Jovens defendem a cultura na Brasilândia e são presos sem provas

Educadores fazem vigila na delegacia e levam alimentos para os aprendizes. Fotos Adolfo Várzea

 

Sétimo episódio:

O dia em que 11 crianças foram parar na delegacia e 11 jovens dormiram na prisão sob acusação de flagrante por dano e vandalismo – sem que a Polícia, a Secretaria de Cultura, a Procuradoria-geral do Estado ou a Secretaria de Segurança Pública explicassem quais danos ou qual ato de vandalismo!

Às 8h20 da manhã o ônibus da Polícia Militar estacionou na porta da Fábrica de Cultura da Brasilândia. Lá dentro desde o dia anterior, crianças e jovens mantinham uma ocupação em protesto à política de sucateamento da cultura e da educação promovida pelo governo do Estado de São Paulo. Os fardados chegaram sem nenhum mandado de segurança ou termo de reintegração de posse para despejar os aprendizes. E, assim, sem muita explicação 22 deles, 11 crianças e 11 jovens, foram levados para o 72º Distrito Policial.

O sábado foi longo e angustiante. Pais e mães foram para a porta do DP sem saber por qual motivo seus filhos estavam detidos. Eles chegaram a escrever para o delegado uma carta dizendo que apoiavam a ocupação e que estavam cientes dos motivos do ato: a demissão em massa de educadores amados pelos aprendizes, o corte de verbas, a diminuição do horário das oficinas e a falta de transparência da Organização Social Poiesis, responsável pela gestão das Fábricas de Cultura.

Os figurões da Poiesis, por sua vez, não se pronunciaram. O diretor da instituição, Henzo Dino Sergente Rossa, não trocou uma única palavra sequer com a mãe aflita e em prantos que cruzou na porta do DP. “Meu filho é um bom menino. Por que ele está na cadeia? Por que?” Henzo não respondeu. Ninguém, aliás, respondia nada.

PM mantém jovens no ônibus.

Só no meio da tarde a Secretaria da Segurança disse que a PM agiu a pedido da Secretaria da Cultura que, então, resolveu se pronunciar. Por meio de nota, afirmou que a decisão pela desocupação foi “tomada a partir da necessidade de garantir o funcionamento da unidade e o acesso do público aos serviços oferecidos pela Fábrica”.

Curioso. A Fábrica estava aberta. Os educadores estavam em greve. Os aprendizes da Brasilândia fariam o mesmo que seus colegas que mantêm a ocupação da Fábrica de Cultura do Capão Redondo: assumiriam a programação do local. “Talvez fosse mais simples bater um papo com os aprendizes e educadores em vez de chamar a polícia, né?”, sugeriu um educador. “Nos textos bonitos de fundamentos pedagógicos que a Poiesis manda para a Secretaria da Cultura fala-se muito em fomentar a autonomia dos jovens em situação de vulnerabilidade. Mas, olha ai, tanto a secretaria quanto a Poiesis, no final das contas, estão colocando a molecada na cadeia e criminalizando quem apenas está defendendo a cultura! É um absurdo!”

Na mesma nota à imprensa, a Secretaria da Cultura informou que a desocupação foi feita por via administrativa, de acordo com o parecer da Procuradoria-Geral do Estado (PGE), um órgão jurídico que defende o governo. Em maio deste ano, poucos dias antes de virar ministro da Justiça do interino Michel Temer, Alexandre de Moraes, então secretário de Segurança Pública de Alckmin, orientou o procurador-geral do Estado a permitir a desocupação de prédios públicos ocupados por estudantes que lutam por melhorias na merenda. A reintegração de posse seria feita sem necessidade de decisão judicial. O parecer foi dado, baseado no direito de autotutela, que é o poder de exercer diretamente a tutela de seus bens.

Mas, ainda, assim, isso não responde à pergunta daquela mãe angustiada: por qual motivo seu filho ainda estava na delegacia com outros jovens?

Foi então que, por volta das 19hs, a delegacia de polícia informou que as crianças sairiam do DP. Parecia que tudo ia se resolver. Um pai emocionado reafirma o orgulho que tem de ver sua filha lutando pelo direito a cultura e educação. Mas e os outros? O que iria acontecer com os 11 jovens detidos? Vão passar a noite na cadeia? “Sim, os maiores de idade estão presos”, disse o escrivão do 72 DP. E finalmente ele revelou o motivo da prisão: flagrante por dano. Qual dano? “Ah, liga para a comunicação da polícia militar que esse assunto é com eles.”Foi o que os Jornalistas Livres fizeram. A soldado Monique, que não informou seu sobrenome por este ser seu “nome de guerra”, disse que esse assunto era da alçada da Secretaria de Segurança Pública. “Eles estão acima da polícia”. Ela, no entanto, revelou a orientação difundida entre os policiais sobre como proceder em desocupações sem mandado de segurança ou termo de reintegração de posse. “Funciona assim: esses documentos são obrigatórios apenas quando NÃO existe ato de vandalismo. Se a polícia entrou lá, é porque teve vandalismo”, completou. “Mas fale com a Secretaria de Segurança Pública. Eles respondem por isso.”

Educadores levam comida para os aprendizes encarcerados.
Educadores levam comida para os aprendizes encarcerados. Foto de Adolfo Várzea.

De novo, foi o que os Jornalistas Livres fizeram. Foram mais de dez ligações para os plantonistas da assessoria de imprensa. Ninguém atendeu. As telefonistas já reconheciam a repórter pela voz e, vencida pelo cansaço uma delas desabafou: “também… só tem estagiário em plantão. Não tenho culpa se eles ficam no facebook e no whatts o tempo todo. Não posso sair do meu lugar.” E, assim ficou.

Onze jovens vão passar a noite na cadeia. Onze jovens são acusados de vandalismo e flagrante por dano sem provas. Qual vandalismo? Qual dano? A Secretaria da Cultura não contou. A Secretaria de Segurança Pública também não falou. A Procuradoria-Geral do Estado não explicou. Os Policiais Militares também não. Ninguém sabe, ninguém viu.

Mas, ah, como o dia foi longo, por volta das 23hs o delegado resolveu explicar uma coisinha: a porta do elevador da Fábrica de Cultura está danificada e seria esse o ato de vandalismo e dano flagrante. Só um detalhe: ontem, logo após a ocupação, apenas a energia elétrica da Fábrica de Cultura falhou no bairro da Brasilândia. Cinco crianças ficaram presas no elevador por mais de três horas. Quando dois deles começaram a passar mal, o Corpo de Bombeiros foi acionado. A abertura da porta foi gravada em vídeo. Mas o delegado, o secretario de cultura, o procurador, o diretor da Poiesis, o secretário de segurança, o governador e até ao ministro da Justiça não manifestaram interesse em assistir a esse episódio da história. É bem mais fácil deixar 11 jovens na cadeia sem provas.

Em tempo: os jovens também responderão por corrupção de menores. E isso obriga o caso a ter uma audiência de custódia, uma garantia de rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. Mas isso só na segunda-feira.

 

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