O histórico de processos apresentado pelo dossiê configura uma prática reiterada de abuso de poder, calúnia e denúncias infundadas de obstrução à justiça, crime que imputou ao reitor e a duas vítimas anteriores: seu vizinho Flávio Cozzatti e o procurador catarinense Ricardo Francisco da Silveira, falecido na véspera de receber a indenização, no caso mais emblemático e mais parecido com o do reitor. Sob a falsa alegação de ameaça à mão armada, Hickel convocou, na condição de síndico do condomínio Forest Park, em Coqueiros, policiais do BOPE com metralhadoras para arrombar e invadir o apartamento de Cozzatti, professor de Administração da Universidade de São José.
Conforme os autos acrescentados ao processo e citados pela magistrada na decisão final, os policiais ameaçara e levaram preso o professor na frente da mulher, filhos e vizinhos. Ele e seu amigo procurador foram processado por Hickel sob acusação de roubo de sinal de TV a Cabo, depredação do patrimônio e desacato à autoridade policial. Ambos foram absolvidos e reverteram o processo contra Hickel, acusando-o de injúria, calúnia e difamação no condomínio, de acordo com a reportagem reproduzida nos autos. Hickel e os policiais também foram processados e condenados por abuso de poder, mas a sentença de Ricardo foi extinta com o seu falecimento.
Acompanhando a decisão da juíza Michele Pólipo, em primeira instância na Justiça Federal, o colegiado acatou a Exceção da Verdade, uma peça de 1.700 páginas aferindo que todas as afirmações sobre a conduta e antecedentes de Hickel contestadas na ação penal por crimes contra a honra e no recurso impetrado por ele como fantasiosas e caluniosas foram exaustivamente comprovadas por documentos jurídicos, administrativos, policiais, testemunhos, depoimentos dos autos e entrevistas. “Não caracteriza fato típico a publicação de matéria jornalística que narre fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, sobretudo quando trate de pessoa pública que exerça atividades relevantes na comunidade, e a notícia e crítica referirem-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade pública desenvolvida pela pessoa noticiada”, atestou a desembargadora Cláudia Cristofani.
A relatora apontou que o principal objetivo do dossiê veiculado no site dos Jornalistas Livres “direcionou-se para o seguinte questionamento: quem é a pessoa que ocupava o cargo de corregedor da Universidade Federal de Santa Catarina?” Sob esse aspecto, a relatora afirma que não reconhece “qualquer afronta ao direito de personalidade do querelante”. E ainda afirma que “na condição de servidor público ou no exercício de função pública relevante, o questionamento é constante e, inclusive, exigível”.
APELAÇÃO DO CORREGEDOR AJUDOU DEFESA A EXPOR NOVAS PROVAS
A queixa-crime apresentada em 4 de abril de 2018 e o recurso impetrado pelo corregedor em 1° de abril de 2019, logo após a absolvição da acusada em primeira instância fez com que o acusador tivesse os seus maus feitos ainda mais expostos. Assumida voluntariamente pelo Coletivo Advogados e Adovgadas pela Democracia, a defesa da repórter pôde requerer em juízo várias ações inacessíveis ou por serem mantidas em sigilo ou estarem prescritas, que alargaram e deram ainda mais fundamento aos fatos discorridos no dossiê. Entre eles se destaca a Sindicância Investigativa da Corregedoria Geral da União, até então mantida em sigilo, que apurou desvios de conduta no relacionamento de Hickel com estudantes, professores e técnicos administrativos da universidade e fundamentou o seu afastamento definitivo do cargo de corregedor. Conforme a juíza, referendada pela desembargadora, “esses indícios apurados pela sindicância, tais como, coação e ameaças a servidores, assédio moral e insubordinação administrativa” são “incompatíveis com o exercício da função de corregedor”.
“Fatos verídicos ou verossímeis”
Em recurso dirigido ao TRF4, o ex-corregedor, defendido por seu filho Rodolfo Macedo do Prado, retomou os argumentos da ação penal, qualificando a matéria de fantasiosa, mentirosa e movida por animus difamandi, quando há intenção de caluniar e difamar. Na ação ele pede a condeção, prisão da autora e pagamento de indenização de no mínimo R$ 40 mil por crime de honra. Em seu extenso voto, após analisar detalhadamente todos os argumentos lançados por ambas as partes, a desembargadora Cláudia Cristina Cristofani recusa de modo contundente esse juízo, considerando a relevância e o caráter público da denúncia:
“No princípio da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, compreendendo o direito à informação, à opinião e à crítica jornalística, entendo que não resta caracterizada a calúnia ou a difamação denunciada pelo querelante (Hikel). A publicação da matéria jornalística em apreço versou sobre fatos verídicos ou, no mínimo, verossímeis que, embora contaminados por opiniões severas e impiedosas, envolviam pessoa pública (corregedor da UFSC, à época), relevante naquela comunidade acadêmica. A matéria e a crítica, bem se viu, referiam-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade desenvolvida pelo querelante e ao caso que provocou a comoção daquela sociedade. Nesse caso, segundo os precedentes antes citados, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são prevalentes, atraindo verdadeira excludente anímica, a afastar o intuito doloso de ofender a honra da pessoa a que se refere a reportagem.”
“Dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão”
Em primeira instância, a juíza Micheli Pólippo, do Juizado Especial Criminal da 7ª Vara Federal de Florianópolis, já havia deferido em 7 de fevereiro de 2019, uma sentença exemplar no sentido de afastar o caráter fantasioso da reportagem e atestar sua veracidade. “Além de todo o exposto, a exceção da verdade encontra-se instruída também com outros documentos, extraídos de processos judiciais, informações policiais e processos administrativos. Há comprovação de que a matéria jornalística foi embasada em documentos oficiais e verdadeiros. Portanto, não é possível reconhecer o caráter inverídico ou fantasioso das informações que conferem substrato à opinião retratada na notícia. Reconheço, assim, a procedência da exceção da verdade, de modo que afasto a materialidade do crime de calúnia”.
Agentes públicos são sujeitos a críticas em Estado Democrático e de Direito
Citando precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a magistrada ressalta que “um dos corolários da atuação dos agentes públicos é a sujeição a críticas – por vezes desarrazoadas, intempestivas, é certo – mas sem perder de vista que proferidas no seio de um Estado Democrático de Direito, cuja análise, por isso, deve ser realizada à luz da proporcionalidade e em harmonia com todo um sistema de garantias individuais e coletivas asseguradas constitucionalmente”.
“Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal registram julgados em que, no tocante aos crimes contra a honra, reconhecem uma limitação do núcleo essencial da intimidade e da vida privada da pessoa pública, principalmente quando confrontados com o exercício da liberdade de imprensa, baseado em levantamentos de fatos de interesse público, cuja gravidade ostenta ampla repercussão social., registra a desembargadora federal.
Reitor foi preso e morreu em função de notícia-crime dada por pessoa sem credibilidade
As denúncias infundadas de tentativa de obstrução de investigação judicial e de desvio de verbas do Programa Universidade Aberta incriminaram o reitor Cancellier com órgãos federais da Polícia, Justiça e Ministério Público. Embora as irregularidades no Educação a Distância não se referissem ao período de gestão do reitor, o conduziram à sua prisão espetacularizada na manhã bem cedo do dia 14 de setembro de 2017, em casa e enrolado numa toalha de banho, por 120 agentes policiais, no âmbito da Operação Ouvidos Moucos, comandada pela delegada federal Érika Marena.
A defesa da jornalista argumentou que sua atuação encontra-se resguardada pela liberdade de imprensa e que o “querelante busca é impor constrangimento por meio do processo penal, criando uma ameaça para todos os demais jornalistas, cerceando temerariamente a liberdade de imprensa no preciso momento em que sua afirmação é vital para a democracia brasileira”. Acrescentou que o interesse público está acima dos dissabores pessoais do querelante e que “a matéria jornalística tenta jogar luz no fato de que uma pessoa morreu em função de uma notícia crime, esta dada por uma pessoa cuja credibilidade deveria ter sido levada em conta, mas ao contrário, uma pessoa foi presa, humilhada e proibida de voltar ao seu meio ambiente de trabalho por conta das tidas investigações do corregedor”.
Recurso criminal em sentido estrito número 5000096-11.2020.4.04.7200/SC
3 respostas
Até hoje parece um pesadelo.
Conheçi o Cao criança, de uma família simples, Excelente pais, muito amorosos, sempre presente na vida dos filhos.
Sinto saudades da nossa infância em Tubarão SC.
Obrigada por divulgarem esta informação. Só enfatizando que a triste morte de Chancellier ocorreu no Shopping Beiramar.
Um estudo muito interessante da publicação russa World Analytica, sob o título “Quem dirige o Brasil?”. O autor tenta descobrir quem tem maior influência na política brasileira e quem controla todas as instituições de poder. Uma análise de tendências ocultas e evidentes leva a conclusões inesperadas. A imagem do esquema de influência e controle é especialmente impressionante. O botão do tradutor está no topo. http://worldanalytica.com/index.php/features/braziliya/item/307-kto-pravit-braziliej