Moradores e movimentos sociais de Santarém, no Pará, alertam para mais uma tentativa de modificar Plano Diretor da cidade, para tentar implantar um projeto de zona portuária na região do Lago do Maicá uma área de proteção ambiental e de terras quilombolas. Recentemente empreendimentos imobiliários como o na região do Buriti foram impedidos depois de muita luta e intervenção do Ministério Público. Santarém fica no encontro das águas do Rio Tapajós e do Rio Amazonas. Veja no artigo de Caetano Scannavino com estão sendo feitas as manobras e quais os riscos sócio ambientais e as discussões pertinentes.
PORTO EM MAICÁ? É chamar um Buriti II. De novo…
Independente da necessidade de uma nova zona portuária, por envolver área de proteção ambiental e terras quilombolas, é pedir pra judicializar. Indo por aí, Santarém não terá um porto tão cedo.
Num movimento relâmpago, já sob suspeita do Ministério Público se os devidos ritos foram respeitados, a Câmara dos Vereadores de Santarém alterou o documento final de revisão do Plano Diretor Participativo (PDP) do município, construído, debatido e aprovado pela sociedade no final do ano passado.
A insistência é para trazer de volta a proposta derrotada em plenária para viabilizar grandes empreendimentos portuários na região do Lago do Maicá, um santuário ecológico, berçário natural de diversas espécies da fauna aquática e aves, polo de visitação turística e fonte de renda para mais de 1.500 famílias — a pesca realizada ali contribui com 30% do abastecimento de mercado de peixe na cidade (VAZ, 2016).
Lago do Maicá | Foto: Nilson Vieira
Independente dos que são ou não a favor, forçar a barra pra que seja no Maicá é dar um tiro no pé. Por envolver áreas de proteção ambiental e terras quilombolas, a judicialização será inevitável. E por aí Santarém não terá um porto tão cedo — isso numa cidade já traumatizada com o imbróglio do Loteamento Buriti. Não, não falamos aqui de ideologia, é sobre lei mesmo.
Difícil aceitar a justificativa do Prefeito Nélio Aguiar para sancionar a proposta, uma admissão de incapacidade do Poder Público ao fugir da responsabilidade de zelar pelo próprio município: “É uma área que se não for destinada pelo plano diretor como área portuária, e a gente não der nenhuma destinação, naturalmente ela vai acabar virando uma nova ocupação. Se é para ocupar de forma desordenada, melhor regulamentar como área portuária, até pelas características, como calado”.
Ao contrário do que vem sendo alardeado pelo Prefeito e defensores da idéia, um porto no Maicá jamais foi autorizado, nem no primeiro Plano Diretor Participativo (PDP) de Santarém, em 2006. Já em 2017, durante sua primeira revisão decenal, por mais que houvesse pressões a favor, a maioria votou contra. É fato, público e notório.
I Conferência Municipal de Revisão do Plano Diretor (nov/17) | Foto: Daniel Gutierrez
Alterar essa decisão é passar por cima de meses de discussões em grupos de trabalho e audiências com representantes dos mais diferentes setores — empresariais, acadêmicos, entes públicos e organizações sociais.
O Estatuto da Cidade é claro quando rege que os Planos Diretores dos municípios devem ser construídos de forma participativa. A obrigação da Câmara dos Vereadores ao recebê-lo é aceitar o que foi decidido, chancelando o documento aprovado pela sociedade. Alterações se justificam somente para correção de inconsistências jurídicas ou de mérito, como inconstitucionalidades ou propostas que confundem competências de Plano de Governo com Plano Diretor.
Lago do Maicá | Foto: Nilson Vieira
Cabe lembrar que o documento final aprovado de revisão do PDP de Santarém reconhece sim a necessidade de se ampliar a infraestrutura portuária do Município. Ele mantém a ideia das três zonas, a começar pelas duas já operantes: a (I), da orla principal da cidade, “destinada ao turismo, projetos históricos, arqueologicos, pesca, embarcações de pequeno e médio porte, com trânsito intramunicipal”; e a (II), da faixa que vai da Av. Borges Leal até o limite da Área de Proteção Ambiental do Maicá, com foco maior no “transporte intermunicipal e interestadual de embarcações de carga e passageiros”.
A terceira zona ainda está para ser implantada, destinada a “empreendimentos de grande porte e maior impacto ambiental”. No Plano de 2006 também constava uma nova área portuária, na região do Ituqui. Dava-se inclusive um prazo de 24 meses para estudos, definições e detalhamentos. Só que de lá pra cá, nossas autoridades pouco fizeram para viabilizá-la, nem dentro nem fora do prazo. E quando fizeram, foi pelo caminho mais torto, através das insistentes movimentações em torno do Maicá.
Com apenas o terminal da Cargill na orla principal, é compreensível que os sojicultores da região pressionem por mais um porto pra que deixem de ser reféns de uma única empresa — há ainda o aumento da demanda, o asfaltamento da BR 163…
Foi sob esse entendimento que o Plano revisado de 2017 encaminhou o mapa do caminho para implantação da Zona III. A nova área portuária seria definida após estudo elaborado por grupo técnico multidisciplinar, formado por membros da sociedade civil e do poder público. Ao contrário dos 2 anos de prazo do Plano anterior, prevê 12 meses.
Se a Prefeitura tivesse sido mais ágil, se antecipado e instalado o Grupo, quem sabe já teríamos uma solução acordada e definitiva. Se alguns dizem Curuá-Una, outros Ituqui, o desafio é buscar as alternativas menos impactantes e mais inteligentes, no sentido de se implementar a infraestrutura necessária de forma planejada, para que não tenha depois que ser refeito num caminho sem volta.
Sendo de preferência numa região periférica, seguiria a tendência mundial de deslocar as zonas portuárias para fora dos centros urbanos, evitando o caos, a violência, o trânsito… Nada mal que se aproveitasse a deixa e pensasse em incentivos pra mudar também o Terminal da Cargill para lá, revitalizando a área ocupada pelo porto atual, transformando-a em espaço público nobre para usufruto de todos santarenos, a exemplo do que vem acontecendo em outras cidades.
Distanciar e ordenar as zonas dos grandes empreendimentos econômicos é fundamental, ainda mais para não comprometer uma região com potencial turístico gigantesco, geograficamente privilegiada, pronta para alavancar serviços de altíssimo valor agregado, valorizar as vocações existentes, qualificar a mão de obra local, atrair investimentos e tecnologias de ponta, bioconstruções, saneamento, energias renováveis…
Lago do Maicá | Foto: Nilson Vieira
Há espaço de crescimento para todos, grandes, médios e pequenos, sustentável ao longo do tempo, diversificado, sem necessariamente ficar lastreado apenas ao agronegócio — que por sinal não empregou tanto como o prometido. Continuamos com nossas 9 universidades formando gente que está pegando o avião junto com o diploma.
Se no Tapajós o tal progresso demora mais para chegar, que se comece pelo futuro, pelo que se tem de melhor, mais updated, pelos acertos, e não pela repetição dos erros passados lá fora.
É pequeno pensar em portos como fins, em ganhos a partir apenas dos que passam, seja pra entregar, seja pra levar mercadoria. Tão pequeno quanto é responder a isso aceitando qualquer oferta para instalação de indústrias pesadas e poluentes que outros lugares agora arrependidos querem se livrar. Por outro lado, a exemplo do EcoParque em Benevides/PA, não é proibitivo vislumbrar o polo santareno como um “Vale do Tapajós”, uma zona portuária articulada a uma planta industrial de baixo carbono, focada em inovação, pesquisa, tecnologia, biotecnologia, processamento de produtos florestais… Poderia inclusive contemplar zonas intermunicipais nos arredores da BR163, contribuindo como alternativa econômica que vizinhos como Belterra tanto procuram. E não serão nos portos de soja ou combustíveis em paraísos turísticos como Cajutuba que vão achar.
O que está em jogo não é o desenvolvimento, mas qual caminho seguir, se para muitos ou para poucos, se pra frente ou pra trás, se para passar ou para sempre…
Lago do Maicá | Foto: Nilson Vieira
Caetano Scannavino é Empreendedor social, mora na Amazonia, coordenador do Projeto Saúde e Alegria
Picado por cobra, Alberto Castro Bispo só foi socorrido 6 horas após o comunicado à Secretaria Especial de Assistência Indígena de Santarém-PA
Reportagem originalmente publicada por Amazônia Real
Por: Tainá Aragão
Fotos: Leonardo Milano
Corpo de Alberto é recebido por parentes – Foto: Leonardo Milano / Amazônia Real
Santarém (PA) – “Perdemos mais um Kumaruara por negligência do desgoverno”. A frase em tom de desabafo faz parte da carta-manifesto publicada em 4 de outubro, dia em que morreu o líder Alberto Castro Bispo, 47 anos. O indígena foi picado por uma serpente surucucu e foi a óbito durante a travessia fluvial pelo rio Tapajós por falta do soro antiofídico e assistência médica. A morte causou revolta ao povo Kumaruara, que há anos reivindica acesso à saúde na região da Reserva Extrativista Tapajós- Arapiuns, no Pará, inclusive na pandemia do novo coronavírus.
Por estar no meio da floresta e pelo alto grau de envenenamento, Alberto só conseguiu chegar na aldeia Mapirizinho, na Resex Tapajós-Arapiuns, às 11 horas do mesmo dia, sendo duas horas após ter sido picado. Naquele momento, a comunidade se mobilizou para tentar a sua remoção por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), ambas com sede em Santarém. Mas a lancha da Sesai levou cerca de 6 horas para chegar e Alberto não resistiu ao translado, vindo a óbito nos braços de sua companheira. Eles estavam a caminho de Alter do Chão, no Baixo Tapajós, onde uma ambulância terrestre ainda o levaria para Santarém.
“Ele me olhava e dizia: ‘Minha velha, eu não vou resistir, não’. Se fossem buscar, eu tenho certeza que ele ia escapar. A ambulancha chegou e quando deu umas 18h15 ele deu o ataque no meio do caminho. Aí botei a mão no nariz dele e estava seco, eu estava ali do lado dele, sozinha, e falei para o motorista: ‘Ele já se foi’”, lembra Renita Melo, viúva de Alberto e mãe de seus seis filhos. “Tenha fé em Deus”, ouviu em resposta. Ela chegou a pedir soro aos socorristas, mas só ouviu: “Não temos. [Então] viemos na ‘tora’”, referindo-se a uma expressão local que quer dizer “sem resitar”.
Após o falecimento, parentes e parte da comunidade, em luto, fizeram uma manifestação nodia 5 emfrente a Casa de Saúde Indígena (Casai) do município de Santarém. A líder indígena Luana Kumaruara explica que se houvesse mais infraestrutura, mortes poderiam ter sido evitadas. “Estamos em um período de pandemia, além de sofrermos com os impactos dos grileiros, ‘sojeiros’ e madeireiros, também temos que lidar com esse descaso com a saúde, porque dentro da Amazônia não termos esse soro pra picada de cobra. É absurdo, e isso tem que ser prioridade. Já perdemos dois Kumaruara no último mês [setembro] e não dá pra fazer vistas grossas por tudo que estamos passamos”, enfatiza.
As mortes que Luana se refere são a dois idosos. Eles morreram em consequências de problemas cardíacos. Segundo ela, a comunidade Kumaruara também enfrentou problemas na liberação e remoção dos corpos.
A pandemia de Covid-19, que também não dá tréguas, já registrou 1.414 casos confirmados entre os indígenas e 17 mortes de Covid-19 na Resex Tapajós-Arapiuns. Os dados são do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Guamá Tocantins, ligado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Não há registro de mortes pelo vírus entre os Kumaruara.
Na Resex Tapajós-Arapiuns, além dos Kumuruara, vivem também as etnias Tupinambá, Munduruku, Apiaká, Borari, Maytapu, Cara Preta, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha e comunidades ribeirinhas tradicionais. A Resex fica na região conhecida como Baixo Tapajós, no ponto de encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas. Os Tupinambá são os mais atingidos pela pandemia da Covid-19.
Uma lancha para atender a todos
Velório do líder indígena Alberto Kumaruara (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
O corpo de Alberto Castro Bispo foi levado à comunidade para o enterro ainda no dia 5, após 12 horas. Houve uma burocracia para liberação do corpo por parte do Instituto Médico Legal (IML), pois Alberto faleceu em trânsito e não havia um médico na ambulancha para atestar o óbito. Um médico de Santarém teve que fazer a perícia. O velório aconteceu na comunidade Mapirizinho, por volta das 15h, e o enterro entre 17h e 18h.
A Sesai justificou à comunidade que não teria disponibilidade de horário de voo para fazer remoção de helicóptero e tampouco contava com o serviço de um marinheiro para conduzir a ambulancha. O transporte fluvial foi adquirido em julho pela Sesai, mas está parado. “Estamos há meses esperando que a Sesai faça a contratação dos barqueiros. O Samu respondia que a ambulancha da Secretaria Municipal de Saúde estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível buscá-lo às 17 horas. Ou seja, apenas umaambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios”, diz a carta-manifesto dos Kumaruara.
Em nota à Amazônia Real, a Sesai, órgão subordinado ao Ministério da Saúde, por meio do Dsei Guamá Tocantins, diz “lamentar” o falecimento do indígena e se justifica: “Há seis Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (Emsi) na região, atuando de forma volante, levando atendimento de saúde para as aldeias”. Mas admite que faltam profissionais contratados. “O Dsei adquiriu oito novas embarcações fluviais para atendimento da região e os barcos já estão operando no transporte de urgência e emergência de pacientes e equipes de saúde. Os processos de contratação de barqueiros e horas-vôo encontram-se em tramitação, em data anterior ao acidente”, diz a nota.
Segundo Jean Cunha, coordenador do Samu em Santarém, há duas ambulanchas do município, que atuam na região ribeirinha da bacia de três grandes rios: Amazonas, Tapajós e Arapiuns. Apesar da equipe reduzida e da falta de infraestrutura adequada, o Samu alega que se tenta dar suporte às comunidades indígenas. “A Sesai está há um tempo muito grande esperando pra fazer contratação da equipe e isso sobrecarrega o Samu, pois a gente dá suporte para todas as comunidades vizinhas e também às indígenas. Eles não podem colocar as demandas só para o Samu; eles têm hora de helicóptero e uma ambulancha equipada, se a gente tivesse esse material faríamos muitas remoções. Ter o material e não saber usar, fica difícil”, enfatiza o coordenador.
Na Resex, são 75 comunidades, entre indígenas e não-indígenas, e apenas 10 Unidades de Saúde. As mais próximas da comunidade indígena Mapirizinho são Suruacá e Parauá, a cerca de 15 quilômetros de distância. Mas nenhuma das unidades possui o soro antiofídico, específico para conter o veneno da serpente, como explica o agente de saúde do posto de Suruacá, Djalma Lima.
“Não existe soro nem para picada de cobra, nem de aranha, nem de lacraia, porque não tem energia elétrica no posto, e não tem como armazenar. Além disso, para se ter esse soro dentro das comunidades, precisa de um médico, de uma infraestrutura adequada, com geladeira e não temos”. Djalma enviou, por intermédio de seu filho, um punhado de medicina natural para tentar amenizar a dor de Alberto. “Mandei pra ele uxi [fruto nativo] para conter o veneno, mas já era tarde”, diz o agente de saúde.
Para Roselino Kumaruara, cacique da comunidade Mapirizinho e genro do falecido, o descaso com a população tradicional, indígenas e pescadores, que vivem no outro lado do rio é constante. “Essa situação é ruim. Perdemos um parente e não podemos mais trazer ele de volta, já houve outros casos como esse. Quando a gente liga, não tem. A gente fica triste, mas fica com raiva também. A gente tem muitas barreiras pela frente”, protesta o cacique.
Luta pelo acesso à saúde
Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
O caso de Alberto Castro Bispo não é isolado. Desde 2015 os povos indígenas do Baixo-Tapajós, por meio do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), reivindicam acesso à saúde indígena. Em 2016, houve a ocupação do Polo Base da Sesai, em Santarém. Após a ocupação, as comunidades indígenas obtiveram acesso ao direito da saúde por meio de uma decisão judicial a partir de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF).
Mesmo com o reconhecimento, a principal luta dos indígenas nos municípios de Aveiro, Santarém e Belterra continua sendo a mesma de cinco anos atrás: a criação de um novo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) para a região. Atualmente, Santarém está incluído no Dsei Guamá-Tocantins, com sede em Belém, a 1.375,8 quilômetros do município. Ou seja, cerca de 22 horas por transporte terrestre, o que dificulta ainda mais o acesso aos atendimentos.
“Não dá pra gente ficar vinculado ao Dsei-Guamá-Tocantins que está em Belém, o que dificulta o diálogo. Por isso, estamos entrando com um documento no MPF para pressionar mais uma vez a criação do Distrito”, explica a líder Luana Kumaruara.
O Dsei Guamá Tocantins atende a uma população de 17.198 indígenas de 42 etnias, que vivem em 186 aldeias. O órgão conta com 31 Unidades Básicas de Saúde e oito polos bases, além de cinco Casas de Saúde Indígena (Casais).
Cortes na Saúde Indígena
Funeral do líder indígena Alberto Kumaruara (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
A saúde indígena funciona por meio de um Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), coordenado pela Sesai. Articulado com o SUS, descentralizado, e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, o SasiSUS é organizado em 34 Dseis, distribuídos em todo o território nacional. Os distritos são responsáveis por prestar atenção primária em saúde aos povos que moram nas Terras Indígenas. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas.
Conforme o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo Inesc, Instituto especializado em orçamento público e Direitos Humanos no Brasil, a política de saúde indígena foi um capítulo significativo na ofensiva aos direitos destes povos.
“Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhões contra R$ 1,76 bilhões em 2018, cerca de R$ 280 milhões a menos. Isto certamente compromete o atendimento deste grupo da população, que tem diversos indicadores de saúde piores que a média brasileira, como suicídio, desnutrição e mortalidade infantil e algumas doenças infecciosas, como a tuberculose”, informa o relatório.
O relatório do Inesc aponta, ainda, que os cortes orçamentários demonstram que há uma violação de direitos direta sobre essas populações: “As medidas legislativas e executivas de iniciativa do governo demonstram que está em curso uma política de destruição intencional e sistemática dos modos de vida e da cultura dos povos indígenas.”
Neste ano atípico, em meio à pandemia, as vulnerabilidades e os abismos sociais se mostram ainda mais profundos. Com o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, por meio da PEC 241– também chamada de PEC 55, no Senado – e implementada por Michel Temer (2016-2019),a tendência é que as comunidades mais vulneráveis, incluindo os povos tradicionais, populações amazônidas, ribeirinhas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas e agricultores, continuem sendo impactadas pelos déficits na saúde e na educação.
“Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. Vidas Indígenas Importam!”, afirma a última linha da carta-manifesto do povo Kumaruara.
A Amazônia Real entrou em contato com a Secretária de Saúde do Pará para buscar informações sobre óbitos por animais peçonhentos na região, mas até o dia 13 não obteve resposta.
Sepultamento do corpo do líder indígena Alberto Kumaruara morto por picada de cobra (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
Em carta, povo Kumaruara denuncia descaso do poder público com a saúde indígena
No começo da noite do último domingo (4), Alberto Castro Bispo, indígena do povo Kumaruara, faleceu, vítima de uma picada de cobra, e do descaso do poder público. Alberto foi picado pela manhã, mas só conseguiu ser atendido no final da tarde. A SESAI (Secretaria de Saúde Indígena) alegou que não tinha horas de voo disponíveis de helicóptero para fazer o atendimento, nem marinheiro para pilotar a lancha até a aldeia.
Neste momento, a esposa de Alberto está em Santarém, tentando liberar a liberação do corpo de seu companheiro; também encontra dificuldade para conseguir, com a SESAI, transporte até a aldeia. Parentes de Alberto estão em frente à SESAI, protestando contra o descaso na saúde indígena.
A reportagem dos Jornalistas Livres está acompanhando o caso. Segue a carta do povo Kumaruara.
CARTA/MANIFESTO DE REVOLTA DO POVO KUMARUARA
É com pesar que o povo Kumaruara comunica que está em LUTO.
Uma perda que poderia ter sido evitada, os povos da floresta continuam padecendo e morrendo pela falta de assistência médica dentro da Amazônia, sem posto de saúde, rádio transmissão e ambulancha para socorro.
Sr. Alberto Castro Bispo, pertencente do povo Kumaruara, aldeia Mapirizinho nas margens do rio Tapajós foi picado por uma cobra surucucu, neste domingo (04/10/20) por volta de 9 horas da manhã no meio da floresta, quando conseguiu chegar na aldeia se arrastando pedindo socorro era 11 horas, a hora em que a aldeia começou se mobilizar, entrando em contato com órgão competente SESAI e SAMU para fazerem remoção do paciente.
No primeiro momento a SESAI justificou que não tem “hora vôo” para fazer remoção de helicóptero e nem marinheiro para lanchas e ambulânchas da SESAI, transporte que chegou no mês de julho em Santarém. Estamos há meses esperando que a SESAI faça contratação dos barqueiros.
O SAMU respondia que a ambulancha da SEMSA estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível busca-lo ás 17 horas. Ou seja, apenas 1 ambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios.
Os postos de saúde até as comunidades mais próximas (Suruacá e Parauá), tem a distância de 15 km, mas de nada adiantava levar porque não tem soro antiofídico nas UBS dentro da Amazônia. Isso é inadmissível!
Estamos tristes e revoltados, já passamos por tantas humilhações, foi com muita luta que conseguimos o helicóptero para DSEI GUATOC fazer remoção dos indígenas do Baixo Tapajós. E agora com o desmonte desse governo genocida/etnocida que continua matando os povos indígenas, corta tudo da noite para o dia. Isso tudo acontecendo, em meio uma crise sanitária mundial, a pandemia da COVID-19, ainda temos que sobreviver as invasões nos territórios de madeireiros, garimpeiros, sojeiros, etc.
O parente chegou às 19h em Alter do Chão, desacordado, tarde demais. Perdemos mais um Kumaruara por negligencia do desgoverno, que trata sem importância a vida de quem mora do outro lado do rio. Esse é um caso relatado, de muitos que acontecem na Amazônia com indígenas, quilombolas e ribeirinhos, continuamos sem acesso a saúde pública de qualidade dentro da nossa realidade.
Já estamos há 4 anos vinculados ao DSEI GUATOC (sede em Belém), sentimos muita dificuldade em atuar como controle social. As equipes que entram em área de forma ambulantes, e é um trabalho exaustivo, que depende até de força corporal para carregar malas, isopor com gelo, rancho e aparelho respiratório, que agora nesse período de verão aumenta ainda mais as dificuldades de deslocamento de uma aldeia para outra.
Por isso, reiteramos novamente ao Poder Legislativo a criação de um próprio DSEI para região do Baixo Tapajós. Pedimos ao Ministério Público Federal e Estadual, que fiscalize as prestações de conta do dinheiro público direcionados as políticas públicas de saúde, neste município.
Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. VIDAS INDÍGENAS IMPORTAM!!!
Com mais de 300 anos de tradição e comemorado no mês de setembro, o Festival Çairé é uma grande manifestação folclórico-religiosa, de encontro entre a cultura indígena amazônica e a religião católica, introduzida com a chegada dos jesuítas. De origem indígena, a festa foi sendo modificada pelos portugueses ao longo dos anos e, hoje, todos os ritos e ladainhas são cantados em latim. Em 2005, a prefeitura de Santarém determinou que a palavra Çairé passasse a ser escrita com “s”, para se adequar à língua dos colonizadores.
Devido à Covid-19, o Çairé desde ano acontece de forma reduzida, para evitar aglomerações. Na última quinta-feira (10), o festival iniciou sua programação, com a Missa em Ação de Graça, seguida da Procissão Fluvial e da Carreata pelas ruas de Alter do Chão. Com o “novo normal”, trazido pela pandemia, as máscaras de contenção passaram a fazer parte do figurino dos participantes.
A programação do Çairé de 2020 segue no dia 17 e se encerra no dia 19/09, com distribuição de Tarubá – bebida típica indígena – e a apresentação do grupo Espanta Cão. Confira a programação completa do Çairé deste ano, e as fotografias do primeiro dia do festival.