A jornalista livre Raquel Wandelli Loth foi absolvida em segunda instância na ação por crime de injúria calúnia e difamação movida pelo ex-corregedor da Universidade Federal de Santa Catarina, Rodolfo Hickel do Prado, pela autoria da reportagem “Dossiê exclusivo: corregedor que entregou reitor à PF já foi processado por calúnia e difamação“. Publicada na edição dos Jornalistas Livres de 30 de outubro de 2017, a investigação revela os antecedentes criminais e as condenações do principal pivô da intriga que levou à prisão, banimento da universidade, humilhação e suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. O acórdão da 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, dirigido pela desembargadora federal Cláudia Cristina Cristofani, rejeitou por unanimidade o recurso impetrado por Hickel contra a sentença em inicial que absolveu a jornalista dos crimes alegados. Na reportagem, a repórter apresenta um levantamento de fatos e antecedentes jurídicos, criminais e administrativos que mostram a conduta persecutória e agressiva do então corregedor. Afastado da UFSC pela Corregedoria Geral da União por desvios de conduta, Hickel do Prado persegue a jornalista há três anos, infringindo-lhe processos no BOPE de SC, Justiça Federal e Polícia Federal.
Hickel do Prado, inquisidor do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier. Bilhete de despedida deixa claro motivo do suicídio
O histórico de processos apresentado pelo dossiê configura uma prática reiterada de abuso de poder, calúnia e denúncias infundadas de obstrução à justiça, crime que imputou ao reitor e a duas vítimas anteriores: seu vizinho Flávio Cozzatti e o procurador catarinense Ricardo Francisco da Silveira, falecido na véspera de receber a indenização, no caso mais emblemático e mais parecido com o do reitor. Sob a falsa alegação de ameaça à mão armada, Hickel convocou, na condição de síndico do condomínio Forest Park, em Coqueiros, policiais do BOPE com metralhadoras para arrombar e invadir o apartamento de Cozzatti, professor de Administração da Universidade de São José.
Conforme os autos acrescentados ao processo e citados pela magistrada na decisão final, os policiais ameaçara e levaram preso o professor na frente da mulher, filhos e vizinhos. Ele e seu amigo procurador foram processado por Hickel sob acusação de roubo de sinal de TV a Cabo, depredação do patrimônio e desacato à autoridade policial. Ambos foram absolvidos e reverteram o processo contra Hickel, acusando-o de injúria, calúnia e difamação no condomínio, de acordo com a reportagem reproduzida nos autos. Hickel e os policiais também foram processados e condenados por abuso de poder, mas a sentença de Ricardo foi extinta com o seu falecimento.
A respeito desse caso, a desembargadora anotou, atestando que não houve por parte da jornalista dolo de difamar ou caluniar: “Há substrato que fundamenta a matéria jornalista adversada. Isso porque há documentos oficiais, extraídos de processos judiciais e de informação policial, que evidenciam que Rodolfo Hickel do Prado, na condição de síndico no prédio em que morava, teria “denunciado” Flávio Cozzati. A forma caluniosa pela qual ocorreu a referida denúncia foi reconhecida em sentença pelo juiz de direito Claudio Eduardo Regis Figueiredo e Silva. Com base nisso, sem que haja qualquer valoração deste juízo, a comparação da situação vivenciada por Flávio com a do Reitor encontra-se adstritiva ao exercício da liberdade de expressão, portanto”.
Dossiê mostra conduta persecutória e caluniadora do corregedor que intrigou e incriminou Cancellier com aparatos federais
Acompanhando a decisão da juíza Michele Pólipo, em primeira instância na Justiça Federal, o colegiado acatou a Exceção da Verdade, uma peça de 1.700 páginas aferindo que todas as afirmações sobre a conduta e antecedentes de Hickel contestadas na ação penal por crimes contra a honra e no recurso impetrado por ele como fantasiosas e caluniosas foram exaustivamente comprovadas por documentos jurídicos, administrativos, policiais, testemunhos, depoimentos dos autos e entrevistas. “Não caracteriza fato típico a publicação de matéria jornalística que narre fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas, sobretudo quando trate de pessoa pública que exerça atividades relevantes na comunidade, e a notícia e crítica referirem-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade pública desenvolvida pela pessoa noticiada”, atestou a desembargadora Cláudia Cristofani.
Para sustentar que a reportagem não é fantasiosa, nem movida por injúria, como alega o querelante (Hickel), no longo parecer que justifica o voto, Cristofani examina e copia trechos de todos os processos judiciais e administrativos citados, como crimes de injúria, difamação e calúnia; crimes de trânsito com direção perigosa e agressão física; violência contra mulheres; abuso de poder e conduta persecutória, nos quais o corregedor se envolveu. Como exemplo, cita um crime de trânsito cometido no Continente, que aparece como condenação na Certidão de Antecedentes Criminais com trânsito julgado em 26/03/2012, pouco antes de assumir o cargo na UFSC envolvendo agressão física dentro da Delegacia Policial com lesão do motorista e da autoridade policial, que a desembargadora cita em detalhes. Para mostrar a veracidade das informações da reportagem, a relatora do acórdão também copia vários trechos das ações requeridas pela defesa em juízo movidas por sua ex-esposa, que sofreu um aborto após seguidos episódios de agressões físicas e morais, e a namorada, com quem mantinha um relacionamento da mesma forma abusivo e concomitante, sem que uma soubesse da existência da outra. Desta vez
A relatora apontou que o principal objetivo do dossiê veiculado no site dos Jornalistas Livres “direcionou-se para o seguinte questionamento: quem é a pessoa que ocupava o cargo de corregedor da Universidade Federal de Santa Catarina?” Sob esse aspecto, a relatora afirma que não reconhece “qualquer afronta ao direito de personalidade do querelante”. E ainda afirma que “na condição de servidor público ou no exercício de função pública relevante, o questionamento é constante e, inclusive, exigível”.
APELAÇÃO DO CORREGEDOR AJUDOU DEFESA A EXPOR NOVAS PROVAS
A queixa-crime apresentada em 4 de abril de 2018 e o recurso impetrado pelo corregedor em 1° de abril de 2019, logo após a absolvição da acusada em primeira instância fez com que o acusador tivesse os seus maus feitos ainda mais expostos. Assumida voluntariamente pelo Coletivo Advogados e Adovgadas pela Democracia, a defesa da repórter pôde requerer em juízo várias ações inacessíveis ou por serem mantidas em sigilo ou estarem prescritas, que alargaram e deram ainda mais fundamento aos fatos discorridos no dossiê. Entre eles se destaca a Sindicância Investigativa da Corregedoria Geral da União, até então mantida em sigilo, que apurou desvios de conduta no relacionamento de Hickel com estudantes, professores e técnicos administrativos da universidade e fundamentou o seu afastamento definitivo do cargo de corregedor. Conforme a juíza, referendada pela desembargadora, “esses indícios apurados pela sindicância, tais como, coação e ameaças a servidores, assédio moral e insubordinação administrativa” são “incompatíveis com o exercício da função de corregedor”.
Nessa segunda fase, a defesa descobriu novos crimes e novos processos judiciais e administrativos movidos contra o corregedor que aprofundaram ainda mais o retrato da sua conduta. Um deles largamente citado pela desembargadora é o de crime de trânsito ocorrido no Continente. A defesa da repórter em primeira e segunda instância foi realizada representados por Ruy da Silva dos Santos Júnior e Tânia Mara Mandarino, do Coletivo Advogados e Advogadas pela Democracia, com apoio, na primeira audiência, da advogada Nívea Maria Dondoerfer, que atuou também na defesa do reitor, e de Guilherme Querne, do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC.
“Fatos verídicos ou verossímeis”
Jornalista absolvida por unanimidade: Raquel Wandelli: defesa à liberdade de imprensa
Em recurso dirigido ao TRF4, o ex-corregedor, defendido por seu filho Rodolfo Macedo do Prado, retomou os argumentos da ação penal, qualificando a matéria de fantasiosa, mentirosa e movida por animusdifamandi, quando há intenção de caluniar e difamar. Na ação ele pede a condeção, prisão da autora e pagamento de indenização de no mínimo R$ 40 mil por crime de honra. Em seu extenso voto, após analisar detalhadamente todos os argumentos lançados por ambas as partes, a desembargadora Cláudia Cristina Cristofani recusa de modo contundente esse juízo, considerando a relevância e o caráter público da denúncia:
“No princípio da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, compreendendo o direito à informação, à opinião e à crítica jornalística, entendo que não resta caracterizada a calúnia ou a difamação denunciada pelo querelante (Hikel). A publicação da matéria jornalística em apreço versou sobre fatos verídicos ou, no mínimo, verossímeis que, embora contaminados por opiniões severas e impiedosas, envolviam pessoa pública (corregedor da UFSC, à época), relevante naquela comunidade acadêmica. A matéria e a crítica, bem se viu, referiam-se a fatos de interesse geral relacionados à atividade desenvolvida pelo querelante e ao caso que provocou a comoção daquela sociedade. Nesse caso, segundo os precedentes antes citados, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são prevalentes, atraindo verdadeira excludente anímica, a afastar o intuito doloso de ofender a honra da pessoa a que se refere a reportagem.”
“Dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão”
Desembargador Cláudia Cristofani segue juíza Micheli Polippo: “Não houve calúnia e difamação: os fatos são verídicos “
Em primeira instância, a juíza Micheli Pólippo, do Juizado Especial Criminal da 7ª Vara Federal de Florianópolis, já havia deferido em 7 de fevereiro de 2019, uma sentença exemplar no sentido de afastar o caráter fantasioso da reportagem e atestar sua veracidade. “Além de todo o exposto, a exceção da verdade encontra-se instruída também com outros documentos, extraídos de processos judiciais, informações policiais e processos administrativos. Há comprovação de que a matéria jornalística foi embasada em documentos oficiais e verdadeiros.Portanto, não é possível reconhecer o caráter inverídico ou fantasioso das informações que conferem substrato à opinião retratada na notícia. Reconheço, assim, a procedência da exceção da verdade, de modo que afasto a materialidade do crime de calúnia”.
Na mesma linha, a juíza já havia afastado também o crime de difamação, legitimando a tarefa do jornalismo de investigar fatos e expressar indignação dentro dos limites da liberdade de expressão: “Embora seja possível aferir um certo grau de excesso de linguagem, ele não é suficiente para o reconhecimento do dolo específico, que se mostra necessário para a configuração da conduta. Vale ressaltar que é da natureza da atividade jornalística a investigação, o questionamento e, a depender do veículo de comunicação, a exposição de sentimentos demonstrados pela sociedade em determinado momento. Com base nos documentos que foram devidamente apresentados pela querelada, sopesado o contexto trágico anteriormente destacado, a morte do Reitor, a notícia relatou fatos e expressou indignação, o que a preserva dentro dos limites do exercício da liberdade de expressão.“
Agentes públicos são sujeitos a críticas em Estado Democrático e de Direito
Citando precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a magistrada ressalta que “um dos corolários da atuação dos agentes públicos é a sujeição a críticas – por vezes desarrazoadas, intempestivas, é certo – mas sem perder de vista que proferidas no seio de um Estado Democrático de Direito, cuja análise, por isso, deve ser realizada à luz da proporcionalidade e em harmonia com todo um sistema de garantias individuais e coletivas asseguradas constitucionalmente”.
“Nessa senda, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal registram julgados em que, no tocante aos crimes contra a honra, reconhecem uma limitação do núcleo essencial da intimidade e da vida privada da pessoa pública, principalmente quando confrontados com o exercício da liberdade de imprensa, baseado em levantamentos de fatos de interesse público, cuja gravidade ostenta ampla repercussão social., registra a desembargadora federal.
Reitor foi preso e morreu em função de notícia-crime dada por pessoa sem credibilidade
Manifestação do dia 18 de dezembro, no aniversário da UFSC, em homenagem ao reitor suicidado
As denúncias infundadas de tentativa de obstrução de investigação judicial e de desvio de verbas do Programa Universidade Aberta incriminaram o reitor Cancellier com órgãos federais da Polícia, Justiça e Ministério Público. Embora as irregularidades no Educação a Distância não se referissem ao período de gestão do reitor, o conduziram à sua prisão espetacularizada na manhã bem cedo do dia 14 de setembro de 2017, em casa e enrolado numa toalha de banho, por 120 agentes policiais, no âmbito da Operação Ouvidos Moucos, comandada pela delegada federal Érika Marena.
Levado algemado nas mãos e acorrentado nos pés à ala de segurança máxima da Penitenciária Estadual de Florianópolis, o reitor foi obrigado a se despir em frente a outros presos e a fazer revista íntima. Só ao final do dia seguinte, foi solto sob habeas corpus, mas banido da direção da universidade e das salas de aula. Acusado de roubo de R$ 500 milhões (valor estapafúrdio divulgado pela operação, que correspondia ao orçamento do programa inteiro em 10 anos), passou ainda pelo linchamento moral nos meios de comunicação e mídias sociais. Esses eventos levaram o reitor, homem de origem muito humilde e réu primário, que nunca respondeu um único processo administrativo, ao gesto máximo de desespero. Na manhã do dia 2 de outubro, o corpo do jurista de 59 anos tombou fazendo um grande estrondo no vão do Shopping Beira Mar, em Florianópolis, com um bilhete no bolso: “Minha morte foi decretada no dia em que fui banido da universidade”. O alegado desvio de verbas e o envolvimento de Cancellier em qualquer irregularidade nunca foram comprovados pela Ouvidos Moucos.
A defesa da jornalista argumentou que sua atuação encontra-se resguardada pela liberdade de imprensa e que o “querelante busca é impor constrangimento por meio do processo penal, criando uma ameaça para todos os demais jornalistas, cerceando temerariamente a liberdade de imprensa no preciso momento em que sua afirmação é vital para a democracia brasileira”. Acrescentou que o interesse público está acima dos dissabores pessoais do querelante e que “a matéria jornalística tenta jogar luz no fato de que uma pessoa morreu em função de uma notícia crime, esta dada por uma pessoa cuja credibilidade deveria ter sido levada em conta, mas ao contrário, uma pessoa foi presa, humilhada e proibida de voltar ao seu meio ambiente de trabalho por conta das tidas investigações do corregedor”.
Recurso criminal em sentido estrito número 5000096-11.2020.4.04.7200/SC
Até hoje parece um pesadelo.
Conheçi o Cao criança, de uma família simples, Excelente pais, muito amorosos, sempre presente na vida dos filhos.
Sinto saudades da nossa infância em Tubarão SC.
Quando o escritor francês Honoré de Balzac teve acesso ao vídeo da audiência de Mariana Ferrer, ele decidiu escrever o Código dos homens honestos, isso nos idos de 1875, mas só agora estou tornando públicas suas palavras, que estavam sob segredo de justiça.
Em uma análise bastante rigorosa, Balzac lembra, em primeiro lugar, que sabemos perfeitamente bem que “em princípio, ficou estabelecido que a justiça seria para todos, mas […]” . A tradução é de Léa Novaes, pois Balzac tinha dificuldade em escrever em português.
Dito isso, ele fala da figura do procurador. Em tempos idos, diz Balzac, os procuradores “levavam tão a sério o interesse de um cliente que chegavam a morrer por eles”. Além disso, eles “nunca frequentavam a sociedade”, e se a frequentassem eram vistos como “monstros”, mas hoje, “hoje tudo está monetarizado: já não se diz que Fulano foi nomeado procurador-geral, vai defender os interesses de sua província […]. Não, nada disso; o senhor Fulano acaba de conquistar um belo posto, procurador-geral, o que equivale a honorários de vinte mil francos […]”.
Balzac ia falar da figura do juiz e do defensor público, mas depois de tudo que assistiu ficou sem as palavras justas para descrevê-los.
Então, o escritor francês decidiu se debruçar sobre o papel do advogado, que “frequenta bailes, festas […] despreza tudo o que não é elegante”. E, diz Balzac, “Justiça seja feita aos advogados […]! São os decanos, os chefes, os santos, os deuses da arte de fazer fortuna com rapidez e com uma sagacidade que os torna merecedores de muitos elogios”.
Enfim, “de todas as mercadorias deste mundo, a mais cara é sem dúvida a justiça”.
Não citei na íntegra o texto do Balzac, porque foram esses os únicos fragmentos aos quais tive acesso, os outros foram apagados.
*Formada em Direito, em 1992, na Universidade Federal de Santa Catarina
Nos EUA voto popular não significa vitória. Biden terá mais votos do que Trump e ainda assim o resultado da eleição continuará indefinido por algum tempo. Apesar dos descalabros que marcaram a gestão Trump antes e durante a pandemia, o seu desempenho na atual corrida eleitoral será muito forte.
Mateus Pereira, Valdei Araujo e Walderez Ramalho, professores da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana, MG
A disputa está sendo muito mais acirrada do que era inicialmente previsto pela maior parte dos institutos de pesquisa e da mídia americana, embora a cautela e o medo nunca deixaram de estar presentes. Sob esse ponto de vista, as eleições deste ano são como uma repetição do que vimos em 2016, ainda que o resultado possa ser a derrota eleitoral para Trump. Em 2016 foram os democratas que denunciaram a interferência russa, agora é o presidente-agitador que se apressa em questionar a legitimidade do pleito, sem mostrar nenhuma prova. Sabemos que no ambiente do atualismo provas têm como base apenas convicções.
Um sistema eleitoral que sobreviveu por séculos, sem grandes mudanças, pode ter se tornado obsoleto desde a eleição de Bush, em 2000. Um lembrete do possível declínio da democracia americana: das últimas oito eleições presidenciais desde 1992, os democratas venceram no voto popular as últimas sete, mas em apenas quatro ocasiões ganharam o colégio eleitoral e fizeram o presidente.
Acreditamos que as eleições nos EUA são um exemplo do confronto entre duas estratégias e duas concepções sobre fazer política: de um lado, Trump e sua promessa de eterna atualização da atualidade em modo nostálgico; e Biden, com sua aposta moderada no cansaço na agitação atualista que seu adversário republicano encarna e radicaliza, e a retomada da política em moldes liberais. Essa retomada é feita sem uma crítica efetiva ao modelo neoliberal abraçado pela cúpula do partido democrata. Uma aposta radical, como Sanders, teria se saído melhor? É difícil dizer, mas tudo leva a crer que não, tendo em vista o complicado xadrez do voto estado a estado.
A escolha entre as duas estratégias/concepções se mostrou muito mais difícil e apertada do que se imaginava. A tal “onda azul” anunciada por parte da imprensa estadunidense esteve longe de acontecer. De fato, Trump se mostrou eleitoralmente muito mais forte do que os analistas supunham. Considerando que esta não é a primeira vez que os institutos de pesquisa falharam em captar esse movimento no eleitorado americano, e considerando também que fenômeno semelhante ocorreu no Brasil em 2018, coloca-se a questão de saber se as tradicionais pesquisas de opinião tornaram-se de alguma forma obsoletas em um mundo atualista. Esse quadro muda pouco, mesmo com uma eventual vitória de Biden ou pior, com uma inconveniente reeleição de Trump.
São vários fatores que devem ser considerados para avaliar essa questão. Os próprios institutos se apressaram a ensaiar algumas explicações ao público. O diretor da Trafalgar Group, Robert Cahaly, afirmou que muitos eleitores “esconderam”, como já havia acontecido, sua preferência por Trump por algum receio ou constrangimento social.[1] Não podemos desconsiderar algum tipo de boicote/sabotagem dos eleitores republicanos, já que na retórica do trumpismo as pesquisas de opinião fazem parte da mídia vendida. Outros recorreram à justificativa de que as pesquisas anteriores representavam apenas fotografias do momento específico em que as entrevistas foram feitas, e não o que se poderia esperar na eleição propriamente dita. Isso poderia ter sido de fato observado pela tendência de redução da vantagem de Biden nos últimos 15 dias. Afinal, o episódio da contaminação de Trump e sua rápida recuperação pode ter tido um saldo positivo, ao menos na mobilização de sua base, como já havíamos especulado em coluna anterior.
Aceite-se ou não essas justificativas, fato é que os institutos de pesquisa sairão dessas eleições com sua credibilidade e imagem pública mais arranhadas, sobretudo diante das especificidades do sistema eleitoral americano. Como afirmamos, muitos fatores concorrem para esse desgaste. Um deles está relacionado à condição atualista que caracteriza o nosso presente e como cada um dos candidatos se coloca frente a tal condição.
Trump é um político bastante sintonizado com o ambiente da comunicação atualista onde as provas dispensam comprovação factual. Seja nas redes sociais, seja em seus concorridos comícios, o presidente se revela um comunicador difícil de ser batido. Dentre os aspectos associados à condição atualista, destacamos a intensidade e velocidade sem precedentes do fluxo de notícias, em detrimento dos protocolos de verificação e checagem da informação veiculada. Esse ambiente infodêmico[2] é particularmente fértil para a produção de desinformação e sua disseminação como misinformação.[3] Além das informações imprecisas, para não dizer apenas falsas, que a infodemia trumpista ajuda a difundir, é preciso levar em consideração a agitação/ativação que produz. É como se a oposição se agitasse confusamente e a base trumpista se ativasse a cada um de seus comentários polêmicos. Assim, o uso constante das redes sociais para disseminar fake news ou comentários faz com que, seja de modo positivo ou negativo, o presidente esteja sempre no foco da mídia. O acúmulo de notícias sobre suas falas ou atos inconsequentes faz com que seja difícil recuperar qual foi o absurdo dito ou feito na semana anterior. Na condição atualista há um valor excepcional em estar mais atualizado (e exposto) que o seu adversário.
Ainda assim, a manipulação das fake news como ferramenta política supõe uma linguagem organizada para se tornar eficaz. Essa afirmação pode soar chocante à primeira vista: como podemos atribuir coerência a um discurso fundamentado em desinformação e que frequentemente e sem o menor pudor afirma hoje o contrário do que disse ontem, como o exemplo do uso de máscaras na pandemia?[4] O ponto aqui é que a condição atualista coloca muitos obstáculos para que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Assim, quando confrontados com suas próprias contradições, políticos atualistas como Trump e Bolsonaro simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Com muita frequência, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da contradição com o que eles mesmos diziam no dia anterior.
Essa estrutura atualista do discurso político só se torna eficaz, porém, no interior de uma linguagem organizada e facilmente identificável pelo público que a compartilha, no interior de uma condição material de reorganização do mundo do trabalho e do capital. A crise de 2008, concentração de renda, neoliberalismo, capitalismo de vigilância e a formação do atual “precariado” são elementos, dentre outros, fundamentais para entender a emergência de líderes que governam e são eleitos por pequenas maiorias mobilizadas pela historicidade e ideologia atualista. Só assim podemos entender a força de Trump na eleição independente do resultado final, ainda que sua derrota interesse a todos os democratas do mundo.
Trump lança mão de artifícios retóricos quando confrontado com suas afirmações evidentemente baseadas em mentiras e contradições, de tal maneira que ele consegue, mesmo em tais situações, transmitir e reforçar o código entre o seu público. O código se estrutura em uma lógica antagonista, na qual o portador é sempre vítima de perseguição por parte do establishment e da imprensa vendida para a “esquerda corrupta” ou as corporações globalistas.
O ponto principal a ser considerado é que para ser politicamente eficaz não é necessário que o código seja compartilhado por todos; mas que seja continuamente ativado junto aqueles que já o compartilham. Por mais que esteja sustentado em desinformações, o fato é que o código é bastante poderoso na ativação de afetos políticos centrais como o medo, ódio e ansiedade, vetores de forte engajamento e agitação política que Trump e Bolsonaro sabem tão bem promover.
O sucesso dessa estratégia se coaduna com a popularização das redes sociais e dos smartphones, bem como das novas tecnologias de processamento de dados manipulados para fins políticos. Nesse contexto, tornou-se possível criar e difundir mensagens sob medida para cada tipo de público, cada indivíduo ou grupo formula suas próprias percepções sobre o mundo a partir de narrativas (códigos) que não mais precisam ser expostos publicamente a todos para serem eficazes. Após alguns reconhecimentos iniciais, os algoritmos se encarregam de abastecer-nos das notícias que nos mobilizam, sempre com o mesmo teor e formato. Reforça-se, assim, o fenômeno das “bolhas”.[5] Esses códigos podem circular de forma subterrânea, de tal modo que o que parece absurdo e chocante para uns, é perfeitamente aceitável e normalizado para outros.
Esse ambiente de circulação de notícias e códigos é condizente com a ordem atualista de nosso tempo e, ao nosso ver, é um fator importante a ser considerado no desempenho surpreendente de Trump nestas eleições. E um dos preços a se pagar para tal sucesso é a radicalização do clima de agitação que tem marcado a nossa época. Esse quadro tem resultado inclusive em distúrbios psicológicos cada vez mais comuns, como o “transtorno do estresse eleitoral”, que segundo estimativas afeta sete em cada dez cidadãos estadunidenses.[6]
Os políticos atualistas claramente não se importam em pagar esse preço, na verdade eles têm lucrado com isso. Mas, ao fim e ao cabo, eles não podem evitar completamente os efeitos colaterais de suas apostas. Agitação e dispersão geram também cansaço no eleitorado. Biden e os democratas tomaram esse efeito como vetor de suas estratégias para estas eleições. Frente à irrefreável agitação de Trump, Biden se vendeu como a opção mais “centrista”, de moderação e convergência. A divergência entre as duas estratégias foi mais uma vez demonstrada logo após o fechamento da votação: enquanto Trump se apressou em declarar-se vencedor e dizer que irá judicializar a eleição em caso de derrota, Biden classificou tal postura como “ultrajante” e pregou calma aos seus apoiadores[7].
Mesmo que a vitória do democrata seja confirmada, é inegável que o preço desse lance foi bastante alto. A imprensa americana noticiou como parcelas importantes do eleitorado negro, que o próprio Biden afirmou ser “a chave para a vitória”, relataram estarem pouco motivados a votarem no candidato democrata.[8] O mesmo ocorreu entre parte do eleitorado hispânico, em especial na Flórida e no Texas. O conservadorismo nos costumes, a adesão a denominações evangélicas que tem crescido entre hispânicos e a tradição anticomunista dos cubanos, e agora também venezuelanos, na Flórida, são fenômenos a serem considerados. Enquanto fechamos essa coluna Trump ainda lidera na Pensilvânia, estado no qual o operariado branco migrou dos democratas para o trumpismo. No último debate, Biden acabou por reconhecer que teria que acabar com a exploração do altamente poluente gás de xisto, o que foi imediatamente explorado por Trump: “Eis uma declaração importante”, ironizou o presidente. Caso perca por margem apertada na Pensilvânia, onde os trabalhadores dessa indústria são amplamente sensíveis ao tema, talvez essa declaração tenha custado a eleição.
Para entender melhor essas flutuações teríamos que fazer algo pouco praticado durante a campanha, uma avaliação retrospectiva fundada em boa informação acerca das políticas públicas implementadas por democratas e republicanos, em especial nos governos Obama e Trump. O apoio ao republicano não é apenas resultado da mágica da comunicação, deriva também da tibieza das políticas democratas e dos acertos de Trump. Reforma do sistema criminal, política externa menos intervencionista, foco na economia e na criação de empregos, com bons resultados, ao menos até a pandemia.
A decisão das eleições primárias do Partido Democrata em nomear um candidato “centrista” para concorrer nessas eleições – ao contrário de uma opção mais radical do populismo de esquerda como Bernie Sanders – foi importante para unificar o partido (em especial o seu establishment) e angariar o apoio do eleitorado “cansado” da agitação radicalizada. Por outro lado, a figura moderada de Biden não se mostrou capaz de promover um grau de engajamento e mobilização do público à altura do seu adversário agitador, nem está claro ainda se seu discurso de união nacional conseguiu atrair eleitores de Trump. Essa diferença é importante em um contexto onde o voto não é obrigatório e, no caso particular das eleições deste ano, ainda mais desencorajado pela pandemia do coronavírus.
Mesmo assim, a moderação pode ter sido eficaz para para derrotar a agitação, mas não para desativá-la. E ainda não podemos assegurar como os EUA sairá dessas eleições, pois Trump continua sendo quem é. Há ainda o risco de o agitador perder e não aceitar sair, e as consequências disso poderão ser catastróficas. E mesmo que ele saia, o trumpismo – o negacionismo, o anti-esquerdismo, o desejo de retorno a um passado glorioso e mítico – ainda permanecerá em parcelas consideráveis da população.
O que tudo isso ensina para o campo democrático brasileiro, que tem de enfrentar a sua própria versão de agitador atualista? Desde o início da votação nos EUA, Bolsonaro disparou freneticamente uma série de tweets ressoando as alegações infundadas de seu ídolo sobre as eleições serem “fraudadas” a favor dos democratas, o que seria um risco para a “liberdade” e para o Brasil. Afinal, nosso agitador atualista tupiniquim sabe bem que a permanência de Trump é uma força de sustentação fundamental para ele. As relações entre EUA e Brasil deixaram de ser uma relação entre Estados, mas sim uma relação de “amizade” (leia-se emulação e, do nosso ponto de vista, subserviência) entre os chefes de turno da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
Assim, e seguindo o estilo atualista de fazer política, Bolsonaro ressoa as afirmações sem fundamento de Trump, sem se preocupar com a veracidade e desprezando o princípio diplomático básico da impessoalidade. Mas Bolsonaro também tem seu próprio código “alternativo”, cujo enfrentamento é a tarefa prioritária das forças democráticas no Brasil, que deverá avaliar e tomar suas próprias escolhas para vencer o confronto. Assim como o trumpismo, nos Estados Unidos, o bolsonarismo é um fenômeno que não necessariamente depende da permanência de Bolsonaro no poder: ele mobiliza parcelas consideráveis da população através de seus discursos, que defendem o conservadorismo nos costumes, o liberalismo na economia, a luta contra “o sistema”, a religião e a admiração pelo militarismo.
Será que a aposta moderada e centrista será suficiente para derrotar o bolsonarismo aqui? Mesmo que por pouco? Ou, em nosso contexto particular, faz-se necessário redobrar a aposta na radicalização pela via da esquerda? Mesmo que a vitória de Biden seja confirmada, ainda não está claro qual das duas vias parece a mais indicada para o Brasil. Enfim, tudo indica um destino trágico da democracia liberal de “pequenas maiorias” em tempos de agitação atualista. Sem negar a nossa atual realidade, cabe a nós pensar e imaginar alternativas, por mais difícil que pareça ser em nosso atual nevoeiro e impregnados por uma sensação de asfixia. Além disso, a lentidão com que a apuração avança em alguns estados decisivos promete nos deixar hipnotizados pelos mapas eleitorais na expectativa da atualização decisiva.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real com Mayra Marques. Ambos são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana (MG). Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Walderez Ramalho é doutorando em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e ao grupo Proprietas pelo apoio e interlocução nesse projeto.
[2] PEREIRA, Mateus; MARQUES, Mayra; ARAUJO, Valdei. Almanaque da COVID-19: 150 dias para não esquecer, ou a história do encontro entre um presidente fake e um vírus real. Vitória: Editora Milfontes, 2020.
[3] Usamos aqui um neologismo para dar conta da diferença que em inglês é mais clara entre a produção deliberada de notícias falsas (disinformation) e sua disseminação involuntária (misinformation).
[5] EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algorítimos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições. São Paulo: Vestígio, 2019.
A reportagem do Intercept Brasil sobre a denúncia de estupro da influencer Mariana Ferrer tornou-se viral nas redes. Sob o título JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM, o texto da repórter Schirlei Alves serviu de base para milhares e milhares de postagens sobre a excrescência jurídica que teria embasado a absolvição do empresário André de Camargo Aranha. Até as 15h30 de ontem (4/11), o Google devolvia 781.000 resultados, quando se procurava pela expressão “estupro culposo”. Memes, charges, textões e textinhos foram produzidos em escala industrial para provar que um estuprador havia conseguido sentença absolutória graças a uma invencionice jurídica obrada pela Justiça, com vistas a proteger um macho branco, amigo de poderosos e, ele mesmo, “filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já representou a rede Globo em processos judiciais”, segundo a reportagem do Intercept.
Lida toda a sentença de 51 páginas do juiz do caso, Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, entretanto, constata-se que, em nenhum momento da sentença é dito que houve “estupro culposo” contra a jovem. Ao contrário, é dito que não existe essa tipificação e que o estupro é necessariamente doloso. Portanto, está errada a formulação do título do Intercept Brasil.
Está tão errada que o próprio site The Intercept Brasil foi obrigado, às 21h54, nada menos do que 19 horas e 50 minutos depois de publicada a história, a fazer uma “atualização” que diz assim:
“A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artíficio é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.”
O Intercept faz como a música de Tom Zé: “Eu tô te explicando pra te confundir. Eu tô te confundindo pra te esclarecer.” Uma explicação que confunde. E, sim, o Intercept disse que a sentença inédita baseou-se no “estupro culposo”.
É só ler o título indigitado de novo:
JULGAMENTO DE INFLUENCER MARIANA FERRER TERMINA COM SENTENÇA INÉDITA DE ‘ESTUPRO CULPOSO’ E ADVOGADO HUMILHANDO JOVEM
Com as redes ajudando a espalhar a bobagem, todo mundo louco atrás de cliques, de “bombar”, da lacração, poucos deram-se ao trabalho de ler a sentença que, sim, absolveu o réu André de Camargo Aranha por “falta de provas”.
Uma pena.
Se, em vez da lacração, tivessem mirado no fato em si da absolvição do crime de estupro “por falta de provas”, talvez tivessem ajudado muito mais. Sabe-se que a cada 8 minutos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil. Mas a maior parte desses crimes jamais será nem sequer investigada pela falta de indícios e elementos probatórios, já que ocorrem escondidos e, preferencialmente, sem testemunhas.
Mariana Ferrer, diz a sentença, não conseguiu provar a acusação que fez contra André de Camargo Aranha. Será? Está na sentença que o exame toxicológico não apontou o consumo de substâncias estupefacientes, como seria de se esperar se ela tivesse ingerido involuntariamente alguma droga do tipo “Boa Noite Cinderela”. A maioria das testemunhas ouvidas, várias mulheres inclusive, disse que a vítima não cambaleava e que não parecia dopada. As câmeras internas do Café de la Musique, onde teria ocorrido o estupro, mostram Mariana Ferrer subindo para um camarote e descendo, seis minutos depois, sem necessidade de ajuda (e de salto!!!!, como faz questão de ressaltar a sentença). Teria transcorrido nesses seis minutos o crime de estupro, de que Mariana Ferrer não tem memória.
Mas Mariana Ferrer diz ter inúmeras provas irrefutáveis do estupro e que nem sequer foram levadas em consideração pelo julgador.
E, no entanto, todas as mulheres sabem da dificuldade de “provar” a violência sexual, quando ela ocorre entre quatro paredes, sem testemunhas. Mariana Ferrer não seria exceção. Nos trechos da vídeo-conferência que foi o julgamento, assombra a solidão da menina que denuncia, vítima de outros homens violentos, que a acusam de ser (ela sim), um monstro querendo prejudicar a reputação de um “pobre milionário”.
Como sempre acontece, a vítima deixa de ser vítima para se transformar no monstro sensual e ardiloso que precisa ser contido. A qualquer custo.
A verdade é que Mariana Ferrer estava sozinha.
Desde o dia em que alega ter sido estuprada (15/dezembro/2018), Mariana Ferrer tem pedido ajuda pelas redes sociais e tem narrado todo o sofrimento e a depressão que a assolam em decorrência do fato.
Quem foi ajudá-la a reunir provas? Quem foi ajudá-la a colher testemunhos que aumentassem a credibilidade de sua acusação? Quem foi ao Café de la Musique, onde ocorreram os fatos julgados, procurar indícios de que ali funcionaria um “abatedouro” de meninas destinadas ao gozo masturbatório de machos alfa? Quem?
Ou achamos razoável condenar alguém sem elementos probatórios que apoiem a denúncia?
Não, não é razoável.
Apenas a voz da vítima não pode embasar uma condenação. E quem defende isso precisa saber que abdicar de provas é apenas a reedição do velho punitivismo, é vingança. Não é Justiça. Pior, resultará na condenação sem provas dos mesmos criminalizados de sempre: os pretos, pobres e periféricos.
A única forma de evitar a perpetuação desse ciclo perverso requer de nós nós, feministas, que encaremos o estupro, cada estupro, como um problema nosso!
Temos de ajudar as vítimas a robustecer as provas da violência que sofreram. Temos de afrontar a Justiça machista, exigindo a presença de mulheres no julgamento. Tem de ser um trabalho nosso enfrentar a misoginia cuspida e escarrada de gente como Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, que humilhou e ofendeu Mariana Ferrer enquanto exibia fotos dela que nada tinham a ver com o processo! Que nenhuma mulher mais tenha de enfrentar um julgamento de estupro apenas diante de homens, na solidão absoluta, como acontecia com as antigas feiticeiras.
Temos de incentivar a solidariedade entre nós, mulheres, para que acolhamos as vítimas, em vez de fingir que se trata de um problema só delas. Não há mulher ou menina que não tenha sido atacada ao menos uma vez em sua vida pela violência sexual. E nós sabemos disso em nossos próprios corpos!
É o pai, é o tio, é o avô, é o tarado que mostra o pinto para a adolescente, é o abusador que se acha no direito de ejacular na mulher dentro do trem lotado…
Temos de organizar o “Socorro Feminista”, para apoiar as mulheres que decidem denunciar a violência sexual.
Os tribunais brasileiros são câmaras de tortura contra mulheres, negros, indígenas e pobres em geral. As cenas de humilhação de Mariana Ferrer não são, infelizmente, exceções. São a regra.
É preciso atuar sobre esse front.
Então, precisamos entender que não se trata de um problema privado de Mariana Ferrer o desenlace de sua denúncia. É de todas nós!
Lembro da França, em 1971, quando uma mulher foi presa e julgada pelo crime de aborto, na época punível com a pena de morte pela guilhotina!
Em vez de “solidariedades”, textões de repúdio, e essas lacrações inúteis, 343 mulheres, entre elas as atrizes Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, assinaram o manifesto escrito por Simone de Beauvoir, e assumindo que haviam feito, elas também, um aborto. A força desse texto e a coragem das signatárias empolgaram intelectuais como Françoise Sagan e Annie Leclerc, jornalistas conhecidas, de muitas feministas, a começar por Antoinette Fouque, da advogada Gisèle Halimi ou ainda da deputada socialista Yvette Roudy. Todas declararam ter realizado um aborto, como forma de quebrar o tabu de uma injustiça social.
A Justiça no Brasil é machista, é racista e é classista. Só incidindo juntas sobre ela será possível mudar esse regramento que sempre condena a vítima e libera o agressor.
Mariana Ferrer deve recorrer da sentença em primeira instância. Agora, é organizar a luta para mudar o rumo da História. Quem se dispõe?
Maria da Glória Antunes Guimarães
05/06/20 at 23:47
Até hoje parece um pesadelo.
Conheçi o Cao criança, de uma família simples, Excelente pais, muito amorosos, sempre presente na vida dos filhos.
Sinto saudades da nossa infância em Tubarão SC.
Paula Duarte da Silva
07/06/20 at 14:10
Obrigada por divulgarem esta informação. Só enfatizando que a triste morte de Chancellier ocorreu no Shopping Beiramar.