, lagos, igarapés, paraná, oceanos, todas as nossas bacias hidrográficas, águas subterrâneas. Nossas montanhas, cordilheiras e serras, nossos vales. Um vale do Rio Doce, ou Watú, para os burum.
O Povo Krenak teve seu território devastado pela fúria dos colonos e desbravadores das florestas deste vale que foi nomeado de Rio Doce, e citado como Vale do Aço, numa franca declaração de desprezo pela presença deste caudaloso rio, cheio de vida e abundância que poderia suprir toda a necessidade de alimento para seus ribeirinhos. Mas o aço — ou vil metal, encontrado nas suas entranhas brilhou mais que suas águas cristalinas aos olhos do seus novos habitantes.
Com este apelido de duvidoso gosto, passou a abrigar todos os empreendimentos mais avançados em tecnologias pesadas e agressivas ao seu entorno, com grande demanda de água, madeira e outras fontes de energia. Gerando muita riqueza para os mercados externos e exportando pobreza para países desenvolvidos. Com nossos governantes sempre a reboque de seus projetos tecnológicos, estes mesmos empreendedores decidiram qual a regulação que suas atividades deveriam sofrer ou se obrigar a cumprir como medida de proteção ao meio ambiente.
Já foi exaustivamente repetido que “minério só da uma vez”. Mas nem por isso deixamos de ser uma economia extrativista de minério, assim como nada foi feito para proteger as florestas nativas. Como lembra Sebastião Salgado, resta somente 5% da cobertura florestal desta grande região.
Desde a década de 1990, nosso estado de Minas Gerais tem sido informado sobre a agonia do Rio Doce, chegou mesmo a esboçar alguma ação, mas não passou de anúncio o convênios entre Minas e Espírito Santo para a promoção da malfadada Recuperação da Bacia do Rio Doce.
O Watú, este rio índio ou indígena que chamamos de Doce, segue seu destino de rio ofendido e maltratado por gerações de viventes que tiraram de suas águas o que precisaram para viver, leva no corpo as marcas da violência e degradação que os empreendimentos, indústrias, comércio das grandes e pequenas cidades lhe dão em troca de ar puro, saúde e vida.
Porque choram então, aqueles que nada fizeram enquanto o Watú agonizava?
Lembrando a citação que abre este texto, que é parte de uma das narrativas de um povo indígena assolado pela ganância dos fazendeiros da soja e da cana no Mato Grosso do Sul. Essa citação lembra a todos nós que esta terra em que vivemos é mesmo imperfeita e por isso segue também o seu curso, em busca de sua Terra Sem Males ou Yvi Marãey.
Viva todos os rios da Terra, todos os viventes!