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crônica

2019 desejante

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por Natasja Garonne

*ilustrações por helio carlos mello – interversão e mixagem na obra de Caribé e Tom Zé.

 

 

 

– É que faz oito dias que não durmo na minha casa, por isso eu achei que poderia estar exagerando nos dates. 8 noites, 6 camas diferentes. Passei a tarde em casa para lavar a roupa e tal. Mas logo estou de saída de novo.

Era um dos meus amigos sendo super sincero. Será que estava exagerando? Será que estava tentando mascarar a fase ruim que vivemos em 2019, passando mais tempo dedicado à felicidade sexual das pessoas? Eu perguntei se ele achava que estava apenas consumindo sexo ou se estava realmente dando algo bom às companheiras. Ficou com a segunda resposta, cada uma com um jeito diferente de dar e receber prazer, boas conversas, pessoas que tem encontrado com frequência nesse último ano. Ótimo. Então, esqueça o socialmente estabelecido e distribua esse prazer, foi meu conselho.

Por isso fiz um balanço do que aconteceu em 2019 na minha própria vidinha mais ou menos. Foi o segundo melhor ano da minha vida sexual, e faz trinta anos que tenho uma. Não foram só caras diferentes e interessantes que me deram o prazer de ter prazer comigo. Foram as experiências mais radicais de experimentação não convencional de práticas – eu nem posso dizer “na cama” porque realmente não foram.

Será que estamos transando assim, como se não houvesse amanhã, para esquecer o bolsonarismo por algumas horas? Será que é assim que podemos suportar os dias em tudo está sendo destruído em termos de liberdades civis e direitos sociais? Será que é dando que a gente está conseguindo sobreviver à avalanche obscurantista de 2019?

Olha, estou convencida do contrário. Acho até que o bolsonarismo é uma reação bizarra e patética a uma transformação que vem vindo no vento. Os discursos histriônicos pela família convencional, rosa e azul, homem que é homem, mulher recatada, masculinidade violenta é que parecem tentar responder a nossos avanços. A preocupação dos dirigentes do governo brasileiro hoje é que os jovens não “virem gays”. Para que teriam que defender o que está estabilizado? Por que ser arauto de uma verdade que ninguém questiona? Se eles investem tanto em reforçar esses padrões é porque já estão amplamente questionados.

Enquanto uma parte da população mergulha num backlash obscurantista, repressor e numa caretice sem tamanho, o Brasil está aí fazendo golden shower, e isso o presidente percebeu como poucos. O presidente é o maior fiscal de cu da República no presente século. Mas o seu trabalho não está sendo tão fácil, ele revelou esses dias um enorme cansaço, porque eu acho que cu foi a palavra do ano.

No meu animado ano, passei a receber pedidos de parceiros hétero para explorar eroticamente o lugar que nunca toma sol. Comecei meio tímida, mas quando me dei conta, tinha virado uma espécie de rainha do pegging. Para quem não sabe, pegging é quando a mina pega o cara por trás, também chamado na nossa língua de “inversão”. Penetração mesmo, do feminino no masculino, por aquele portal sensível erótica e politicamente. Vale de um tudo, a depender do desejo e do consentimento: um dedo, dois dedos, um plug, um brinquedo, maior, maior, maior ainda, vai que eu aguento, sou homem, pô. Até que alguém me pediu um fisting. Alguém não, vários alguns, mais um estava na minha frente, já posicionado. Eu pensei, gente, acho que não vai rolar, imagina, eu? Mas o brasileiro não desiste nunca, e coloquei a mão inteira.

Sei que agora uma boa parte dos leitores teve uma reação corporal de defesa. Tipo oloko. E uma parte está procurando se tem meu email nos créditos.

Mas eu queria tentar comunicar que sou totalmente normal vivendo diferente. Tenho profissão exigente, sou casada, faço almoço de domingo, limpo casa, me depilo, organizo ceia de Natal, uso até aliança (estou vendo aquele ali que já se perguntou se estava com ela ou sem no momento do fisting). Não tenho tatuagem e faço luzes no cabelo. Mas no ano passado abrimos o relacionamento. E foi então que, tendo passado um tempo fora do mercado, voltei e o pegging estava na moda. Não só o pegging, mas todo tipo de fetiche. O brasileiro do escritório, da faculdade, do carro engarrafado na marginal. Meus amigos de esquerda. Meus peguetes Faria Limers. Não vou dizer que gente que votou 17 também, mas não duvido, embora a esses eu peça gentilmente, no texto do aplicativo, que não falem comigo. A geral está experimentando com o rabo. Curiosos a respeito de troca de papeis, dominação feminina, mulheres no comando.

Eu estou falando de gente careta, com identidade sexual hétero cis. Gente que tem filho, namorada. Gente que está nos aplicativos de encontro comuns, gente muito baunilha em quase tudo. Cada vez mais não monogâmicos, cada vez mais “mente aberta”, o que parece ser o código para a prática. Tem os que chegam com “Olha, eu não quero fazer isso todo dia, mas eu te achei uma pessoa bacana, eu queria experimentar”. Tem os “Já pedi para minha namorada, mas ela ficou muito tímida, eu queria experimentar direito. Você tem uma cinta?”. E tem os que já me chamam de Rainha.

Você nem sabe, mas capaz que encontrou seu colega de escritório ou o pai do coleguinha da escola do seu filho usando um plug anal por aí, no banheiro da firma ou no supermercado, como parte de um jogo de erotização que não pertence mais só a um segmento muito escondido e a comunidades discriminadas.

Também tenho visto os nossos filhos. Eu não tenho filhos, mas vocês têm. E eles estão na idade de descobrir, não é? Tentamos entender se nossos filhos são hétero ou LGBT, mas estamos levando um tempo enorme para entender. E a frase do ano, nesse sentido, eu ouvi de uma estudante da faculdade: “Briguei com a minha mãe porque ela quer que eu diga se eu sou lésbica ou não. Para que eu tenho que saber dizer isso?”

O monitor de uma das minhas turmas na faculdade fez o inventário desejoso da sala. Pegava este, aquele e o outro, e esse aqui já mandou um inbox. Eu disse que era para parar com isso, monitor não pode ficar misturando as coisas. Ele ficou mal ao perceber que eu tinha razão. Aí, para dar uma descontraída, eu comentei “mesmo porque esse aqui eu acho que não é gay”. Ele me olhou com cara de quem está explicando para a tia avó como faz para usar os recursos do celular. “Não tem isso não, adoro pegar hétero”. Então, no mínimo uns dez anos defasada nas minhas concepções de sexualidade, eu estabeleci que só podia pegar depois que acabasse o semestre.

Ainda nesse ano que termina, soube de alguns casais de amigos que abriram o relacionamento. Coisa que a gente não conta para todo mundo. Mais um campo de experiências intenso, prazeroso e dolorido. Aqueles amigos que fui à festa de casamento e dancei flashback, com óculos amarelo e boá de carnaval. Então, agora os dois filhos já cresceram um pouco e o cachorro está velhinho, estão tentando coisas novas. Descobri que tem grupos no facebook, aplicativos, redes abertas, redes fechadas. Gente indo junto aos encontros de swing, gente mantendo contas ativas nos aplicativos. Duas séries do Netflix fizeram sucesso na classe média branca que está tentando escapar daquela família que já não cola mais: Eu, Tu e Ela e Wanderlust. Foi por comentários meus sobre essas séries que alguns amigos vieram inbox dizer que também estavam nessa.

Lembrei do livro do Zuenir Ventura sobre 1968, em que abre a narrativa contando de divórcios improváveis se sucedendo como dominó. Algo implodia nos valores repressores da vida privada em termos mundiais, às vésperas de tudo se tornar enormente repressivo na vida pública do país. Parece que as pessoas estavam reagindo a algo, de modo individual, porém simultâneo.

E eu tive a impressão de ter vivido algo parecido em 2019. Cada um com seu cu, fazendo parte de um movimento de desconstrução mundial da interdição sobre a qual se assentou a masculinidade moderna: homem é o que penetra e nunca é penetrado.

Eu sei que muita gente vai dizer que isso não significa nada, é só olhar a corte bon vivant de Maria Antonieta às vésperas da Revolução Francesa. O que faz revolução é fome, não é cu de homem. É, está certo. Mas a libertinagem, como valor da aristocracia, foi uma das principais correntes de crítica dos valores privados burgueses, elevados a política de Estado na época vitoriana.

E a normalização do divórcio como uma prática aceitável foi um dos marcos mais importantes na luta pela conquista de direitos civis pelas mulheres no século XX. Se muita gente abre a relação ao mesmo tempo, estamos deslocando e ampliando o sentido de ser um casal e formar uma família, assim como a concepção de posse do corpo e do desejo do outro envolvida nos valores do casamento.

Penso hoje que os reacionários também percebem o que estamos fazendo mais ou menos escondido, na esteira de um pequeno orifício aberto pelo feminismo e pela luta LBGT. Estão nervosos e agressivos. Percebem que as coisas estão mudando rápido no plano das relações entre os gêneros e com o gênero. Está mudando a experiência de muitos casais hétero. Enquanto os reacionários interditam, nós liberamos.

Talvez, tão importante quanto multidões gritarem para Bolsonaro ir tomar lá como forma de expressar desaprovação à sua política repressiva e retrógrada, seja começar a destruir na prática os fundamentos dessa masculinidade agressiva fascista. De todo modo, transar diferente ou gritar na rua, sozinhos, não serão suficientes para sustentar as transformações que queremos no mundo. Vai ser preciso lutar em todas as frentes. E também atrás. Eu quis registrar que começamos de vários lados.

  

Natasja Garonne, blogueira e Domme, escreve no blog Rapport de Dra. Natasja

 

 

crônica

Provocação acerca do egoísmo

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Após feridos e mortos, e em dia de eleição do presidente americano, estamos próximos ao final do ano de 2020. Adquiri novos livros, reviro outros antigos, sei que de tudo fica um pouco, tudo vira história. 

Na pandemia encontrei desenhos belíssimos de Noemia Mourão, artista plástica e esposa de Di Cavalcanti. Mistura-se, enlaça papéis, pensamentos atuais sobre desenhos antigos.

Recorte no texto de Ailton Krenak e desenho de Noemia Mourão* 

  “Outro dia fiz um comentário público de que a ideia de sustentabilidade era uma vaidade pessoal, e isso irritou muitas pessoas. Disseram que eu estava fazendo uma afirmação que desorganiza uma série de iniciativas que tinham como propósito educar as pessoas sobre o gasto excessivo de tudo. Eu concordo que precisamos nos educar sobre isso, mas não é inventando o mito da sustentabilidade que nós vamos avançar. Vamos apenas enganar, mais uma vez, quando quando inventamos as religiões. Tem gente que se sente muito confortável se contorcendo no ioga, ralando no caminho de Santiago ou rolando no Himalaia, achando que com isso está se elevando. Na verdade, isso é só uma fricção com a paisagem, não tira ninguém do ponto morto.

 Trata-se de uma provocação acerca do egoísmo: eu não vou me salvar sozinho de nada, estamos todos enrascados. E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma compreensão sobre a vida na Terra. Se você ainda vive a cultura de um povo que não perdeu a memória de fazer parte da natureza, você é herdeiro disso, não precisa resgatá-la, mas se você passou por essa experiência urbana intensa, de virar um consumidor do planeta, a dificuldade de fazer o caminho de volta deve ser muito maior. Por isso acho que seria irresponsável ficar dizendo para as pessoas que, se nós economizarmos água, ou só comermos orgânico e andarmos de bicicleta, vamos diminuir a velocidade com que estamos comendo o mundo – isso é uma mentira bem embalada.

 A própria ideia de certificação, dos teste que são feitos com materiais que consumimos, desde a embalagem até o conteúdo, deveria ser posta em questão antes de a gente abrir a boca para dizer que existe qualquer coisa sustentável neste mundo de mercadoria e consumo. Estamos transformando oceanos em depósitos de lixo impossíveis de tratar, mas vocês, certamente, vão escutar um bioquímico  ou um engenheiro espertalhão dizendo que tem uma startup que que vai jogar um negócio na água, derreter o plástico e resolver tudo. Essa pilantragem orienta, inclusive, a escolha de jovens que vão fazer especialização na Alemanha, na Inglaterra, ou em qualquer lugar,e voltam ainda mais convencidos do erro. Voltam, assim, transbordantes de competência para persuadir os outros de que comer o mundo é uma ótima ideia.

 Enquanto as bases materiais da nossa vida cotidiana estão funcionando, operantes, a gente não se pergunta de onde vem as coisas que consumimos. Na maioria de tempo, as pessoas mal respiram ou têm consciência do que põem na boca para comer. Apenas quando há um desastre, os indivíduos, desplugados das fontes de suprimentos, começam a sofrer e a se questionar. Quem sobrevive a uma grande catástrofe costuma pensar em mudar de vida porque teve uma breve experiência do que é, de fato, estar vivo. Existem muitos povos vivendo situação de perdas, de catástrofe, de guerra. Ouvir sobre como essas pessoas agem para sair de um trauma profundo, olhar ao redor de si e recomeçar sua jornada nisso que chamamos “seguir vivendo”, pode ser instrutivo, mas não substitui a experiência.

 Estou há dois anos vivendo na margem esquerda de um rio junto com outras famílias do meu povo que, do ponto de vista prático, tinham que ter sido removidas daqui, como o que aconteceu com o pessoal de Brumadinho, de Bento Rodrigues e outros lugares. Os Krenak não aceitaram ser retirados, quisemos ficar no local do flagelo. “Ah, mas vocês não tem água!” E daí? “Ah, mas vocês podem morrer aí!” E daí? Sabemos que esse lugar foi profundamente afetado, virou um abismo, mas estamos dentro dele e não vamo sair. É uma questão que incomoda, mas é preciso estar nessa condição para poder produzir uma resposta em plena consciência. Consciência do corpo, da mente, consciência de ser o que se é e escolher ir além da experiência da sobrevivência.”

in A vida não é útil – Companhia das Letras

*  Ailton Krenak, líder indígena, pensador, ambientalista e escritor,66 anos, escolhido intelectual do ano, ganhador do prêmio Juca Pato, premiação realizada pela União Brasileira de Escritores, que reconhece autores que contribuem para o desenvolvimento da democracia brasileira.

 *Noemia Mourão(1912/1992), pintora, cenógrafa e desenhista. Estudou e casou-se com Di Cavalcanti.

*imagens por Helio Carlos Mello

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crônica

Boi bombeiro, boi de piranha na terceira margem

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Baixo Xingu, Kawaiweté

Cantou o poeta Gilberto Gil, certa feita, que sentir é questão de pele e amor é movimento. Sempre, aqui e agora, estanca-se amor.

coração e pele de uma gente de origem

A pele da terra é sua floresta, sua caatinga ou cerrado, mangue, restinga. Nada disso sabem no ringue, imbecis apostadores. Como tu és ou não, eu já não santo ou saberei. Sei de mim, filho da terra, Terra, como ti.

Querem fazer do boi um ser que combate o fogo. Tadinho do boi, na Índia ser tão respeitado, as vacas da maternidade, tolerância, mansidão, sustento do humano. 

Aqui, profana vaca muge heresias. Novos ventos, leitos banais na ocupação de nossa equação? Estranha aritmética no fogo da razão.

Baixo Xingu, Kawaiweté
Crianças Kawaiweté, em
feliz pedagógica canoa e exercício de equilíbrio, prumo e rumo.

Resta-nos apenas a terceira margem do rio, penso como Guimarães Rosa, mandar fazer uma canoa. Aprendi que coisa séria em canoa é o remo, seu rumo.

Sem fim seguem absurdas afirmações da função dos animais. Atribuem qualidades ao gado de corte. De fato é o boi nosso churrasco, mas fogo não é seu apreço.

Preço da carne são outros 500. Índio pensa no desequilíbrio da água e seu brilho.

Aldeia Capivara
À margem do Xingu, na pesca diária da vida e educação indígena.

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crônica

Raoni, da paz de origem, do guerreiro à ciência da vida

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Fico pensando na paz, ausência de excitação, estado de calma. Não o Buda e seu prêmio de afastamento do mal e a eliminação dos demônios, mas o largar as armas, entender a palavra. É prêmio da paz a serenidade? Creio que sim, tal lavar a roupa da noite à beira de rio, tão puro, na alvorada de cada dia.

Alto Xingu
Alvorada entre os povos tradicionais e seus asseios e gratidão, ciência de quem sabe.

Quando nasci havia um pedido de paz, recordo bem nas igrejas da época. Vivi dia assim de paz apenas entre indígenas, homens fortes de luta, luto e senha. Há uma paz entre grandes guerreiros, por mais que ameacem. Descobrimos quando velhos que as armas apenas entristecem, vingam, atiçam a sanha.

Cacique Raoni em sua juventude
Raoni e sua juventude

https://www.facebook.com/watch/live/?v=251647662554241&ref=watch_permalink

Ropni, o cacique Raoni, o mestre das palavras e seus calibres no alvo de nosso peito, representa 5 séculos do brado dos povos nativos daqui, de um planeta Terra. Raoni sempre disse aos kuben, nós mesmos, os homens brancos, que os espíritos lhe dizem sobre a destruição das florestas e suas consequências.

A paz do cacique é a saúde da Terra. Sempre voltamos ao começo na esperança da paz.

live

http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html

*imagens por helio carlos mello

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