Reformar a previdência pelas despesas ou pelas receitas?

Imagem por SERJUSMIG

 

Antônio Rosevaldo F. da Silva
Economista, professor da UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana e
da Faculdade Anísio Teixeira.
Membro da ABED – Associação Brasileira de Economistas Pela Democracia

 

Para um doente com anemia profunda o que ele menos precisa é que se retire
mais sangue sem reposição e é exatamente é isso o que ocorre com a
previdência. Sofrendo de uma sangria desatada, os profissionais que deveriam
cuidar de sua saúde vivem alardeando que a anemia está profunda e que se
não parar de tomar transfusão vai secar o sangue dos doadores e o paciente
pode vir a morrer. Entretanto, silenciam sobre o fato de que retiram mais
sangue do que colocam no paciente.

Este artigo tem a pretensão de abordar as perdas de receitas da Previdência
Social que se revestem de transferência da grana dos mais pobres para os
mais ricos. Incrível como o pulso ainda pulsa.

Nos últimos dias o país se depara com uma dúvida cruel: Aceitar ou não aceitar
a reforma da previdência como preconizada na PEC 06/2019? Os jornais, as
redes de televisão, os portais da internet da mídia tradicional são unânimes em
afirmar que precisamos fazer uma reforma, pois os gastos com a nossa
previdência estão a cada dia se tornando insustentáveis. Pronto, pense numa
palavra mágica: insustentáveis.

Começo o dia pensando que realmente precisamos reformar, então releio toda
PEC supracitada. E o que vejo no corpo do texto? Vejo dor, vejo muita dor; vejo
gente humilde (que vontade de chorar) buscando dinheiro para comprar o
remédio; vejo filas e mais filas em hospitais sucateados; vejo suicídios; vejo
dor. Esse é o futuro que percebo se for aprovada esta reforma. Aí a
consciência bate. E os gastos insustentáveis? Preciso dialogar.

A previdência tem como gastos as aposentadorias e o auxílio doença entre
outros auxílios, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e é
justamente isso que o governo denomina de insustentável. Manter a vida se
torna insustentável (?); o Brasil vai quebrar se não aprovar a reforma? Com
base nestas mentiras que em todo o texto da PEC se busca inibir (ou até
mesmo postergar) as despesas, fazendo garantir que a morte chegará primeiro
que a aposentadoria, os homens do governo e a mídia têm dito que isso servirá
para acabar com os privilégios. Outra palavra chave: privilégios.

O primeiro privilégio a ser combatido, segundo os arautos da PEC 06/19, é
aquele que permite que pobre viva muito, afinal de contas pobre e velho só
gera despesas para o Estado, a exemplo de saúde pública e aposentadoria.
Ainda por cima o idoso pobre é isento de imposto de renda, assim pensam os
burocratas que imaginam que serão ricos na sua velhice. Como a PEC
pretende resolver isto?

Atualmente, existe uma geração de jovens que não estão contribuindo para a
previdência; praticamente metade da força de trabalho ou está desempregada
ou trabalha na informalidade, portanto sem renda disponível suficiente para
contribuir com a previdência. Isso vai ter um peso maior lá na frente, pois ao se
exigir 40 anos de contribuição, estes jovens, no futuro, mesmo que consigam
um emprego com carteira azul, dificilmente conseguirão atingir a meta.

Afinal de contas, mal alimentados não terão forças e nem qualificação para competir
num mercado de trabalho cada vez mais excludente e exigente. A sociedade
está produzindo uma futura geração de zumbis no melhor estilo Walking Dead.
Aqui, por enquanto, se faz referência apenas ao trabalhador urbano. Ao se
tratar do trabalhador rural, a situação se torna ainda mais complicada,
principalmente sem que este tenha como comprovar o tempo de trabalho, pois
os sindicatos rurais estarão afastados e, ao bater na porteira da fazenda, serão
os trabalhadores recebidos por gente armada e, com taxa anual de 5.000
cartuchos, melhor será morrer de fome? O tempo dirá.

Àquele trabalhador ligado a Agricultura Familiar com certeza será quase
impossível comprovar um tempo de 20 anos de contribuição. Produzindo em
pequenas propriedades e lutando contra a falta de crédito, crises hídricas e
etc., com certeza terão enormes dificuldades, para não dizer que será
impossível. Já existe grande dificuldade com 15 anos, imaginem com a
exigência de 20 anos de contribuição. A morte aqui, certamente chegará na
frente.

Esta PEC, quando vemos sua composição, se pode verificar que é machista,
pois as mulheres são as que mais perdem direitos, logo elas que cuidam de
nossos filhos. A reforma é racista, pois a população negra é a que mais pratica
a informalidade, a que mais tempo fica desempregada, então não vai
comprovar nem os vinte anos de contribuição. Mulheres negras terão
dificuldades maiores em se aposentar. Podemos afirmar que a reforma também
será homofóbica, afinal de contas olhemos ao nosso redor, existem poucos
gays aposentados. Eu não conheço nenhum travesti aposentado, talvez
existam e sejam exceções à regra, pois ninguém gosta de empregar travestis.

A essa altura você deve estar pensando nos servidores públicos, eleitos como
privilegiados que contribuem para a insustentabilidade do sistema. Vamos lá
então: desde 2003 que novos servidores se aposentam pelo teto do regime
geral de previdência; se quiserem receber pela integralidade do seu salário são obrigados a recolher pelo que excede do teto do RGPS, o que já foi bastante explorado pela mídia, mas tem um detalhe que escapa e até agora ninguém mencionou. Servidores públicos com salários acima do teto pagam imposto de
renda e tem seu valor retido no contracheque. Por exemplo, um servidor que
ganhe R$ 15.000 reais por mês deixa nos cofres estatais a totalidade do
imposto de renda na fonte. A regra está prevista nos artigos 157 e 158 da
Constituição Federal e, com aumento da alíquota previdenciária para 14%, no
caso do servidor público da Bahia, o servidor deixa cerca de 30% de seu
salário em mãos do patrão.

O governo e todo o séquito de defensores da reforma alegam que a PEC 06
veio para combater privilégios. Todavia, a própria PEC desmente logo essa
assertiva ao afirmar que 84% da economia a ser gerada virá do Regime Próprio
onde existe um teto para aposentadorias de R$ 5.830,00. Mais de 70% destes
beneficiários ganha o piso do salário mínimo, e a perversidade está justamente
em economizar essa dinheirama toda em cima de 35 milhões de brasileiros que
ganham em média pouco mais de um salário mínimo.

Enfim, se poderia alongar este texto discorrendo e desconstruindo este
argumento, mas a literatura vigente já existe em demasia e apenas com um
pouco de esforço mental pode-se verificar que a economia de 1,2 trilhão virá da
dificuldade criada para que o trabalhador e a trabalhadora do setor privado
obtenham a mínima segurança para seus últimos anos de vida. Não adianta
manter a integralidade do salário se a pessoa não vai adquirir o direito à
aposentadoria.

Ora, se os privilegiados não estão nos servidores públicos, não estão entre os
trabalhadores do setor privado, onde se encontram os verdadeiros
privilegiados? Para onde vai o dinheiro arrecadado pelas contribuições
previdenciárias?

Para responder a essas perguntas é preciso conhecer as fontes de receitas
que compõem a Previdência.

Não se sabe por que cargas d’água os defensores da PEC 06/19 jogam para
debaixo do tapete a interpretação do artigo 195 da Constituição Federal, onde
se aponta a responsabilidade pelo financiamento da seguridade social para
toda a sociedade. Mas na aplicação, parece que os mais ricos, os que têm
capacidade contributiva, se sentem a margem do ônus e apenas são parte dos
bônus. Na hora de pagar a conta, os que podem pagar levantam da mesa,
levam a comida e deixam os restos e a conta para os menos favorecidos.

Para o financiamento da Seguridade Social existem fontes diretas e indiretas.
As primeiras são formadas pelas contribuições do trabalho e dos
empregadores, aí inclusos o PIS/PASEP, A CSLL e a COFINS. Quase não se
toca na contribuição patronal, e observe que desde 1996, ano de criação do
regime fiscal do Simples Nacional, os empregadores deixaram de arcar com o pagamento das contribuições previdenciárias e os demais tributos para
financiamento da Seguridade Social.

Aliado a isso começaram a pipocar no Congresso Nacional diversas alterações
que beneficiam a classe patronal. Pelo lado das fontes indiretas, sobra a
responsabilidade do governo em suprir déficits no resultado operacional, como
por exemplo, criar instrumentos compensatórios às perdas ocasionadas com os
diversos benefícios patronais.

Afinal de contas quem sangra as contas da previdência? Falamos em
sangramento, pois a situação previdenciária brasileira equivale a um doente
anêmico, onde todos afirmam que está com uma crescente falta de sangue e a
solução que apontam é tirar o pouco sangue que lhe resta, irrigando outros
organismos. Podem-se apontar diversos tipos de sangria da previdência: DRU,
Simples, Isenções e desonerações. Todas elas sem contrapartida.

A primeira de todas é a DRU. Ora senhoras e senhores leitores, se a causa
maior do déficit público é a previdência, natural seria que fossem promovidas
ações de transferência para cobrir o propalado rombo; entretanto, ocorre o
efeito reverso, onde se retira 30% das receitas previdenciárias e isso faz falta.

Veja um exemplo hipotético: A empresa arrecada 100 e tem um gasto para tal
nível de vendas de 80; ora, temos um lucro de 20 decorrente de 100-80, mas
ao inventarem uma Desvinculação de Receitas da Empresa, se retira 30 dos
100 e a empresa passa a ter prejuízo de 10. Entendeu? 70-80= -10. E os 30
retirados vão cobrir outro buraco; depois saem alardeando que a empresa dá
prejuízo. Pois isso acontece com a previdência e a Desvinculação de Receitas
da União (DRU).

O Simples agrega a maioria das pequenas empresas brasileiras e vale
salientar que cerca de 80% dos empregos nacionais são gerados por este
tamanho de empresa. Os estados membros da federação conseguiram
amenizar a perda do ICMS com o antecipado, regime em que as empresas
pagam o diferencial de alíquota em operações interestaduais e a contribuição
previdenciária patronal foi dada como redução da carga tributária, entretanto,
sem contrapartida direta. Enfim, a União deveria arcar com este ônus e não
apenas reclamar déficit.

No que se refere às isenções, temos uma legislação amplamente complacente
com alguns dos 52 setores da economia; ampliamos ainda nosso folder de
privilégios quando nada arrecadamos sobre dividendos e outras fontes de
remuneração do capital. Com uma estrutura tributária calcada em tributos que
incidem sobre a produção e consumo, uma crise econômica faz jogar por terra
toda a possível poupança de um fundo tripartite. Sim, aqui entram o COFINS,
PIS/Pasep e CSLL.

Por outro lado, um período de elevado crescimento
econômico faria com que a arrecadação destes tributos formasse um fundo a
ser utilizado em períodos de vacas magras, mas a sanha de gastar atabalhoadamente a grana estatal não deixa pedra sobre pedra, optando pela gastança desmesurada. Pede-se especial atenção à leitura dos artigos 194 e
195 da Constituição Federal. 82 bilhões de reais foi o tamanho da sangria da
previdência para beneficiar setores produtivos. Ninguém aqui está louco de ser
contra benefícios fiscais, mas se retiram dinheiro da previdência que se
providencie a devolução ou então deixem de repetir que a Previdência é
deficitária.

No próximo dia 06 de junho se poderá discutir A Reforma da Previdência e
seus Impactos e Consequências na Faculdade de Economia da UFBA, na
cidade de Salvador, a partir das 18h30min, onde o ex-ministro da Previdência
Social Carlos Gabas, mais uma vez, certamente, desconstruirá os argumentos
em prol da PEC 06/19 na companhia de outros e outras especialistas.

Sobre desonerações da folha de pagamento existem dois dispositivos legais: a
Lei 12.546/2011 modificada pela Lei 13.670/2018. Estes dispositivos alteram a
forma de recolhimento de alguns setores, sendo permitido escolher entre a
contribuição patronal ou recolher pelo faturamento. Basta lembrar que foi no
ano de 2015 o começo do caos, onde as receitas operacionais despencaram a
píncaros, levando com ela a arrecadação previdenciária. Temos como exemplo
os setores de construção civil e transportes públicos, ambos majoritariamente
utilizadores do fator Trabalho. Uma lida nos artigos 7 e 8 da lei 13.670/2018
pode dar a real dimensão desse dispositivo para as contas previdência.

Com o exposto acima, se pode observar que os grandes privilegiados não
estão inclusos na PEC 06/2019. Aliás, o governo federal deveria começar o
texto propondo a retirada da DRU, usando elementos de contrapartida
compensatórios às isenções e desonerações. Observe que também ainda
existe a figura do MEI (Microempreendedor Individual) que nada mais é que a
maquiagem de uma relação de emprego para fugir à contribuição patronal
previdenciária que compõem em 2019 a grande maioria das empresas abertas
no Brasil. Basta lembrar que este enquadramento empresarial está isento do
pagamento de PIS, COFINS e CSLL, tributos que incidem sobre a conta
previdenciária, além das isenções de tributos federais como o IPI, recolhendo
para previdência valores entre R$ 49,90 (comércio e indústria) a R$55,90
(serviços, com ICMS embutido). As perdas são enormes para as contas
previdenciárias.

Aliado a isto existe hoje no Brasil cerca de 105 milhões de pessoas na
população economicamente ativa, a nossa força de trabalho. Entretanto, com
carteira de trabalho, portanto, os contribuintes obrigatórios, são apenas 37
milhões de pessoas e, com isso, temos uma baixa arrecadação. Logo, basta
religar as máquinas e retomar o crescimento econômico que essa massa
contributiva volta a contribuir.

Podemos ainda acrescentar cerca de 7 milhões de servidores públicos
estatutários e militares junto com 6 milhões de trabalhadores domésticos que,
de uma forma ou de outra, contribuem. A conta é simples e não bate, temos
mais barrigas para alimentar que gente pagando o almoço de amanhã. Então
se precisa eliminar drasticamente o desemprego e criar mecanismos de
arrecadação das pessoas que estão na informalidade. Afinal de contas, em
2016 apenas 52 milhões de pessoas contribuíam para o regime geral da
previdência social, sendo apenas 9 milhões de contribuintes individuais.

Como resolver então a crise da Previdência Social? Primeiro criar
contrapartidas às diversas isenções e desonerações, pois não se pode fazer
reverência com o chapéu dos outros. Além disso, promover uma reforma
tributária mais justa, onde a capacidade contributiva seja respeitada e os que
mais lucram e acumulam paguem os tributos devidos. Para iniciar, deveria ser
revogada a DRU sobre a Previdência e a União deveria devolver tudo o que
tirou a título de isenções e desonerações.

Também será de bom alvitre melhorar a eficiência da cobrança dos devedores
contumazes. Uma das boas normas de gestão empresarial diz que se você tem
uma cobrança frágil, a sua inadimplência aumenta. Não se trata apenas de
cobrar o possível na dívida ativa, mas fundamentalmente criar mecanismos
contínuos e perenes de cobrança para que o devedor não se sinta confortável
a esperar o próximo REFIS.

Qual a solução para que a Previdência garanta os pagamentos devidos sem
piorar a qualidade de vida? Primeiro que o governo devolva à Previdência tudo
que tira em forma de renúncias fiscais como isenções e desonerações. Que a
DRU não incida sobre a receita previdenciária e, também, será de bom alvitre
melhorar a cobrança das contribuições previdenciárias, o PIS e COFINS, assim
como melhorar o nível de crescimento da economia, reduzindo o número de
desempregados.

Não é recomendável fazer uma reforma desse calibre numa economia
fragilizada. Aliás, as seis reformas que foram feitas na Previdência sempre
jogaram a conta para que seja paga pelo trabalhador. Já passou do momento
do Capital dar a sua parcela de contribuição.

Dobrando a arrecadação do PIS/PASEP e da COFINS, aliado aos recursos de
prognósticos e tudo que acima foi exposto tornará a Previdência viável
economicamente, mas parece que se torna mais fácil novamente jogar a conta
para os mais frágeis.

Enfim, é preciso garantir aos mais necessitados uma velhice tranquila e que a
aposentadoria venha primeiro que a morte.

 

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